“Há vários factores que explicam a falta de confiança. Por exemplo, na questão do Primeiro-ministro e do Presidente da República, os conflitos institucionais também se reflectem naquilo que os cidadãos pensam dessas instituições. Era uma relação estável e o que constatamos, ultimamente, é que não o tem sido. E, também, do ponto de vista económico, as condições de vida dos cabo-verdianos têm decaído.”, analisou José Semedo, Director Geral da Afrosondagem, em declarações aos jornalistas, tentando justificar a desilusão e ao afastamento dos cabo-verdianos em relação às instituições e à própria democracia, que os dados mostram.
Na verdade, o cenário mostrado pelo 10.º round do estudo sobre a qualidade da democracia e da governação em Cabo Verde é, no geral, bastante negativo. Entre os temas abordados, que vão da avaliação do desempenho do governo, às maiores preocupações dos cabo-verdianos, passando pela percepção a corrupção, três se destacam.
A começar, precisamente, pela queda na confiança e avaliação de desempenho das instituições.
Instituições perdem a confiança
A queda nas instituições da República é, como já se referiu, generalizada. Numa comparação com dados de 2022 (9.º round) vemos “uma tendência de descontentamento” e uma menor confiança em todas as instituições.
Começando pelo Presidente da República e Primeiro-ministro, vê-se uma quebra notável no nível de confiança quanto na avaliação de desempenho. De acordo com os dados apresentados, o Presidente da República viu a confiança cair de 65% (em 2022) para 40, enquanto o Primeiro-ministro, em quem confiavam 57% dos inquiridos em 2022, agora reúne a confiança de apenas 31%.
Se recuarmos mais no tempo, nos arquivos da Afrosondagem vemos que tanto um como outro registam o índice de confiança mais baixo desde, pelo menos, 2005. E o mesmo acontece com basicamente todas as instituições, eleitas e não eleitas, abrindo caminho para os imensos desafios que a democracia já vem enfrentando em todo o mundo.
Começando pelos órgãos eleitos, a Assembleia Nacional viu a confiança cair de 48% para 29%; enquanto o executivo camarário (presidente e vereadores) passou de 46% para 30%. Os partidos da oposição também não têm a confiança da população: mais de metade da população (52%) confiava neles em 2022, agora só cerca de três em cada dez cidadãos (29%) expressam essa confiança.
Seguindo a mesma tendência, a confiança na Comissão Nacional de Eleições caiu para metade: de 61% em 2022, passou para 31% em 2024. Na justiça, a confiança nos tribunais desceu de 60% para 42%. Nem os líderes religiosos escapam à tendência, passando de 64% para 45%, e a Polícia, em quem 60% dos inquiridos confiavam em 2022, agora é vista como confiável por apenas 45%.
Metade dos cabo-verdianos (50%) afirma confiar no Ministério da Saúde, uma entidade que entra nos inquéritos pela primeira vez. Esta é, aliás, a par com as Forças Armadas, a única instituição com índice de confiança “suficiente”. Embora a instituição castrense se mantenha como aquela em que os cabo-verdianos mais confiam, cai acentuadamente de 74% para 54% na percentagem de inquiridos que dizem “confiar muito ou razoavelmente” nas FA.
Governo com nota negativa
A avaliação do desempenho destas figuras sofreu um grande declínio: o Presidente viu essa aprovação passar de 72% em 2022 para 55% em 2024, e o Primeiro-ministro, de 60% para 47%.
O mesmo acontece, embora de forma menos acentuada, com todas as outras instituições do poder, que vêem a maioria da população a desaprovar “a maneira como as seguintes têm desempenhado as suas funções nos últimos 12 meses”.
A destacar, como segundo dos três pontos atrás mencionados, a avaliação de desempenho negativa do governo.
O chumbo é dado tanto ao nível da área económica como social.
No desempenho económico, na verdade, a avaliação melhora ligeiramente em relação a 2022, mas continua expressamente reprovadora. Nove em cada 10 inquiridos (91%) consideram que o Governo tem falhado em manter os preços estáveis (92% em 2022); 84% acha que a redução da pobreza está a ser mal gerida (88% em 2022); 83% avaliam como má ou muito má a criação de empregos (86% em 2022); 78% avaliam negativamente a melhoria da condição de vida dos pobres (79% em 2022) e, por fim, 66% dizem que o governo não está a gerir bem a economia (68% em 2022).
Se houve uma leve melhoria na avaliação da gestão executiva na área económica, na área social e infra-estruturas deu-se o inverso. A insatisfação aumentou na luta contra a criminalidade e no acesso a serviços básicos. Em concreto, 83% acham que o governo não está a gerir bem a redução do crime (contra 81% em 2022); nem a prevenção ou resolução de conflitos violentos (73% em 2024, 68% em 2022).
Também há mais inquiridos insatisfeitos no que toca a disponibilização de água e saneamento (58%, contra 54% e 2022); à manutenção das estradas e pontes (48%, em 2024, 40% em 2022) e no fornecimento de um serviço de electricidade de qualidade (47%, contra 44% em 2022).
Saúde e educação são áreas onde a avaliação cai mais acentuadamente, mostrando o agudizar do descontentamento. Na melhoria dos serviços básicos de saúde 67% dos inquiridos consideram o desempenho negativo (57% em 2022). Quanto à educação, 53% acreditam que o governo falhou em atender às necessidades da área (42% em 2022).
Na luta contra a corrupção no governo, o governo mantem-se nos 68% (de avaliação negativa, entenda-se). O único aspecto em que houve uma melhoria da avaliação do governo foi na protecção e promoção do bem-estar das crianças vulneráveis, onde a desaprovação caiu de 48% em 2022 para 37% em 2024.
Desemprego, o eterno problema
“Desde que iniciámos este inquérito, em 2002, o desemprego é apontado como o maior problema de Cabo Verde, e a necessidade de uma solução urgente é clara”, referiu Deolinda dos Reis, da Afrosondagem, durante a apresentação dos dados.
Na 10.ª ronda do estudo, 55% dos inquiridos indicam novamente o desemprego como um dos três principais problemas do país. Em segundo lugar, com 51% de menções, surge a questão da saúde.
“Embora muitas pessoas se mostrem satisfeitas com o Ministério da Saúde, ainda é um problema que Cabo Verde deve resolver. O sistema de saúde deve melhorar”, acrescentou a especialista em estatísticas.
Outra prioridade para os cidadão, o governo deve resolver com urgência, é a criminalidade, que é apontada por 48% dos cabo-verdianos.
Corrupção e retaliação
A percepção crescente de corrupção é outra constatação preocupantes deste estudo. Mais de metade dos inquiridos (51%) considera que a corrupção aumentou no país. Essa percepção de que há um aumento era de 39% em 2017 e 47% em 2022.
No entanto, olhando os dados sobre a percepção da corrupção por sector, as diferenças em relação a 2022 não são significativas. Com um índice de confiança de 45%, a polícia é “o sector com maior percepção de corrupção, com 26% dos entrevistados em 2024 acreditando que “a maioria” ou “todos” estão envolvidos em corrupção”. Porém, isso representa uma ligeira queda, de 1 ponto percentual, em relação a 2022, quando essa percepção era de 27%.
Regista-se, entretanto, um ligeiro aumento na percepção de corrupção entre “Primeiro Ministro e funcionários do gabinete”, com a taxa a subir 22% em 2022 para 24% em 2024. Este é o único sector em que a percepção de corrupção se agravou. Sendo que de maneira geral, os índices de percepção de corrupção nos diferentes sectores rondam os 20%.
Quanto à performance do governo na luta contra a corrupção, a percepção dos que a avaliam como má ou muito má mantém-se nos 68% (igual a 2022). Contudo, ao expandir o período de análise, a tendência de aumento torna-se evidente: em 2011, apenas 43% dos inquiridos avaliavam negativamente o desempenho do governo nessa área, número que subiu para 61% em 2017, e continua a crescer desde então.
Um dado muito significativo é o facto 3 em cada 4 cabo-verdianos (75%) considerar que há “risco de retaliação ou outras consequências” se o cidadão comum denunciar práticas de corrupção.
Abusos sexuais como crime público
Nestes estudos elaborados pela Afrosondagem, para a Afrobarometro, uma rede de pesquisa pan-africana, foram também abordadas questões de âmbito nacionais, isto é “questões específicas de cada país, que não são comparáveis com outros países”, como explica Deolinda dos Reis. Foram colocadas 10 questões, sendo de destacar as que se relacionam com os abusos sexuais contra as crianças.
Este tema foi muito solicitado “no round 9: o esforço do Governo na protecção infantil contra abusos sexuais”, contou a técnica, durante a apresentação.
Metade dos inquiridos (50%) considera que o governo está a fazer “um pouco mais” contra a problemática, mas mais de um terço (37%) considera que os esforços não são suficientes.
Dentro deste contexto, uma outra questão colocada prendia-se com a imposição de leis mais severas para os agressores, sendo que 92% dos inquiridos concorda com a medida. Além disso, 89% concorda que se torne um crime público. Ou seja, cerca de 9 em 10 inquiridos responderam positivamente a: “a lei deve conferir poderes ao Ministério Público para processar os autores de crimes sexuais, independentemente do facto de as vítimas apresentarem ou não queixa às autoridades”.
Crispação PR-PM
Por fim, voltamos à questão inicial das relações entre Presidente da República e Primeiro-ministro, que constituem o terceiro ponto a destacar nesta 10.ª ronda, e também se enquadram nas “questões nacionais”.
Ao analisar mais profundamente os dados, verifica-se que um terço (33%) dos inquiridos considera que a relação entre as duas instituições é “um pouco tensa” ou “muito tensa”, enquanto 35% considera que é, pelo menos, um pouco cordial. Outros 26% afirmam não saber o suficiente sobre o tema para formar uma opinião.
“Ou seja, os cabo-verdianos estão divididos na questão da relação do Presidente da República e do Primeiro-ministro”, sublinhou Deolinda dos Reis.
A título de exemplo, em 2014, 57% dos inquiridos considerava que PM e PR trabalhavam bem juntos, e 22% consideravam que havia crispação.
No presente ano, a percepção de crispação subiu e quanto a quem será o responsável pela actual relação “tensa”, a maioria (46%) acha que são ambos; 26% diz que é o Primeiro-ministro, 16% que o Presidente da República; e 5% responde que não é nenhum.
Para concluir, e falando do sistema de governo, 62% considera que o actual modelo de governação, em que há um Primeiro-ministro que governa e um Presidente que tem poderes limitados ,deve ser mantido, enquanto 31% preferiria um governo presidencialista, onde o Presidente tenha plenos poderes de governação.
Voltando ao passado, em 2011, 72% concordavam que vale a pena ter um Primeiro-ministro que governe e um Presidente com poderes limitados.
Voltando a 2011, 72% concordavam que o modelo vigente - Primeiro-ministro a governar e o Presidente com poderes limitados - era o mais adequado. Um em cada dez cabo-verdianos parece ter mudado de opinião.
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Este estudo (o 10.º do género, realizado pela Afrosondagem) contou com uma amostra de 1200 indivíduos, inquiridos nas ilhas de Santiago, São Vicente, Santo Antão e Ilha do Fogo. A margem de erro é de cerca de 3% e o nível de confiança de 95%. O inquérito foi realizado entre 27 de Agosto a 10 de Setembro 2024
A acrescentar que em todas as questões, foi colocada a possibilidade de resposta “não ouvi falar o suficiente [do tema questionado] para dar a sua opinião”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1203 de 18 de Dezembro de 2024.