Licença para matar

PorLígia Dias Fonseca,31 jul 2024 14:14

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A violência contra as mulheres no âmbito familiar continua a ser considerada normal e aceitável na nossa sociedade, embora os discursos políticos neguem essa realidade. E combater essa mentalidade exige que os tribunais tenham uma postura firme e uma compreensão integral do espírito da lei e da dignidade da pessoa humana que é uma mulher.

Ao criarmos juízos especializados para julgar os crimes de violência baseada no género (VBG) deixamos uma porta aberta para que muita violência contra as mulheres se furte ao tratamento adequado, indo parar às mãos de juízes que não estão devidamente preparados para julgar este tipo de casos.

Recentemente, ouvi um relato de uma audiência de julgamento em que o arguido confessou a brutalidade com que agrediu a mulher com quem vivia em união de facto. Na verdade, o arguido confessou perante o juiz que na sequência de uma discussão familiar agrediu a mulher com socos por diversas partes do corpo e que a agarrou pelos cabelos e a arrastou pela casa. As fotos juntas aos autos e exames médicos demonstravam uma mulher cheia de nódoas negras, hematomas e fratura nasal. Consta dos autos que o estado em que esta mulher chegou ao hospital indiciava risco de fratura craniana, mas que felizmente a TAC feita descartou.

O arguido não negou nada das agressões que lhe foram imputadas quando foi ouvido. Em certos momentos, convenientemente orientado, escusou-se a esclarecer alguns aspetos da agressão. Dos autos não consta que o arguido tenha sofrido alguma ofensa física relevante.

Ora, após ouvir o arguido que confirma toda a brutalidade da sua atuação, o juiz chama a ofendida e começa por perguntar quanto tempo tinha durado a relação com o arguido, tendo ficado registado que tinham uma relação de namoro de muitos anos e que na data da agressão moravam em união de facto há cerca de uns meses. Perante isto, o juiz indaga a ofendida se não pensa em reatar o namoro com o agressor, considerando que ambos são jovens e que estão num tribunal que é lugar de paz, perdão e que o crime admite desistência. Insiste com a ofendida se quer um tempo para ponderar sobre a possibilidade de perdoar, de receber um pedido de desculpa. A ofendida não hesita e responde que só deseja que se faça justiça.

Quando me relataram esta situação, nem quis acreditar. Este é o comportamento de séculos e séculos que tem contribuído para que se aceite a violência na família. O homem pode bater com violência e a mulher deve perdoar.

Quantas vezes oiço amigas a aconselharem outras a esquecer as ofensas, porque o que importa é que o marido, namorado, afinal, gosta muito dela!

Os estudos recentemente publicados e entre nós o livro de Miriam Medina «Se causa dor não é amor» mostram a violência que existe nas relações de namoro e como as meninas se submetem à mesma em nome do «amor».

Esta situação tem de mudar radicalmente. É preciso ensinar que a violência não tem lugar em nenhuma relação e que é errado confiar numa pessoa capaz de agredir violentamente outra. Mais errado ainda é pedir a uma mulher que pondere perdoar e aceitar um pedido de desculpa que nunca veio.

Os juízes têm o dever de tentar conciliar as partes. Porém, quando se trata de violência em seio familiar, esse dever deve ser exercido com devida prudência, apurando o juiz o grau de arrependimento do agressor e se efetivamente estão reunidas as condições para que essa violência não se repita. E, mais importante: o Juiz tem de estar convicto que o agressor reconhece o seu comportamento errado e está empenhado em não o repetir. Pedir desculpa sem reconhecer o erro, não tem nenhum valor. Em algum momento do processo acima relatado o agressor mostrou algum arrependimento pela sua atuação? No julgamento, o agressor disse ao juiz que lamentava o que se tinha passado?

Se não houve nenhuma atitude de reconhecimento da atuação errada por parte do agressor, como pode o Juiz perguntar à ofendida se não quer desistir do processo, se não quer reatar o relacionamento?

Um juiz que não atua com a devida cautela numa tentativa de conciliação desta natureza e não assume que é grave, demasiado grave, a violência ocorrida no lar doméstico, violência a ponto de levar a vítima ao hospital, perpetua preconceitos e comportamentos que o Estado de Cabo Verde está a combater. É preciso que os tribunais, não só os juízes diretamente ligados aos casos de VBG, mas todos os juízes que sejam chamados a avaliar situações de violência doméstica interiorizem que este é um mal social que tem de ser arrancado da sociedade cabo-verdiana.

Porque, como a vida nos tem mostrado, de perdão em perdão a mulher é aconselhada a caminhar até que que o amor a leve ao caixão.

No caso judicial que serve de base a esta reflexão teve hoje, dia Internacional da Mulher Africana, uma sentença onde se dá por provadas todas as graves agressões físicas cometidas pelo agressor, este é premiado com uma absolvição. Veio-me a cabeça o filme «007 Licença para Matar».

Praia, 31 de Julho de 2024

Lígia Dias Fonseca

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Autoria:Lígia Dias Fonseca,31 jul 2024 14:14

Editado porAndre Amaral  em  4 ago 2024 17:34

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