Ter claro a natureza e o papel das FA é fundamental para a estabilidade democrática

PorA Direcção,31 jan 2025 8:17

Os dados do estudo publicados pela Afrosondagem em Dezembro último apontavam as Forças Armadas como a instituição de maior confiança dos cabo-verdianos, apesar do nível ter baixado de 74%, em 2022, para 56%, em 2024, em linha com a queda geral de confiança nas instituições da república.

 Entre as razões encontradas para o descrédito da população estão a excessiva polarização político-partidária e as tensões entre órgãos de soberania devidas a acções e omissões no exercício das suas competências.

As Forças Armadas (FA), talvez pela sua natureza apartidária, parecem estar menos sujeitas, mas não imunes a essa erosão de confiança. Evitar que fossem afectadas pelo ambiente político crispado existente, que tende a aprofundar-se no ciclo eleitoral já iniciado, devia ser a prioridade de todos. Infelizmente, não é o que se constata com a pretensão do presidente da república em incluir as Forças Armadas na agenda da chamada Semana da República entre 13 e 20 de Janeiro a qual, ano após ano, tem-se revelado como uma semana da discórdia. Uma semana reconhecidamente de desconforto institucional e de manifestações de divisões e mágoas antigas que vêm à superfície a reboque do esforço de exaltação de figuras que foram o rosto da ditadura durante quinze anos.

Realmente não se vê que propósito poderia servir a inclusão das Forças Armadas em celebrações que sempre se revelaram divisivas. Aliás, durante anos manteve-se sempre o 15 de Janeiro, Dia das Forças Armadas, fora das contendas da Semana da República. Recentemente, na lógica cada vez mais adoptada por certos actores políticos de reforçar ou reiterar atitudes com claros efeitos negativos no sistema político, percebe-se que a insistência em fazer diferente é para ter mais um momento de exaltação das figuras reconhecidamente partidárias que teriam formado o núcleo fundador das Forças Armadas.

O problema é como reconciliar a evocação dessas figuras com o que caracteriza as FA como forças armadas republicanas. De acordo com a Constituição de 1992, as FA estão ao serviço da nação, são rigorosamente apartidárias e mantêm estrita imparcialidade e neutralidade políticas. Quer dizer que não são instrumento de nenhum partido ou órgão de soberania, subordinam-se aos órgãos de soberania nos termos da Constituição e da lei e não podem aproveitar da sua função para qualquer intervenção política. E enquanto componente militar da defesa nacional cumprem os seus objectivos com respeito pela ordem constitucional e pelo Estado de Direito democrático. Não se vê como se pode compatibilizar esses princípios e valores das FA com um suposto passado em que teria existência antes da independência, seria o braço armado do partido único e teria intervenção repressiva do povo em defesa da ditadura do partido único.

Mas é o que o PR tentou fazer no seu discurso na cerimónia de condecoração das FA quando diz que as forças armadas devem ser republicanas como “têm sido até este momento, desde a independência”. Na prática, acaba por alimentar a confusão sobre a natureza das FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo) e das FA. As FARP eram uma força supranacional com comando geral na Guiné e um ramo cabo-verdiano e estavam definidas no texto da proclamação da independência de Cabo Verde como “braço armado do PAIGC”. Na Constituição de 1980, artigo 18º nº 3, as FARP são definidas como uma instituição da Unidade dos povos da Guiné e de Cabo Verde. O dia comemorativo das FARP era, como é ainda na Guiné-Bissau, o de 16 de Novembro, dia da sua criação, em 1964, na sequência do congresso de Cassacá do PAIGC. A data só deixou de ser comemorado em Cabo Verde, em 1988, quando se adoptou o dia 15 de Janeiro (decreto nº5/ 88) para celebrar o juramento do “núcleo fundador”, em 1967, em Cuba.

Um outro elemento da confusão da natureza entre FARP e as FA é o de as ligar à putativa luta armada pela independência de Cabo Verde. Mas como diz Agnelo Dantas, um dos do grupo de Cuba treinado durante dois anos e meio para desembarque em Cabo Verde, “não tínhamos uma ideia real do que se passava em Cabo Verde de modo a podermos avaliar se as necessárias condições objectivas e subjectivas [para a luta] pudessem estar já criadas” (Jornal Voz di Povo, 16/1/88). No livro ”Biografia da Luta” da autoria de Rosário da Luz, Manecas Santos, também do grupo, fala do “reconhecimento da impossibilidade de desencadear uma luta armada no arquipélago com sucesso”, o que teria levado Amílcar Cabral a cancelar a aventura.

Só depois da morte do líder fundador do partido e na sequência do II congresso do PAIGC, realizado em 1973, e sem o seu contraditório, é que se iria criar uma Comissão Nacional de Cabo Verde (CNCV) para dinamizar a acção política nas ilhas. Ainda de acordo com Manecas Santos no referido livro, ele que era um dos combatentes mais proeminentes na estrutura militar do partido, não foi convidado para a integrar. A CNCV, segundo ele, foi estabelecida fundamentalmente para coordenar a distribuição do poder no futuro Estado de Cabo Verde. A questão que clama por uma resposta é por que insistir em ligar as forças armadas de uma democracia à uma jogada de poder que implicou a criação de um ramo do braço armado do PAIGC (FARP) no país depois da independência, tendo no topo comandantes criados por decreto-lei 8/75, 18/80 assinados pelos próprios.

O cientista político Samuel Huntington nos seus livros ”O Soldado e o Estado” e “Ordem Política em Sociedades em Mudança” chama a atenção para a problemática central das relações entre o poder civil e os militares na estabilidade das democracias. Dependendo do caminho seguido na institucionalização da democracia e em relação às forças armadas, não poucas vezes tendem a ficar resquícios de um papel político interventivo anterior que faz os militares resistirem ao completo regresso aos quartéis, ou os mantêm sensíveis a apelos para alguma interferência no processo político. Ultrapassar ideias pretorianas a favor de certos actores políticos ou de tutela sobre o regime democrático é fundamental para a estabilidade das democracias. Portugal levou seis anos (Revisão Constitucional de 1982) para se libertar do Conselho da Revolução enquanto órgão de soberania e de ter as forças armadas e não o Estado a garantir a independência nacional e o regular funcionamento das instituições (artigo 273º da CRP original). A Turquia só muito recentemente se viu livre da tutela dos militares. Vários países em África foram há poucos meses alvos de golpes militares e é facto notório que boa parte da instabilidade política na Guiné-Bissau vem da cultura de intervenção política das FARP, outrora braço armado do partido.

Em Cabo Verde, claramente que não devia servir a ninguém a evocação de tradições militares que não têm base na realidade vivida na Pátria cabo-verdiana ou de memórias de um papel institucional em directo conflito com o princípio de subordinação da organização militar ao poder civil constitucionalmente legitimado. Hoje não se tem a mesma situação de 1975 quando a designação do presidente da república como comandante supremo das FARP era a única referência às forças armadas na Lei de Organização Política do Estado (LOPE). Na Constituição de 92 são competentes em matéria de defesa nacional os vários órgãos de soberania, o Presidente da República, enquanto comandante supremo das FA e presidente do Conselho Superior da Defesa Nacional, a Assembleia Nacional, cabendo ao Governo a condução da política de defesa e a função de órgão superior da administração militar. Não há que criar equívocos a esse respeito.

Como diz o constitucionalista Vital Moreira “num Estado de direito constitucional não deve haver lugar para o excesso ou abuso de poder dos titulares de cargos políticos, muito menos por parte do principal magistrado institucional da República”. Assim evita-se em boa medida a perda de confiança nas instituições que todos parecem lamentar. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1209 de 29 de Janeiro de 2025.

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Autoria:A Direcção,31 jan 2025 8:17

Editado porAndre Amaral  em  31 jan 2025 11:20

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