Em tempo de Natal, solidariedade e união para renovar a confiança

PorA Direcção,27 dez 2024 7:27

​Os últimos resultados das sondagens em relação à confiança nas instituições democráticas e à propensão para a emigração da população cabo-verdiana vieram confirmar o que intuitivamente já era percebido pela generalidade das pessoas. De facto, embora ainda se continue a acreditar na democracia, é maior a impressão de que as instituições e os titulares dos órgãos públicos estão a ficar aquém do esperado quanto à postura, à qualidade de prestação de serviço público e ao cumprimento das promessas.

A isso se junta a percepção de que, apesar de o país ter recuperado da crise da Covid-19 e de continuar a crescer à volta de 5% do PIB, tal crescimento não se mostra suficiente para responder às expectativas. Daí a vontade de emigrar que não é sentida só nos jovens e desempregados como também faz mover licenciados e profissionais iniciados na carreira, todos à procura de outros horizontes.

Na sequência da publicação das sondagens assistiu-se ao coro habitual de lamentações da classe política, da comunicação social e de personalidades auto-intituladas independentes. Não deixa de ser curioso que nos lamentos destacam-se precisamente alguns dos que, por acção, omissão e desinformação sistemática, vêm contribuindo para a erosão da confiança, não cumprindo ou contornando as regras e procedimentos do jogo democrático. Mas, mesmo a carpir a descredibilização, não se afrouxa no ataque às instituições, como se pôde constatar nos últimos dias. Provavelmente há quem, apelando para “não chorar sobre o leite derramado” procure ganhar vantagem num ambiente político de instituições fragilizadas, dos mídias tentados a um certo cinismo e de cidadãos descrentes.

De facto, logo após o choque das conclusões das sondagens ouviu-se o grito de “golpe institucional contra o presidente da república”, proferida por deputados da oposição, simplesmente porque o governo, para contornar um veto do PR a um decreto-lei, tinha submetido uma proposta de lei para discussão e aprovação ao parlamento. Como não há poderes absolutos no sistema de separação de poderes o mais normal é que o governo recorra ao parlamento, o titular supremo do poder legislativo segundo os constitucionalistas, para fazer avançar a sua agenda legislativa. O que é estranho é ver deputados a não querer cumprir o seu mandato de discutir e votar leis e a pretender que o PR tem o papel de co-legislador e a tomar o veto presidencial como final.

O insólito não fica só aí. Assistiu-se no mesmo dia da publicação das sondagens a declarações do presidente de um partido na saída de um encontro com o PR afirmando que o objectivo da audiência tinha sido de solicitar a não recondução do Procurador-Geral da República, de peticionar o indulto de um cidadão condenado por ataque ao Estado de Direito e de pedir uma revisão constitucional para instituir o voto obrigatório. Foram solicitações que por várias razões de legalidade democrática não tem cabimento serem feitas por partidos políticos. Apesar disso, houve oportunidade para as fazer e foi enorme a cobertura mediática que receberam durante vários dias. Ninguém diria que com tal nível de exposição a representatividade do partido foi um total de 475 votos nas autárquicas de 1 de Dezembro.

Espanta, por outro lado, que depois de se dar megafone a ruídos anti-sistémicos se venha, aparentando inocência, deplorar a perda de confiança nas instituições. Piora a situação quando outros poderes, pelo não exercício pleno das suas competências e mandatos, permitem que o ruído criado, ameaçando cobrir tudo, dificulte o diálogo, o confronto de opiniões com factos e a busca de soluções. Em particular, o governo poderá estar a consolidar a impressão de fragilidade, com consequências para o equilíbrio de poderes fundamental para a democracia. Faltou pronunciamento efectivo e acção resoluta e enérgica, demonstrativos de assunção de responsabilidade pelos resultados eleitorais e de retomada de iniciativa, para diminuir incertezas no novo quadro político e ajustar as suas políticas para o período até às legislativas.

E tal como a natureza, também o poder tem horror ao vazio. O país precisa de estabilidade e de orientação para não ficar ao sabor de impulsos demagógicos, populistas e iliberais que bem no fundo questionam a ordem constitucional existente e podem pôr em causa as liberdades e a segurança. Aliás, a aceleração verificada na perda de confiança nas instituições de 2022 para 2024 constitui um alerta. Provavelmente acompanhado de diminuição do capital social na forma de confiança interpessoal e de cultura cívica, poderá estar a indiciar a presença de factores de desarticulação do tecido social que não devem ser ignorados. E é no exacerbar desses factores, com a mobilização das paixões, o convite para não cumprir as regras do jogo democrático e a ambição de ganhar sem olhar a meios, que o trabalho demagógico e populista tende a incidir.

É verdade que fenómenos similares estão a acontecer ao nível global, mas localmente há especificidades que devem ser identificadas e combatidas para se poder elevar a confiança ao nível compatível com uma sociedade livre e próspera e com instituições fortes e inclusivas. A aposta na solidariedade, e em geral, na renovação do capital social é fundamental para se encontrar os equilíbrios essenciais para a coesão social, que por sua vez é necessária para promover o crescimento, combater as desigualdades e aprofundar o sentido de pertença. Dos governantes e de toda a sociedade deve vir um sinal de engajamento nesse sentido.

Quando as potencialidades criadas pela tecnologia moderna ampliam as ligações com o mundo, expõem indivíduos a quantidades anteriormente inimagináveis de informação e criam expectativas sem horizonte fixo, é essencial que haja um contrabalanço ao nível micro de laços familiares, de confiança interpessoal e de pertença à comunidade. Celebrar o Natal com o seu espírito de solidariedade e de união é um dos muitos passos importantes a serem dados no sentido de afirmação da identidade e de renovação da confiança para reestabelecer os equilíbrios, que tanto se precisa para a saúde mental individual como para uma integração virtuosa na comunidade que conduza a uma vida livre, próspera e feliz Comecemos por celebrar bem o Natal.

O Expresso das Ilhas deseja um Feliz Natal e um próspero Ano Novo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1204 de 24 de Dezembro de 2024.

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:A Direcção,27 dez 2024 7:27

Editado porSara Almeida  em  28 dez 2024 11:20

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.