O que se acaba de transcrever constitui introdução a um excelente texto publicado na última edição da revista brasileira “Veja”, sob o significativo título “A Marcha da Impunidade”.
Pode-se perguntar, o que é que isso tem a ver com Cabo Verde e com a nossa realidade. A nossa resposta é simples: tem tudo a ver.
Na verdade, o nosso país encontra-se numa encruzilhada em que, ou o Estado de Direito, com todas as suas instituições, em especial um Poder Judicial, forte e independente, como preconiza a Constituição da República, se consolida, ou acabará por claudicar, em definitivo, aos pés dos que se consideram poderosos e acima da lei.
Uma breve incursão por alguns casos que passaram pelos Tribunais ou que neles continuam a tramitar, põe à evidência a enorme capacidade de certos cavalheiros, para mexerem os cordelinhos e as influências, no sentido de, consoante as suas conveniências, condicionarem as instituições da República e neutralizarem os efeitos das decisões da Justiça.
Exemplo paradigmático disso são as pressões, com recurso até a notícias redondamente falsas, reproduzidas à exaustão, que têm sido exercidas sobre o Governo e o Presidente da República (PR) para se indultar crimes graves, crimes contra o Estado, em regra expressamente excluídos das medidas de graça. Felizmente, tais investidas não têm prosperado. Pelo contrário, têm sido firmemente rechaçadas, em nome do basilar princípio republicano da igualdade dos cidadãos perante a lei.
Vale também recordar, para não se ir mais longe, a algazarra que se montou em torno do caso do indivíduo, de nacionalidade francesa, de férias em Cabo Verde, que esfaqueou mortalmente um pobre cidadão na localidade de Caibros da Ribeira Grande, em Santo Antão.
Desde o início o Ministério Público (MP) sustentou a tese de que se estava perante um crime de homicídio voluntário, pelo que pediu a condenação do arguido por esse crime. Esse entendimento foi acolhido pelo Tribunal da primeira instância e pelo Supremo Tribunal de Justiça, pelo que o arguido acabou por ser condenado, por essa última instância judicial, na pena de 11 anos de prisão.
Como é sabido, essa condenação valeu a todos os magistrados que intervieram nesse processo, da primeira instância ao Tribunal Constitucional, calúnias das mais graves, com o intento de assassinar o carácter dos mesmos, uma forma também de dissuadir os outros magistrados de tomarem decisões que possam indispor certos cavalheiros.
Os outros desenvolvimentos do caso do cidadão francês são sobejamente conhecidos.
Agora, com o chamado processo do INPS, que veio para a ribalta por estes dias, já se vai antevendo o mesmo filme, o mesmo “modus operandi”, para se paralisar a Justiça ou se conseguir a impunidade, a todo o custo.
Um processo em que, a fazer fé naquilo que foi divulgado pela imprensa, o Ministério Público deduziu acusação contra quatro indivíduos, incluindo a então Presidente dessa instituição pública e o seu assessor jurídico, figura de certa notoriedade, por indícios de crime de peculato, assentes no facto de uma vultuosa quantia, a rondar os 24.000 contos, ter sido transferida para Portugal para ser repartida, a título de supostos honorários por serviços prestados, por esse assessor jurídico do INPS e um seu parceiro, de muitos negócios.
Para a acusação pública, nenhum serviço chegou de ser efetivamente prestado ao INPS em Portugal, para justificar o desembolso de tão expressiva quantia a favor desses indivíduos.
A tese do Ministério Público, a requerer necessária comprovação em Tribunal, como impõe o princípio da presunção da inocência, é de que tudo não terá passado de um esquema, bem montado, para se dar a aparência de uma dívida em Portugal, que devia ser liquidada, e assim facilitar a apropriação ilícita, pelos acusados, de dinheiro pertencente a uma instituição pública.
Ora, o normal em qualquer Estado de Direito, perante uma acusação dessa natureza, vinda de uma instituição credível, como é o Ministério Público, é que se deixe a Justiça funcionar, na serenidade, e que os arguidos, beneficiando de todas as garantias, apresentem a sua defesa em sede própria, isto é, no próprio processo.
Mas, em Cabo Verde, ao que parece, não é assim.
Trazendo convenientemente à baila o nome de um ex-ministro, que o abuso de confiança de um conterrâneo arrastou para essa situação, começa-se por exigir que esse imbróglio seja apurado, não pelo Poder Judicial, independente, mas por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), aonde, como se sabe, e como têm confirmado altas personalidades, irá imperar não a legalidade, mas a lógica da conveniência política.
Ao mesmo tempo vai-se investindo, com ataques inqualificáveis, contra o Procurador Geral da República, exigindo-se que ele não seja reconduzido no cargo, como se essa gente já tivesse capturado a competência constitucional para fazer (ou não) essa recondução.
Seja como for, já não há como tapar o sol com peneira.
A acusação do Ministério Público, divulgada pela imprensa (e que, nos termos do artigo 110º do Código de Processo Penal, já não está sob segredo de justiça), aparenta ter suficiente consistência, mesmo para quem é leigo, podendo-se resumir a poucas palavras.
Por exemplo, no seu ponto 53 pode-se ler que no dia 5 de junho de 2014 o INPS, cumprindo ordens da sua Presidente, procedeu a transferência para Portugal de 215.439,00 euros (cerca de 23.755 contos), supostamente a título de pagamento de honorários, por serviços aparentemente prestados a essa instituição.
Logo no dia 18 de junho, escassos treze dias depois, essa quantia começou a ser repartida entre o assessor jurídico do INPS e o cidadão português, que ele considera seu sócio em vários negócios, num corrupio de levantamento, distribuição e transferência de dinheiro, de fazer qualquer um exclamar: MAMA mia!
Consoante o artigo 58 dessa peça, ainda nesse mesmo dia 18 de junho de 2014, às 11:35 da matina, o assessor jurídico do INPS, pelos vistos muito atarefado nessa manhã, depositou, na conta bancária da Presidente dessa instituição, a mesma que tinha autorizado a transferência do dinheiro para Portugal, a quantia de 15.000 euros (cerca de 1.650 contos), sem qualquer justificação aparente.
Convenhamos que, em qualquer país civilizado, em que as instituições funcionam e os cidadãos não se deixam tratar por otários, ante essa estranhíssima coincidência, será inevitável a instauração de um procedimento criminal, a ser conduzido até ao julgamento, com vista à clarificação da situação e ao apuramento de eventuais responsabilidades.
Já em Cabo Verde tenta-se, por todos os meios, nomeadamente através de um virulento ataque à Justiça, em especial ao Procurador Geral da República, evitar que isso aconteça.
É a marcha da impunidade, a tentar também assentar arraiais entre nós.
Resta saber se os cabo-verdianos e as instituições da República permitirão que isso aconteça.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1212 de 19 de Fevereiro de 2025.