O março das nossas vidas

PorLígia Dias Fonseca,18 mar 2024 7:50

​1. «Não tinha tempo para viver como as minhas colegas. Quando as aulas terminavam tinha de correr para casa para fazer a janta para os meus irmãos. Os nossos pais tinham emigrado e eu tinha de cuidar dos mais novos. Acabei o curso muito mais tarde, porque tinha a responsabilidade pelos meus irmãos». «Primeiro, a minha tarefa começou por ser limpar a casa de banho. Depois, também fiquei responsável por limpar a cozinha. Quando todos terminavam de almoçar, eu tinha de lavar a loiça e arrumar tudo. Quando a minha irmã mais velha foi estudar, fiquei eu com as tarefas dela. Pouco a pouco, as tarefas domésticas iam aumentando, até ficar responsável pela janta do meu pai. Tinha dois irmãos machos, mas a eles não lhes eram dadas estas tarefas». «Eu era melhor aluna, mas os meus pais não podiam suportar os custos escolares dos dois e por isso decidiram que o meu irmão é que devia ir estudar. Sei que seria uma grande médica, mas a vida não permitiu. Agora tenho a minha família e não penso mais nisso. Trabalho para que todos os meus filhos possam estudar».

«Trabalho o dia todo. Levanto-me às 4 da manhã para deixar comida feita para os meus filhos. Regresso à casa no final da tarde e tenho de tratar de tudo em casa. Ainda tento sentar-me com os meninos para conversar antes de dormir, mas acabo sempre por adormecer de tanta canseira». «Convidaram-me para entrar na lista. Fiquei eufórica com esta oportunidade. Sabe, sempre gostei de política. Mas tive de dizer que não. Não consigo assegurar o meu trabalho profissional, cuidar da casa e dedicar atenção aos filhos e ser deputada».

2. Estes são alguns extratos de conversas que escutei neste início de março. Extratos que refletem o que as mulheres da nossa sociedade enfrentam ao longo da sua vida, no dia a dia. Muita coisa tem mudado, a sociedade evolui e reconhece que é preciso criar condições para que todos se possam realizar sem ter de deixar a família abandonada. Muitos jovens homens de hoje assumem com naturalidade a partilha de cuidados com os filhos e a gestão doméstica. Conciliar a vida profissional com a vida familiar vai, pouco a pouco, tornando-se menos difícil graças a um conjunto de medidas adotadas pelos governos, designadamente a nível da legislação laboral e à criação de equipamentos sociais de apoio às famílias. A invenção e aperfeiçoamento de equipamentos de uso doméstico também contribui para libertar tempo da mulher. Mas não nos enganemos, a grande maioria das mulheres continua a ter uma dupla, tripla jornada de trabalho, não permitindo a sua participação na vida política.

3. Nesta complexidade da sociedade, não basta só fazer as leis. Tanto lutamos pela chamada «Lei da paridade» e ela foi aprovada. Vimos todos aplaudir, mesmo aqueles que sabemos que se estão nas tintas para essa paridade se ela lhes retirar a possibilidade de obter o lugar da frente. Lembro-me de um acérrimo defensor da lei da paridade que dizia nos encontros «eu estou disponível para deixar o meu lugar a favor da entrada de uma mulher». Palmas e abraços ao companheiro tão comprometido com a causa da igualdade. Porém, a máscara caiu logo na primeira situação em que efetivamente teria de prescindir a favor de uma mulher. Sermos coerentes com as nossas convicções é mais difícil do que parece. Defender uma ideia que achamos justa, quando esta se torna obstáculo aos nossos interesses pessoais, nem sempre é fácil. Diariamente vemos isso. O que ontem não podia ser, porque não havia lei a permitir, porque estamos num estado de direito, hoje, é defendido como direito, mesmo sem lei ou até contra a lei!

4. Neste março com m de mulher, gostaria que este m fosse também de mais compromisso com a participação das Mulheres nas eleições autárquicas do final deste ano. Mais mulheres como candidatas ao cargo de Presidente da Câmara. Até agora não ouvi nenhuma proposta nesse sentido. Tenho de reconhecer que tem faltado organização e vontade política das próprias mulheres de fazerem esta reivindicação. É um processo que devia ter começado há mais tempo. As mulheres dos partidos e as sem partido deviam ter-se organizado e trabalhado em propostas capazes de mostrar as mulheres vencedoras que estão por todo o país, mas que não são conhecidas. Esse trabalho não foi feito e, por isso, a invisibilidade continua a caraterizar tantas e tantas mulheres. Não basta termos a Lei da Paridade. Temos de dar o passo a frente. Um passo difícil porque exige a sabedoria de conciliar o compromisso com o partido com o compromisso com a igualdade. É um estágio superior na sonoridade que nós mulheres cabo-verdianas não soubemos, ainda, como chegar.

5. E porque afinal ainda continuamos a suportar tanta desigualdade, a afetar grande parte do nosso tempo diário com trabalho não remunerado, quando devíamos estar a descansar, e não obstante a maior esperança de vida que temos, entendo que ainda não estão reunidas as condições para subir a idade de reforma da mulher para os sessenta e cinco anos para igualar à do homem. Nesta matéria da igualdade de homens e mulheres na idade de reforma, li um artigo que dizia que essa diferença de idade que existe na lei é uma reminiscência do patriarcado. Como os homens se casam com mulheres mais novas, dava jeito que quando se reformassem, as mulheres também o fizessem, para lhes fazer companhia! Pois, não sei qual a verdade desta ideia. O que sei é que me parece que hoje ela traduz o reconhecimento de que a mulher trabalha por conta de outrem 8 horas diárias e depois trabalha mais 8 ou mais horas no cuidado exclusivo da família. Por isso, uma forma de compensar tanto trabalho é mesmo perceber que a mulher deve ter direito a se reformar mais cedo. Progressivamente, conforme os dados cientificamente apurados sobre a situação da mulher cabo-verdiana forem demonstrando que a igualdade já chegou ou está a melhorar relativamente à distribuição do uso do tempo por homens e mulheres, então teremos condições para ir esbatendo, até igualar, esta diferença na idade de reforma.

6. Os aplausos vêm de França e replicam-se em muitos locais do mundo por causa da aprovação nesse país da emenda constitucional que introduz na Constituição o direito da mulher à interrupção voluntária da gravidez. Assumo-me como feminista. Isso não me impede de sentir que gostaria muito mais que a festa se fizesse porque nenhuma mulher mais se visse na situação de ter de acabar a vida que nela se gera. Que o seu direito ao corpo fosse percebido e respeitado por todos e não mais houvesse violações. Que as mulheres e meninas deixem de ser usadas como armas de guerra. Que nenhuma mulher se sinta obrigada a fazer uma IVG por não ter condições económicas, ou porque pode perder o emprego ou a possibilidade de progredir na carreira enfim, que os aplausos sejam por um motivo que reconheça a dignidade da mulher de ser e se realizar. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1163 de 13 de Março de 2024.

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Autoria:Lígia Dias Fonseca,18 mar 2024 7:50

Editado porAndre Amaral  em  18 mar 2024 7:50

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