Não é à toa que Amílcar Cabral, o fundador e líder do PAIGC, era o ícone da chamada democracia nacional revolucionária com um único partido, sem garantia dos direitos fundamentais, sem Estado de Direito, sem separação de poderes, sem tribunais independentes e sem poder local. O mínimo de coerência exigiria que o cabralismo não fosse comemorado por instituições de uma democracia liberal e constitucional que se rege por princípios absolutamente opostos. Isso não impede naturalmente que seja celebrado livre e abertamente por quem ainda se revê no seu pensamento. A tolerância intrínseca do sistema democrático mesmo às ideias que se lhe opõem directa ou indirectamente não encontra, aparentemente, a mesma reciprocidade da outra parte.
Compreende-se que seja assim porque o pensamento político que é implicitamente único não convive naturalmente com o pluralismo, com o princípio da vontade da maioria e com o primado da lei. Nesse sentido, tentou-se primeiro que o presidente da república declarasse oficialmente 2024 como o ano do centenário quando a competência para isso é do governo ou do parlamento. A seguir procurou-se esvaziar a decisão parlamentar com posicionamentos de outros foruns como um encontro de presidentes da república, o actual e os antigos, e depois com uma reunião do conselho da república. A par de investidas intolerantes nas redes sociais, promoveu-se uma petição a ser enviada ao parlamento para supostamente reverter a posição expressa pela maioria.
Também já se nota a actuação algo desarticulada do Estado na matéria com órgãos de soberania cada um por si, e mesmo entre os titulares de um mesmo órgão (governo e parlamento) separadamente, a tomar a sua posição própria quanto à comemoração oficial do centenário. Outrossim, fazem-se apelos às câmaras municipais para avançarem com a sua própria iniciativa e procura-se suporte em empresas, escolas e universidades públicas para esvaziar a posição estatal. Em tudo isto a pergunta que urge fazer é onde fica a unidade do Estado e o princípio democrático de que o país é governado pelo partido que ganhou as eleições e assegura a maioria parlamentar.
Do governo em particular que dirige a administração pública e conduz a política interna e externa e também do presidente da república que é o garante da unidade da Nação e do Estado devia-se esperar uma outra postura para que imagens confrangedoras de dirigentes e convidados como as vistas na cerimónia do fecho da chamada “Marxa Cabral” não se repetissem. O “sentido de Estado” que se exige especialmente dos titulares de órgãos soberania e dos órgãos públicos não pode dar a aparência de se subordinar perante o que configura a intolerância de uns em aceitar que a república criada pela Constituição de 1992 não se revê na sua ideologia datada. De facto, ninguém disputa a condição actual de Cabo Verde como Estado independente. O repúdio geral é para a ditadura que sob a bandeira do cabralismo foi imposta ao país durante quinze anos. Juntar hoje a independência e o regime ditatorial só faz reviver as fracturas do passado, as mesmas que já se vê chegar ao próprio Estado quando ele mais precisa estar unido nos seus propósitos para enfrentar os desafios actuais.
Algo similar e também divisivo acontece quando em nome do pan-africanismo se procura negar a especificidade cabo-verdiana. No continente, agentes políticos animados de ideologias pan-africanistas pretenderam forjar consciência da nação nos territórios das colónias, criadas pelo imperialismo europeu, na conferência de Berlim de 1885, a partir de uma África idealizada em cultura, costumes e ritos e na luta contra o colonialismo. Os resultados conhecem-se. Em Cabo Verde pretendeu-se fazer o mesmo através da política de reafricanização dos espíritos quando, com o 25 de Abril de 1974, Portugal se retirou do seu império colonial de forma pouco ordeira.
A diferença é que há mais de um século já a consciência da nação tinha emergido em Cabo Verde “a partir de dentro” com o contributo de todas as ilhas na sua diversidade, nenhuma considerando-se mais cabo-verdiana que as outras. O choque entre a pretensão e a realidade era inevitável. Também, sendo a reafricanização dos espíritos uma política do Estado tinha que ser acompanhada da intolerância para quem já tinha a sua consciência de cabo-verdiano e nunca precisou de reclamar a condição complementar nem de europeu, nem de africano, como bem precisou Baltasar Lopes da Silva em várias ocasiões.
Na sequência do lançamento do livro de Brito-Semedo o sentimento intolerante e divisivo veio outra vez à tona. Mais uma vez o pan-africanismo e o cabralismo apareceram como dois irmãos siameses vindos de fora e unidos em colisão frontal contra uma entidade com percurso distinto que não começou como colónia no continente depois de 1885, mas sim a partir das ilhas povoadas desde de 1462. Quem parece reconhecer a diferença é o próprio Amílcar Cabral que, segundo Julião Soares Sousa, autor guineense da sua biografia política, “no seu projecto de regressar à Africa não tencionava ir para nenhuma colónia portuguesa em particular. Qualquer servia, excepção feita a Cabo Verde” (pag. 33).
Mais uma razão para se afirmar a especificidade cabo-verdiana e evitar armadilhas ideológicas enfraquecedoras da identidade nacional e criadoras de divisões. São percalços que podem levar à regressão no percurso de Cabo Verde como nação una, no ponto que muitos, em particular em África, aspiram atingir.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1158 de 7 de Fevereiro de 2024.