O costume, a constituição escrita e a diabolização do Tribunal Constitucional

PorOlavo Freire,22 mai 2023 7:50

Olavo Freire - Jurisconsulto
Olavo Freire - Jurisconsulto

(….) Vários têm sido os pronunciamentos, alguns bem corrosivos, sobre o acórdão do Tribunal Constitucional que reconheceu que se formou costume constitucional no sentido de a Comissão Permanente da Assembleia Nacional as competências do Plenário desse órgão no intervalo das reuniões plenárias desse órgão, nomeadamente no que toca ao mandato dos Deputados.

Em regra, tais pronunciamentos tentam estribar-se em determinadas autoridades em Direito Constitucional.

Pela nossa parte, sempre no respeito por opiniões diferentes, mantemos, porém, a postura de não abdicar do elementar escrutínio daquilo que vai sendo (re)produzido entre nós, como sendo doutrina constitucional de suprema autoridade.

Num tal exercício, não podemos deixar de fazer uma breve alusão à razão de ser e aos fundamentos de uma jurisdição constitucional especializada.

Na verdade, é conhecido o debate entre o Hans Kelsen e Carl Schmitt, sobre quem deveria ser o guardião da Constituição. Recorde-se que Kelsen entendia a Constituição como um conjunto de normas, colocadas no vértice da pirâmide que representa o ordenamento jurídico e de cuja observância depende a validade de outras normas de hierarquia inferior. Na tese do celebrado professor da escola de Viena a custódia da Constituição deve caber a um corpo técnico especializado, porém dotado de suficiente legitimidade político-democrática, que possa averiguar da constitucionalidade ou inconstitucionalidade das normas, e dizer a última palavra sobre a sua conformidade com a Lei Fundamental.

Nessa medida temos a legitimação técnica e política do Tribunal Constitucional.

Posto isto, perguntamos: será que se justifica diabolizar o Tribunal Constitucional, apenas por ter entendido, em seu alto e esclarecido critério, que o costume pode, em certas circunstâncias, sobrepor-se à constituição escrita?

Cremos, muito sinceramente, que não.

Vejamos, em abono de semelhante entendimento, e a título meramente exemplificativo, o que os constitucionalistas Jorge Miranda e Rui Medeiros escreveram sobre o tão controverso costume constitucional contra legem:

Relativamente às restantes matérias formou-se costume constitucional contra legem, tendo o regimento, a partir de 1987, passado a dispor que, sem prejuízo da avocação da especialidade pelo Plenário, a discussão e a votação na especialidade caberiam à comissão competente. (…) o Tribunal Constitucional não pôs em causa a constitucionalidade da norma regimental, embora sem se referir ao costume”.

Eis, pois, um caso de prevalência do costume sobre a constituição escrita, com especial interesse para a polémica em curso em Cabo Verde, por ter ocorrido precisamente no domínio das relações entre o Plenário do Parlamento e as Comissões.

Essa prevalência foi reconhecida sem que tivessem caído o Carmo e a Trindade.

Freitas do Amaral, convocando a autoridade de Rui Machete, escreveu:

“É sabido, no entanto, que a circunstância de haver um preceito expresso de revisão constitucional não exclui, só por si, que não possa haver um processo implícito de revisão constitucional, pela via do costume”.

Mais à frente, exprimindo já o seu próprio pensamento:

“Pelo nosso lado, não nos repugna também minimamente, em tese, não só que existam regras constitucionais não escritas como também que algumas delas contrariem preceitos da Constituição escrita, fazendo-os cair em desuso ou substituindo-os, e acabando, desse modo, por proceder a uma verdadeira revisão da Constituição”.

Ora, temo, muito sinceramente, que, examinados pelos críticos do Tribunal Constitucional, os reputados constitucionalistas a que vimos fazendo referência pudessem sair também todos reprovados, sem apelo nem agravo.

E é esse espectro de termos tais autoridades, porventura o escol de Direito Constitucional, também “arrasadas”, apenas por defenderem a possibilidade de o costume se sobrepor, em certas circunstâncias, à constituição escrita, que se nos afigura suficiente para recomendar humildade e certa contenção com determinados julgamentos.

Outro aspeto que não pode ser descurado nesse debate, e que parece ter sido decisivo para a tese sufragada pelo Tribunal Constitucional, é aquilo que tem sido a prática reiterada, com a convicção de obrigatoriedade, no que toca à repartição das competências entre o Plenário e a Comissão Permanente da Assembleia Nacional.

Com efeito, ao longo de décadas nunca chegou de ser posta em causa, nem mesmo pelos que hoje se assumem como frenéticos guardiões da Constituição, a interpretação de que, no intervalo das reuniões plenárias, à Comissão Permanente cabe exercer, dentro de certos limites, as competências do Plenário. Mesmo no que toca ao mandato dos Deputados.

É com base num tal entendimento que, com o assentimento geral, Deputados já viram o seu mandato suspenso, por deliberação da Comissão Permanente, e não do Plenário, para, como arguidos, serem submetidos a julgamento pelos Tribunais.

O consenso e a convicção, de que se estava perante um procedimento juridicamente correto, eram tais, que o próprio Deputado, cuja imunidade se pretendia levantar no caso que deu origem ao tão contestado acórdão, votou também a favor.

Porque, então, não reconhecer licitude a esse arreigado procedimento, tal como acabou por fazer o Tribunal Constitucional, sobretudo quando a questionada deliberação da Comissão Permanente, foi objecto de impugnação para o Plenário da Assembleia Nacional, que a confirmou, em rigor a ratificou, por votação secreta, tornando, assim, supervenientemente inútil qualquer eventual controvérsia sobre a matéria.

A lei, incluindo a Constituição, perderá toda a sua intrínseca autoridade, toda a sua substancial legitimidade, quando ela não é aplicada de forma isonómica, mas sim de modo seletivo. Quando o procedimento que se adota para o levantamento da imunidade do Deputado A é diferente daquele que se adota para o Deputado B. Quando se dá a entender que existem brechas na lei que podem ser inescrupulosamente exploradas, por quem se considera mais esperto.

Não se desconhece, finalmente, que um dos argumentos esgrimidos contra a decisão do Tribunal Constitucional é que se terá dado prevalência ao costume constitucional em matéria de direitos fundamentais, o que seria de todo inaceitável, até porque estaria em contradição com pronunciamentos anteriores.

Mas, será que se estava mesmo perante matéria de direitos fundamentais? O levantamento de imunidades (verdadeiros privilégios) a um Deputado, é matéria de direitos fundamentais, no sentido de direitos que assistem por igual a todos os cidadãos?

Eis a questão que cumpre responder.

Até lá espera-se que prevaleça a argumentação jurídica, que tem naturalmente as suas exigências, em vez de tiradas meramente incendiárias, que em nada abonam quem as profere e nem contribuem para o aprimoramento das nossas instituições. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1120 de 17 de Maio de 2023.

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Autoria:Olavo Freire,22 mai 2023 7:50

Editado porAndre Amaral  em  22 mai 2023 7:50

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