Celebrar a Constituição para aumentar confiança e resiliência

PorA Direcção,27 set 2024 7:29

​Celebra-se hoje, 25 de Setembro, o trigésimo segundo aniversário da Constituição da República. Trinta e dois anos atrás, pela primeira vez Cabo Verde, enquanto país independente, cumpria o estipulado no artigo 16º da declaração universal dos direitos humanos e do cidadão aprovada em 1789 na sequência da revolução francesa: A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição. A partir de 25 de Setembro de 1992 passou a ter uma Constituição com os direitos fundamentais garantidos, o poder legitimado pelo voto popular, a separação dos poderes, o Estado de Direito democrático e a independência dos tribunais.

Finalmente Cabo Verde conseguia basear a sua ordem constitucional nos princípios e valores civilizacionais hoje considerados universais que tinham sido enunciados mais de duzentos anos antes nas revoluções americana e francesa. A ascensão à civilização e à modernidade que isso representou foi acompanhada nos anos seguintes de crescimento económico e social num ritmo nunca antes verificado à medida que se libertavam as energias sociais na forma de iniciativa individual, criatividade e disposição para correr risco. Contribuía ainda para motivar as pessoas a confiança que naturalmente emerge da vivência num Estado de Direito democrático, com governos estáveis e garantia de alternância no governo e transferências pacíficas de poder.

As dificuldades nestas duas décadas deste século em propiciar as taxas de crescimento, que o país precisa para se desenvolver e eliminar a pobreza extrema, interpelam a todos o quão efectivo tem sido o aproveitamento dessas energias individuais e sociais libertadas. Nesse sentido, interroga-se o quanto a manutenção de uma economia a funcionar de forma ordeira tem servido de incentivo à iniciativa privada e o quanto a existência de uma cultura meritocrática tem contribuído para motivar as pessoas para serem agentes de mudança e inovação. É também de perguntar o quanto é que, pela promoção de uma cultura de respeito à ordem constitucional, se tem reforçado as bases da confiança nas instituições, confiança cívica e, por extensão, confiança interpessoal.

O facto de um número crescente de pessoas estarem a ponderar a possibilidade de emigração não só à busca de trabalho e de melhores salários como de possibilidade de fazer uma carreira profissional e académica já é preocupante. Pode sugerir que não se está a explorar bem o potencial do país, em particular do seu capital humano. Ter outras pessoas a querer deixar o país à procura de um ambiente mais seguro, de melhores cuidados de saúde e mais favorável para a educação dos filhos é bastante complicado. Levanta outras questões de confiança na viabilidade do país ou na capacidade de produzir uma liderança à altura dos desafios actuais e focada na prossecução do bem público.

Crises sucessivas (secas, pandemia da covid-19, guerra na Ucrânia e inflação geral dos preços) e num curto espaço de tempo podem criar algum desânimo, mas o que se revela perturbador são as fragilidades da liderança política enquanto os seus titulares disputam influência e esforçam-se por ter protagonismo pessoal e ganhos eleitorais. Notam-se as perdas em sede de responsabilização política, de prestação de contas, de transparência e de ética republicana. Daí pode ser um passo para se contestar o sistema político e exacerbar as tensões naturais que asseguram a sua dinâmica e estabilidade recorrendo aos posicionamentos anti-sistema que caracterizam muitos dos populismos em voga. É mais fácil isso acontecer quando disputas ideológicas remanescentes do velho regime de partido único continuam a ter vida própria, insuflada por instituições do Estado e actores políticos prominentes em colisão directa com os princípios e valores constitucionais.

Os trinta e dois anos da vigência da Constituição da República têm sido de estabilidade política, de governos a cumprir mandatos completos e já com duas alternâncias na governação sem crise. Na base deste sucesso está o sistema de governo de base parlamentar em que o presidente da república não governa e quem define e implementa as políticas interna e externa do país é o governo suportado pela maioria no parlamento perante o qual é exclusivamente responsável. Desde dos primórdios da II República certas contestações à ordem constitucional tomaram a forma de críticas dirigidas ao sistema de governo no sentido de acentuar os poderes presidenciais em detrimento do seu pendor parlamentar. Mesmo as décadas de estabilidade e de tensões sem grande impacto entre o PR e o Governo, somadas às alterações feitas nas revisões constitucionais de 1999 e 2010 no sentido dessas críticas, não atenuaram o teor do discurso produzido nesse sentido. Assiste-se agora ao seu recrudescimento nas actuais tensões entre esses dois órgãos de soberania.

Curiosamente, o momento de menor tensão terá sido quando José Maria Neves era primeiro-ministro e em entrevista publicada em Outubro de 2014 na revista Vozes das Ilhas revelava ser “contra o sistema presidencialista (…) para evitar a excessiva personalização do poder”. Justificava com o facto que podia abrir “espaços a clientelismos, a compadrios, a jogos de bastidores, a fragilização dos partidos políticos”. Na entrevista ainda mostrou-se a favor de um PR eleito pelo parlamento e defendeu a adopção de um regime de chanceler, supõe-se à imagem da Alemanha onde o chanceler é eleito pelo parlamento e seu peso na orientação das políticas do governo é maior do que o dos primeiros-ministros noutros países. De lá para cá, deve ter mudado de ideias e, pelo conteúdo do ante-projecto da presidência da república dado a conhecer ao público no Facebook pelo chefe da casa civil, percebe-se que se tornou desejável um protagonismo que vai mais além do verificado com os três presidentes que o antecederam.

É evidente que num sistema marcado pela separação de poderes os equilíbrios perdem-se quando à acção não é contraposta uma reacção igualmente forte e em sentido contrário. Nas legislaturas anteriores a 2016, a firmeza da relação entre o governo e a sua maioria parlamentar não deixavam margens para dúvidas. Nos últimos anos o aparente descaso do primeiro-ministro em agir como presidente do partido perante sinais de fractura na maioria parlamentar revelam fragilidades que tendem a acentuar tensões entre os órgãos de soberania no exercício das respectivas competências. É o que aconteceu entre o PR e o Governo, mas também entre o governo e a assembleia nacional que neste caso precipitou o pedido de demissão da direcção do grupo parlamentar do MpD face à atitude de governantes e instituições do Estado de se associarem oficialmente às comemorações sem aprovação legislativa prévia.

Uma outra pressão sobre o sistema democrático, a exemplo do que se tem verificado noutras democracias, tem vindo de manifestações de carácter populista que tem como alvo o poder judicial. Apoiando-se nas deficiências da justiça, em particular na morosidade e na falta de eficácia em certos casos, ataques dirigidos ao sistema no seu todo chegaram mesmo ao Tribunal Constitucional e estiveram à beira de pôr em confronto órgãos de soberania. Uma eventual colisão foi evitada a tempo pela decisão do PR em rejeitar liminarmente a petição apresentada. Infelizmente, algo similar parece estar a repetir-se em relação ao Tribunal de Contas. Apoiando-se no facto de que foi ultrapassado o tempo de mandato dos juízes do TdC, como aliás de vários órgãos para cuja nomeação participam órgãos do poder político, para falar de precariedade e transitoriedade, quando é sabido que os mandatos dos juízes só terminam com a posse de um novo juiz, pode configurar pressão sobre os tribunais.

Com questões sérias de prestação de contas e responsabilização política por resolver, a última coisa que podia acontecer é qualquer sinal vindo de actores políticos a procurar deslegitimar o TdC. A vítima maior disso seria a perda da confiança na democracia e nas suas instituições quando o que urge neste 25 de Setembro é que se reforce a confiança na ordem constitucional aprovada há 32 anos. Para que o país possa estar em melhor posição de enfrentar os enormes desafios que tem para frente. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1191 de 25 de Setembro de 2024.

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Autoria:A Direcção,27 set 2024 7:29

Editado porAndre Amaral  em  20 nov 2024 23:25

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