Primeira Dama da República, uma função sem Estatuto

PorLigia Fonseca,17 abr 2023 11:26

Um dia, quando o meu marido exercia as funções de Presidente da República, um jornalista aborda-me à entrada de um evento e pergunta-me se eu me considerava legítima representante das mulheres cabo-verdianas. A pergunta não era inocente, eu sabia. Lembro-me de olhar para o jornalista, com toda a simpatia e um sorriso e expliquei-lhe que para se representar alguém é necessário ser mandatada para o efeito.

É preciso que o representado confira os poderes para o representar. O Presidente da República representa a nação porque recebeu o mandato diretamente do povo, em eleições. O povo que representa escolheu-o e durante 5 anos tem a obrigação de representar a nação, de falar em nome dela. A mulher do PR, socialmente designada por Primeira Dama, não recebeu nenhum mandato, não foi eleita, apenas é Primeira Dama porque é cônjuge do Presidente da República. Assim, eu, na qualidade de Primeira Dama, não tinha nenhum poder de representação das mulheres cabo-verdianas. Porém, como uma cabo-verdiana tinha uma oportunidade privilegiada para falar e mostrar ao mundo o que são as mulheres deste país, os seus desafios, anseios. Aproveitando esse palco especial de estar ao lado do PR, e de no exterior receber toda a consideração e protocolo equivalente ao que prestam ao PR, eu entendia que tinha, também, o dever de atuar de forma a que quando olhassem para mim, conversassem comigo, em todos os atos públicos pudesse encontrar aliados para as causas das mulheres de Cabo Verde. Percebi que a resposta desarmou o jornalista e afastou mais um tema que geraria uma boa polémica.

Em várias entrevistas já tive oportunidade de explicar que a Primeira Dama não é um cargo e não existe nenhuma lei que defina que a mesma tenha de exercer quaisquer funções. Eu, como uma mulher de leis, advogada de profissão, sabia muito bem disto e, por isso, durante toda a campanha eleitoral paras as eleições presidenciais de 2011 onde o meu marido participava, sempre fui dizendo que quando ele fosse eleito eu continuaria a exercer as minhas funções de advogada no meu escritório em regime liberal por conta própria. Fiz questão que este facto fosse bem esclarecido e expliquei que adotava essa atitude precisamente porque Primeira Dama não é um cargo, e porque nada na lei me impedia de continuar a trabalhar na minha profissão para prover o meu sustento e o da minha família.

Muitas foram as discussões e os debates públicos e privados em torno desta questão: uma Primeira Dama que continua a exercer a advocacia. Mas foi isso mesmo que fiz durante os dois mandatos do meu marido como Presidente da República.

Porém, desde o primeiro minuto em que o meu marido foi declarado vencedor das eleições presidenciais de 2011, logo a comunicação social quis saber quais os meus projetos como Primeira Dama. Projetos como Primeira Dama? Mas que projetos posso eu ter se não existe essa figura jurídica de Primeira Dama? Pois, não existe na lei, mas existe e é muito forte no pensamento da sociedade. As pessoas começaram logo a chamar-me Primeira Dama e a procurar-me para pedir o meu apoio, a minha intervenção, um conselho, para partilhar ideias, desabafar e, tantas vezes, só para dar um abraço. Eu própria fui percebendo a força que isso tinha. Uma palavra pública minha sobre um assunto era capaz de fazer a diferença. Um pedido meu para ajudar um projeto merecia sempre a melhor atenção. Então, não podia desperdiçar essa oportunidade para fazer a diferença e contribuir para ajudar a concretizar o lema de campanha «Um presidente junto das pessoas».

Mas se as pessoas, a sociedade exigia a presença e atuação de uma Primeira Dama, setores dessa mesma sociedade questionavam essa presença. Depois da questão da continuação do exercício da minha profissão, o debate sobre a figura da Primeira Dama surgiu quando eu compareci ao lado do Presidente da República na tomada de posse do Chefe da Casa Civil, Dr. Manuel Faustino. Fiz questão de estar nesse ato quer pela amizade pessoal com o empossado quer pelas funções que ele iria exercer. Tanta tinta fez correr este simples facto. Até foi um dos temas do programa da RDP África, debate africano, através dos comentários de um dos participantes, o Dr. José Luís Hopffer Almada. E o argumento era: porquê que a Primeira Dama estava presente nessa cerimónia se não existe nenhum estatuto jurídico para a mesma?

Começou, então, a minha batalha para que se regulamentasse o estatuto do cônjuge do Presidente da República, seja esse cônjuge Primeira Dama ou Primeiro Cavalheiro. Nas minhas intervenções procurei demonstrar que num Estado de Direito Democrático as situações que envolvam funções públicas, gastos públicos, têm de ser regulamentadas. Por isso, até em termos de accountability, impunha-se a aprovação de uma lei que definisse a composição do gabinete do cônjuge do PR, o pessoal afeto, o orçamento disponível, os deveres e direitos.

A nível interno, também fiz questão de que fosse designada uma área de trabalho para a Primeira Dama no Palácio e tive a sorte do Presidente da República dispensar-me pessoal do seu gabinete para trabalhar diretamente comigo nas ações de Primeira Dama. Infelizmente, tinha de me confrontar com algumas situações completamente ridículas, como por exemplo ser sujeita ao controlo de passageiros nos aeroportos sempre que não estava acompanhada do PR. Felizmente, a lei foi alterada. Interessante que essa lei refere-se expressamente à Primeira Dama. Penso que foi a primeira lei a reconhecer a existência jurídica da Primeira Dama. No que se refere a um estatuto, não consegui que o mesmo fosse adotado, tendo um dos principais opositores a essa ideia sido o então Primeiro Ministro José Maria Neves, a ponto de numa conferência de imprensa ter aconselhado a Primeira Dama a não se pronunciar sobre questões internas, quando questionado sobre a minha exigência de um Estatuto.

Mas mesmo sem estatuto, as pessoas continuavam a querer a Primeira Dama e exigiam vê-la quer nos atos oficiais acompanhando o PR, quer em outras ações a solo, em apoio às causas prementes da sociedade. E neste ponto é importante partilhar a minha experiência de como as pessoas sentiam-se muito agradecidas quando o Presidente da República não podia estar, mas a Primeira Dama comparecia. Na verdade, era como uma extensão da presença do Presidente da República. Para a maioria das pessoas e organizações, a presença da Primeira Dama tem um valor institucional muito forte. E quando o PR não pode ir por razões de agenda ou protocolares, a presença da Primeira Dama funciona como uma substituição legítima e muito apreciada. Nas visitas às comunidades no país e na diáspora, o PR acompanhado da Primeira Dama dá um toque especial à visita. Eu não tive oportunidade de acompanhar o meu marido em muitas visitas devido ao meu trabalho de advogada e porque a minha filha também precisava de ter a nossa companhia. Mas todas as vezes em que o acompanhei, percebi que as pessoas adoravam estar com o casal presidencial, como diziam. Era uma festa muito bonita.

Este lado da imagem que o Presidente da República e a Primeira Dama juntos dão é outro aspeto que não pode deixar de ser considerado quando falamos na necessidade de um estatuto oficial. Acompanhar o Presidente da República nas visitas oficiais, nas visitas de Estado, nos atos cerimoniais, na receção de convidados é uma função protocolar de grande importância, muitas vezes essencial para se obter para o país grandes resultados.

Quando num momento de tristeza no país, a Primeira Dama aparece a confortar e a mostrar o seu respeito pelos que sofrem, esse é um gesto de grande valor e de dignidade. É uma forma do Presidente da República estar presente. Sei, por já o ter feito, quão reconfortante é esta atitude.

Desde sempre o papel das Primeiras Damas de Cabo Verde foi muito apreciado. Ouvi falar das ações solidárias da Senhora Carlina Pereira, acompanhamos o trabalho com a infância e os jovens que a Dra. Antonina Mascarenhas e a Dra. Adélcia Pires fizeram com obras que se prologaram para além dos mandatos dos maridos como Presidentes da República; eu sei que também trabalhei e fiz coisas incríveis enquanto Primeira Dama e tive oportunidade de tornar este papel mais visível e de o usar em defesa de causas importantes da nossa sociedade e a atual Primeira Dama continua o legado que todas nós deixamos, cada uma do seu jeito muito próprio.

O papel da Primeira Dama é reconhecido como essencial e prova disso foi ouvir o atual Presidente da República, no seu discurso de posse, expressamente indicar que a sua companheira seria a Primeira Dama. Sem falsas modéstias, nesse momento percebi que tinha ganho a batalha para o reconhecimento institucional da figura da Primeira Dama. Falta aprovar o Estatuto do Cônjuge do Presidente da República e colocar no Palácio do Presidente da República as fotos das Primeiras Damas da República de Cabo Verde (omissão grave que perdura).

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1115 de 12 de Abril de 2023.

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Autoria:Ligia Fonseca,17 abr 2023 11:26

Editado porClaudia Sofia Mota  em  17 abr 2023 11:26

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