Nesse contexto, decidimos trazer para reflexão a situação de degradação profissional da classe docente numa perspetiva analítica tanto global quanto local. Isto é, propomos analisar (ainda que de forma muito breve) o movimento reivindicativo dos professores cabo-verdianos, mas enquadrando-o no fenómeno mais amplo denominado de precarização e desvalorização da classe docente.
Feita essa contextualização, importa, antes de mais nada, perguntar: em que consiste a precarização do trabalho docente? De um modo geral, quando se fala da precarização do trabalho docente, está-se a referir, na prática, a um conjunto de mudanças ocorridas nas últimas décadas e que causaram uma progressiva degradação nas relações e nas condições de trabalho dos professores. Nesse sentido, podemos destacar o seguinte: contratos de trabalho precários; burocratização do trabalho docente; atribuição excessiva de tarefas (incluindo as de carácter administrativo); condições de trabalho precárias nas escolas; excessivo controlo administrativo; perda de autonomia; lentidão e/ou estagnação na carreira e; baixos salários.
Segundo estudos realizados, essa precarização do trabalho docente tem origem em causas diversas. Por um lado, constitui o resultado de sucessivas mudanças estruturais ocorridas no sistema de produção capitalista e neoliberal, que levaram à proletarização do trabalho docente, o que transformou os professores em meros “operários”, cujo trabalho passou a reger-se pelos princípios e práticas técnico-racionais e de cariz empresarial, tais como competitividade, produtividade, eficácia, racionalidade, orientação para resultados, prestação de contas, etc.
Por outro lado, a precarização do trabalho docente constitui, segundo Rui Canário, o reflexo de um fenómeno ainda mais abrangente e complexo denominado de “crise da educação”, entendido de forma mais concreta como “crise da escola”. Essa crise resulta, essencialmente, da incapacidade da escola em garantir uma educação de qualidade, que satisfaça as necessidades, exigências e expectativas dos seus alunos e de toda a sociedade. Por conta disso, ela tem sido fortemente criticada e descredibilizada, sendo um dos alvos principais os professores.
É óbvio que, a par desses fatores, destaca-se ainda a falta de interesse e/ou incompetência por parte das entidades públicas governamentais na mobilização e alocação de mais recursos no sector da educação destinados à melhoria das condições de trabalho e de desenvolvimento profissional dos professores.
Ora, considerando os condicionalismos acima mencionados, assistimos a uma degradação progressiva do trabalho docente, assim como uma “crise de identidade profissional” no seio dos professores. Essa “crise de identidade profissional” decorre da crescente desvalorização socioprofissional e completa alteração e desvirtualização do sentido e do significado da prática profissional docente. Rui Canário (2005) sintetiza, de forma bem elucidativa, tal fenómeno que afeta a classe docente na seguinte afirmação: “Os professores aparecem imersos numa situação perturbante em que o passado é encarado de forma nostálgica, o presente com base na lamentação e o futuro marcado pela incerteza”. Podemos notar, pois, que o trabalho docente sofreu uma progressiva precarização e desvalorização.
Perante esse contexto, os professores enfrentam, segundo o referido autor, o problema denominado de “mal-estar docente”, que se manifesta por meio de sinais como desmotivação, absentismo, desinvestimento profissional, aumento de doenças decorrentes do exercício da atividade docente, desencanto e esgotamento com a profissão, e não só.
É um quadro bastante crítico e que, sem dúvida, explica porque ser professor é visto hoje como uma profissão cada vez menos atraente. Segundo a UNESCO, a falta de atratividade dificulta o recrutamento de novos professores e leva ao abandono da carreira por parte de muitos profissionais. Em decorrência disso, a referida agência da ONU alerta que, atualmente, faltam 44 milhões de professores no mundo, sendo a África Subsaariana e o Sul da Ásia as regiões mais afetadas.
Em Cabo Verde, embora não haja (ainda) falta de professores, a precariedade é, sem dúvida, um problema a considerar. Apesar dos investimentos feitos na classe docente ao longo dos anos, esta depara-se ainda com diversas situações de precariedade no exercício da sua profissão. De um modo geral, podemos destacar, como exemplos: i) o atraso na resolução das pendências relacionadas com reclassificações, promoções e pagamentos de subsídios; ii) as fracas condições para o ensino de qualidade nas escolas; iii) congelamento da carreira de muitos professores; iv) salários desatualizados; v) falta de autonomia face ao centralismo da administração central.
Para combater essa situação, os professores e as organizações sindicais que os representam têm realizado, com certa regularidade, ações de protestos (greves e manifestações), com o intuito de denunciar e protestar contra as precárias condições laborais em que se encontram e, ao mesmo tempo, reivindicar mais respeito e valorização pela classe docente. Aliás, é o que nesses dias temos vindo a assistir, sobretudo nas redes sociais (Facebook), onde decorre uma certa dinâmica organizativa de feição reivindicativa por parte dos professores (e que já conta com o apoio dos sindicatos), cuja finalidade é pressionar o atual Governo a resolver, de forma mais célere e eficaz, os diversos problemas e exigências do professorado cabo-verdiano.
Enfim, fica evidente, portanto, que a degradação das condições de trabalho docente e a consequente desvalorização profissional dos professores constituem um fenómeno generalizado e preocupante (exceto nos países onde os professores são muito respeitados e valorizados, como Coreia do Sul, Japão, Alemanha, Finlândia, etc.). Em Cabo Verde, tal fenómeno é um facto inegável, que merece a devida atenção por parte do Ministério da Educação, a quem cabe a responsabilidade de garantir aos professores as melhores condições para o exercício da sua atividade pedagógica e de desenvolvimento profissional.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1142 de 18 de Outubro de 2023.