Quando falamos em democracia, estamos a fazer referência à democracia moderna - democracia liberal e representativa, porquanto as democracias modernas são fundamentalmente regimes liberais no sentido de serem herdeiros da tradição do liberalismo político, ou seja, em que o povo soberano não governa diretamente, mas delega o poder de governar em representantes eleitos, os quais, se presume governarem de acordo com as preferências populares, (André Freire, 2015).
Ora os partidos e os sistemas partidários, em democracia, têm um papel fulcral na delegação do poder de governar dos cidadãos nos seus eleitos e, recordando uma metáfora antiga, os partidos são a ponte que liga os cidadãos à governação. É, pois, através dos partidos que os eleitos delegam o poder nos seus representantes, ao votarem em forças partidárias (ou candidatos associados a estes) com os seus programas específicos.
Além do mais, a política é uma atividade que se pode melhorar, mas, sobretudo, é algo inevitável. Os populistas ignoram ou ocultam esta inevitabilidade; espalham a desconfiança em relação aos políticos como se fosse possível que a sua atividade passasse a ser desempenhada por quem não é político ou por aqueles que atuam como se não fossem.
Hodiernamente, a paisagem política polarizou-se em torno do pelotão dos cínicos tecnocratas e dos sonhadores populistas; os primeiros servem-se da complexidade das decisões políticas para desvalorizar as obrigações de legitimação, ao passo que os segundos costumam desconhecer que a política é uma atividade que se leva a cabo no meio de uma grande quantidade de condicionantes.
Esta abordagem ajuda-nos a compreender amiúde a expressão “sem partidos não é possível termos democracia” pelo menos a democracia representativa por um lado e, por outro lado, combater um pouco a mentalidade antipolítica e antipolíticos reinantes na sociedade.
Nesta conformidade, podemos argumentar com Bernard Crick (1962), teórico político inglês, no seu famoso livro de filosofia política, em defesa da Democracia, o seguinte: “… a política é uma atividade que tem de ser protegida tanto contra aqueles que a querem perverter como perante aqueles que alimentam expetativas desmesuradas em relação a ela”. Seguindo os seus ensinamentos, boa parte do descontentamento com a política explica-se por uma série de mal-entendidos acerca da sua natureza. Há críticas certeiras em relação ao modo como a política é levada a cabo e outras cujo radicalismo provém do facto de não se fazer a mais pequena ideia daquilo que a política implica.
Neste sentido, os partidos são essenciais para clarificar as opções que estão à disposição dos eleitores; servem igualmente para formar os cidadãos, selecionar os candidatos, etc. A este propósito, convém dizer que as instituições educativas desempenham igualmente um papel fundamental na implantação dos hábitos que permitem o bom funcionamento do jogo democrático.
Com estas aportações pedagógicas, importa frisar que em democracia, não há nenhum assunto, que seja à partida tabu, desde que estribado em princípios, caracterizados por um Estado de direito cujas regras de funcionamento são objeto de um largo consenso.
Estes tópicos vieram ao espaço público na sequência da intervenção do Senhor Primeiro-ministro, Ulisses Correia e Silva, na qualidade de Presidente do MpD, onde teria afirmado que “faria de tudo, custo o que custar” para vencer a Câmara Municipal da Praia”.
Assim, afigura-se pertinente perguntar: é percetível algum maldizer nesta afirmação? Ele terá violado alguma regra? Onde está a liberdade de expressão? Na qualidade de Presidente do MpD, não pode manifestar a sua ambição? A liberdade de expressão, não é uma condição indispensável da democracia?
Ora bem, um partido político que se preze, particularmente do arco do poder, não pode ambicionar ganhar as próximas eleições autárquicas, sobretudo na maior autarquia do país e capital de Cabo Verde? Terá cometido algum pecado ao manifestar tal ambição? É proibido sonhar? Ou estamos a brincar com a inteligência dos cabo-verdianos? Em democracia, tem de haver liberdade de expressão para que os cidadãos participem efetivamente na vida política.
Aqui chegados, importa seja lícito perguntar: por que razão a democracia exige a liberdade de expressão? Para se adquirir uma compreensão esclarecida sobre as possíveis ações governamentais, sabendo que sem a liberdade de expressão, os cidadãos depressa perderiam a sua capacidade de influenciar a agenda das decisões governamentais. Cidadãos silenciosos podem ser súbditos perfeitos para um líder autoritário, mas seriam um desastre para a democracia.
Há dias assistimos na comunicação social, o Senhor Presidente do PAICV, Rui Semedo, com pompa e circunstância, a traçar a meta do seu partido para as próximas eleições autárquicas, dizendo taxativamente que “no mínimo o PAICV irá ganhar 12 Câmaras”. Pergunta-se: Não é legítimo que ele diga isso? É a sua ambição! Para tanto, vai usar a estratégia que considere mais eficaz para conseguir o almejado. Sinceramente, não vejo algo de anormal nesta afirmação.
Analogamente, no futebol, ouvimos bastas vezes treinadores a traçarem os seus objetivos para determinadas competições e jogos, dizendo claramente que farão de tudo para vencer; que irão apostar todas as fichas para vencer os jogos. Há aqui algum problema? Alguma violação do fair-play?
Na política, a expressão “fazer de tudo para vencer” tem o mesmo significado, ou seja, ganhar dentro do campo, jogo limpo, com base no jogo democrático, respeitando as regras pré-estabelecidas. Alguém é capaz de apontar neste excerto alguma violação de princípios/valores democráticos?
Com este pano de fundo, importa que se diga claramente que temos de arrepiar o caminho, pois que a nossa experiência nos diz que no universo político, o discurso ético moralizador é que dá votos (e esse peso é inimaginável) ocupa também o primeiro lugar, mas na ação parece que inexiste.
Ademais, é lugar-comum dizer que aqueles que são éticos não precisam apregoar a prática dessa virtude e quando se usa discurso ético em excesso, discurso em torno da transparência da coisa pública e outros quejandos, o santo desconfia, ou seja, como diz o adágio popular, “quando a esmola é tanta, o santo desconfia” e, lapidarmente, podemos dizer com a ajuda de Júlio César “À mulher de César não basta ser séria, tem de parecer séria” e isto é o mais difícil! Então, está certo o ditado popular segundo o qual “não se engana a todos o tempo todo” e, relembrando o estagirita Aristóteles, no seu renomado livro, Ética a Nicómaco, “a ética é uma ciência prática”, ou seja, é para ser vivida. Na ética, a própria existência de um fato é, muitas vezes, também a existência do princípio.
Em síntese, a grande vantagem da democracia é que ela é um espaço aberto onde, em princípio, qualquer pessoa pode fazer valer a sua opinião, possibilitando mil formas de pressão. Neste espaço público, confrontam-se correntes de opinião mais ou menos organizadas em partidos, daí subscrever a tese que diz que a democracia é um regime de opinião e não um conflito de enunciados em busca da ratificação científica, “a democracia é governo por discussão porque é governo por opinião” (Urbinati, 2014). O essencial é que eles se exprimam publicamente.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1179 de 3 de Julho de 2024.