Para o poeta Jorge Barbosa (1941) a ilha é uma prisão – [...] Ilha tão desolada rodeada do Mar!... / ... as grades também da minha prisão! – e o mar, um convite para a evasão – Este convite de toda a hora / que o Mar nos faz para a evasão! / Este desespero de querer partir / e ter que ficar1.
O ilhéu, no seu isolamento em relação ao continente, é, segundo Mário Fonseca (1960), um revoltado:
Soterrado no fim do mundo
Prisioneiro do destino e do mar,
Contemplo das grades da minha prisão
o cenário habitual
...................................
Na miragem volante
Do sonho
Do dia a dia
Esmagado entre dois paredões: terra e mar...
(No fundo a revolta...)2.
Um outro ilhéu, o açoreano Monteiro da Silva3, defende que o fenómeno da insularidade é muito mais do que o mero conceito físico e propõe para a sua caracterização, pelo menos, a constatação, em conjunto, de sete particularidades fundamentais (op. cit., pp. 40-49):
– “a existência de uma comunidade socialmente organizada;
– a existência de características e atributos antropológicos, culturais e sociais e económicos que a diferenciam das outras comunidades sociais e que lhe emprestam uma identidade própria mais ou menos acentuada, alicerçada por um determinado percurso histórico comum;
– uma grande vulnerabilidade do sistema ecológico, social e económico;
– uma economia pouco diversificada;
– uma dimensão muito reduzida no contexto internacional;
– uma delimitação clara de uma determinada fronteira física, que a separa de outros espaços e de outras comunidades, sendo o mar, normalmente, o elemento de fronteira. E é essa característica que determina e condiciona o quadro de valores dessa sociedade, em termos culturais, sociais e económicos;
– a existência de “deseconomias”, ou sobrecustos ao nível económico e social”.
O alargamento do conceito de insularidade, com as características aqui enunciadas, leva a que se considere a insularidade como um factor fundamental na estruturação da identidade do homem cabo-verdiano.
As ilhas
por quererem ser navios
ficaram naufragadas
entre mar e céu.
..............................
Ah meu avô escravo
como tu
eu também estou encarcerado
neste navio fantasma
eternamente encalhado
entre mar e céu.4
Sendo Cabo Verde um arquipélago, “o mar condiciona irremediavelmente a vida dos ilhéus e até pela ordem do excesso, fazendo de Cabo Verde uma soberania territorial com mais mar do que terra, numa terra excessivamente carente de água, embora rodeada de água em excesso” (Alberto Carvalho, 1991:33)5.
As ilhas, marcadas por uma história de escravatura, sendo rota marítima e alvo de pilhagem de piratas, além de enfrentar secas e crises periódicas de fome e isolamento, moldaram no homem cabo-verdiano uma dupla identidade, centrípeta e centrífuga, que funciona de uma forma dinâmica. O amor à terra, a identidade centrípeta, é contrabalançado pelo gosto de viajar ou pela necessidade trágica de emigrar, a identidade centrífuga.
Estes factores terão contribuído para que se desenvolvesse no homem das ilhas uma psicologia e uma cultura específicas – o sentimento do “querer bipartido”, na expressão do poeta Pedro Corsino de Azevedo (1947)6, ou melhor, o desespero de “querer partir e ter de ficar” e o de “querer ficar e ter de partir”.
Estes dois anseios, aparentemente antagónicos e contraditórios, são assim sintetizados pelo poeta Eugénio Tavares (1930):
Se bem é doce, Se o regresso é doce,
Bai é maguado; A partida é dolorosa;
Mas, se ca bado, Mas, se não se partir,
Ca ta birado! Não se regressa!7
Neste contexto, os poetas tornaram-se marinheiros e navegaram nos rumos longínquos de todos os mares, tornando-se essa temática uma obsessão e um fascínio. O poema “Navegação”, de Jorge Barbosa (1956), é disso exemplo:
Capitão dos mares
foi só na imaginação que o fui...
..................................
Era tudo mentira
dos meus versos
impossíveis
da minha fantasia.
Capitão dos mares!
nem sabia navegação8.
De referir, contudo, que a insularidade física e cultural interna, criada pelas dificuldades de comunicação, foi rompida pela transferência do centro de gravidade política, económica e religiosa da ilha de Santiago (inicialmente da Cidade da Ribeira Grande para a Vila da Praia Santa Maria) para outras ilhas do arquipélago – Boa Vista, Brava, São Nicolau e São Vicente. Este processo, que promoveu a circulação geográfica da elite integrada no aparelho de Estado, incentivou a vida intelectual em ilhas anteriormente sem estímulos de qualquer natureza, resultando no surgimento de novas elites locais.
Em síntese, a condição insular produziu na sociedade cabo-verdiana um conjunto de atributos que objectivamente permitem identificá-la e, sobretudo, diferenciá-la de outras que lhe estão próximas, com particularidades e especificidades étnicas, sociológicas, linguísticas, de usos e de costumes.
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1 Jorge Barbosa, “Prisão”, in Ambiente, Praia, 1941. Agorain Jorge Barbosa. Poesias I, Praia, 1989, p. 113.
2 Mário Fonseca, “Quando a vida nascer...”, Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação, N.º 126, Praia, Março de 1960, pp. 25-27.
3 José Monteiro da Silva, “Uma abordagem ao fenómeno da Insularidade”, pp. 21-52, in Discursos (10 Janeiro 1994), de A. M. B. Pires, Machado e Silva, José Monteiro. Ponta Delgada: Universidade dos Açores.
4 Aguinaldo Brito Fonseca, “Herança” Claridade – revista de arte e letras, N.º 8, S. Vicente, Maio de 1958, p. 30.
5 Alberto de Carvalho, “Prefácio” ao Cultura Caboverdeana. Ensaios, de Gabriel Mariano, pp. 7-36. Lisboa: Editora Vega, 1991,
6 Pedro Corsino de Azevedo, “Terra-Longe”, Claridade – revista de arte e letras, N.º 4, S. Vicente, Janeiro de 1947, p. 12.
7 Eugénio Tavares, “Morna de Despedida”, in Mornas. Cantigas Crioulas, Luanda, 1969 [1930], p. 41 (T. A.).
8 Jorge Barbosa, “Navegação”, in Caderno de um Ilhéu, Lisboa, 1956. Agora in Jorge Barbosa. Poesias I, Praia, 1989, p. 151.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1181 de 17 de Julho de 2024.