Também os tribunais ficam pelos 42%, enquanto o parlamento dos 48% que trazia de 2022 ainda desceu para 29%. Ainda a níveis mais baixos da confiança ficaram, como de costume, as câmaras municipais (30%)e os partidos políticos (29%). Para o panorama nacional ainda se destacou a polícia nacional como sendo para 26 % dos entrevistados a instituição mais corrupta.
Claramente que o quadro revelado está longe de ser o ideal e a tendência para piorar é evidente. Contudo, é preciso ter em consideração o facto de que actualmente nas democracias está a verificar-se o mesmo fenómeno de perda de confiança nas instituições chamado de recessão democrática. Ao nível nacional certamente que factores específicos contribuem para abrandar ou acelerar a tendência para a descredibilização das instituições. Nos municípios, compreende-se que devido à proximidade do poder local, o excessivo eleitoralismo facilmente cria desconfiança e divisão nas pessoas.
Quanto aos partidos políticos - cada vez mais tidos como máquinas de conquista do poder e como tal mais aptos a fazer falsas promessas, a tribalizar-se, sem uma vida interna rica e plural, e a servir um chefe - nota-se que falham no diálogo social e na captação dos anseios dos eleitores, tirando a voz a segmentos da população. No que concerne à polícia, a percentagem de pessoas que ainda a consideram a instituição mais corrupta mina a confiança que deve inspirar para fazer respeitar a autoridade do Estado e garantir a ordem e tranquilidade pública.
No topo da hierarquia do Estado, e em relação à assembleia nacional, a queda na confiança não cai fora do normal. Os parlamentos na generalidade das democracias não têm grande cotação pública devido, entre outras razões, à percepção de alguma ineficiência nos trabalhos parlamentares e ao partidarismo excessivo. Mas já é preocupante quando se trata do presidente da república, do primeiro-ministro e do governo porque indicia questões mais complicadas, designadamente a relação entre o PR e o Governo como parecem sugerir as sondagens apresentadas. Ou seja, para além do que são tensões normais entre órgãos de soberania, ou desgaste natural resultante do exercício do poder, eventualmente haverá outros factores a provocar a erosão da confiança pública.
Uma constatação feita nas democracias é a do papel exercido pelos partidos e pelos políticos na aceleração da descredibilização das instituições democráticas. Fazem-no com discursos demagógicos e populistas, contornando normas e procedimentos democráticos, ou adoptando comportamentos inéditos e desafiantes do sistema político que, por não serem imediatamente contrapostos, criam a imagem de impunidade. Os exemplos multiplicam-se por todo o lado. De facto, contribui-se para minar a confiança nas instituições pondo em causa as regras do jogo, ultrapassando ou omitindo no exercício das competências próprias e mobilizando forças ou algum sentimento anti-sistémico existente no país.
Em Cabo Verde é bem provável que parte da perda de confiança identificada nas sondagens tenha origem nessa espécie de guerrilha institucional que se instalou entre o PR e o Governo e a sua maioria parlamentar. A tensão no actual nível não devia existir considerando que o país tem um governo de maioria absoluta que não deixa muito espaço para iniciativas presidenciais potencialmente conflituantes como aconteceria se se tratasse de um governo minoritário. Mas a verdade é que se deixaram desenvolver as tensões para níveis anormais que obrigaram à auditoria do Tribunal de Contas e à investigação do Ministério Público e, na sua esteira, a fricção entre órgãos judiciais e a presidência da república. É evidente que tudo isso causa alguma perplexidade na sociedade e cria desconfiança quando questões como legalidade, transparência e responsabilização política não são tidas em devida conta. Pior ainda, quando se procura abrir outras frentes de confronto com agendas potencialmente fracturantes.
De facto, das iniciativas vindas da presidência da república não se devia esperar matéria que pusesse em causa a unidade da nação, a ordem constitucional e a unidade do Estado. A evidente união dos esforços do PR e da Fundação Amílcar Cabral e organizações afins que defendem o legado do regime de partido único na exaltação do que chamam de “memória histórica e colectiva” não é normal. Aliás, o PR teve que apressadamente vir num post no Facebook de segunda-feira, dia 16 de Dezembro, prestar “singela homenagem a todos os que terão sido presos injustamente, mesmo em períodos radicalmente revolucionários” para se distanciar do que lhes tinha acontecido nos dias 14, 15 e 16 de Dezembro, cinquenta anos atrás. Mas não pediu desculpas em nome do Estado de Cabo Verde.
Estava a referir-se aos que ele chamou de “70 opositores tidos como opositores da independência e membros da UPICV e da UDC nas ilhas de S.Vicente, Santo Antão, Fogo, Brava, Sal e Santiago” que foram encarcerados no campo do Tarrafal, reaberto para o fim, e a anteceder o Acordo de Lisboa que seria assinado no dia 19 de Dezembro de 1974. E o paradoxal é o PR estar a promover a comemoração desse acordo entre o governo português e o PAIGC, acordo esse que pressupunha essas prisões, no quadro da supressão de toda e qualquer força política, para que o PAIGC fosse partido único em Cabo Verde. Mais estranho é que tenha convidado o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, para testemunhar o acto fundante da ditadura que iria ser imposta aos cabo-verdianos nos quinze anos seguintes até o resgate da liberdade, no 13 de Janeiro de 1991.
É interessante relembrar a forma como o ministro português Almeida Santos, autor do Acordo de Lisboa, o interpretou em entrevista ao jornal Público de 11/4/2004: Assinamos o acordo e ficou descolonizado Cabo Verde. Fiz uma lei eleitoral. Houve uma grande participação da população. Eles ganharam por 92%. Elaboram uma Constituição. Acabou. Salvamos a face. A forma despachada como se referiu a isso talvez traduzia o momento do chamado PREC, Período Revolucionário em Curso, dominado pelos comunistas que, iniciado a 28 de Setembro de 1974, terminou com o levantamento de 25 de Novembro de 1975 que estabilizou a democracia liberal em Portugal. Curioso é que o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, depois de celebrar o fim do Verão Quente de 1975 em Portugal, agracie com a sua presença o golpe de força do PAIGC no Dezembro Quente de 1974 em Cabo Verde.
Os resultados da Afrosondagem vieram lembrar como em tão pouco tempo, dois anos, pôde verificar-se uma significativa erosão de confiança nas instituições. Saber as razões é fundamental para a combater, ciente do facto que são precisas instituições sólidas e inclusivas para se garantir Liberdade e criar condições para o desenvolvimento. Não é fácil, mas pelo menos dos actores políticos, dos partidos deve-se exigir que respeitam as regras do jogo democrático e salvaguardem a ordem constitucional. Da sociedade deve vir mais pressão para evitar que cinismo e hipocrisia dominem a vida política e que no fim, com o relativismo e o niilismo, se deixe para o povo só a consolação da idolatria.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1203 de 18 de Dezembro de 2024.