Mata-me depois, Livro Premiado de Evel Rocha

PorBrito-Semedo,23 set 2024 7:26

​Felicitamos o autor Evel Rocha pela conquista do Prémio Literário Arnaldo França, 6.ª edição, agora transformada em livro. Esta é mais uma obra em prosa de ficção de sua autoria, cujo enredo se desenrola na sua ilha natal.

Reconhecemos o trabalho da Imprensa Nacional de Cabo Verde e da Imprensa Nacional-Casa da Moeda de Portugal que, há seis anos, instituíram em parceria o Prémio Literário Arnaldo França. Prémio este que visa não apenas promover a língua portuguesa e incentivar o talento literário em Cabo Verde, como também homenagear Arnaldo França, uma figura de destaque na literatura e cultura cabo-verdianas.

Destacamos o empenho da Câmara Municipal do Sal em consolidar a ilha como um importante polo literário, promovendo anualmente, em parceria com a Rosa de Porcelana Editora, o Festival de Literatura-Mundo do Sal, que já conta com seis edições. Em 2023, o Festival foi palco do lançamento de mais uma relevante iniciativa, o Prémio LHANA de Literatura, criado em colaboração com o Ministério do Turismo e Transportes. Este prémio tem como objectivo principal reconhecer a prosa literária e promover o talento literário local.

Incentivamos a actuação da Pena d’Prata Editora e da Editora Letras Salgadas, criadas em 2021 e 2023, com o objectivo de fortalecer a produção literária na ilha do Sal. Desde então, elas têm publicado diversas obras, incluindo prosa, poesia e literatura infantojuvenil.

Saudamos a iniciativa da Livraria Sousa, que, há mais de vinte anos, tem promovido a literatura nesta ilha e agora conta com um novo e moderno espaço.

Há muito tempo temos vindo a chamar atenção para a falta de políticas públicas eficazes no sector do livro e das edições, um problema recorrente em sucessivos governos. Infelizmente, os prémios literários frequentemente acabam por ser apenas propostas, sem a devida concretização, ou terem uma vida efémera. Por isso, é importante destacar iniciativas como estas, que efectivamente promovem a literatura e o talento local.

O livro Mata-me depois de Evel Rocha é uma poderosa reflexão sobre a decadência humana e a luta de um homem para enfrentar o inevitável declínio de sua vida. O protagonista, Alex Segredo, é um ex-presidente de câmara que, após anos de poder e influência, se vê agora em uma espiral de decadência física, emocional e moral. A história passa-se num cenário pós-carreira, onde Alex, outrora uma figura pública respeitada, é reduzido a um homem quebrado, atormentado por problemas de saúde, solidão e uma profunda crise existencial.

A narrativa começa com Alex reflectindo sobre o suicídio, uma ideia que se torna obsessiva para ele. Após uma tentativa frustrada de se matar, na qual ele acaba enroscado em uma raiz ao tentar jogar-se de um precipício, Alex é resgatado em uma cena humilhante que expõe sua fraqueza diante da vida. Este fracasso torna-se o ponto de partida para uma jornada mais profunda de introspecção, na qual Alex começa a planear uma maneira mais digna de acabar com a própria vida, sem perder o que resta de sua honra.

A trama segue Alex, que lida com o desejo de suicídio e um casamento deteriorado com sua esposa Eva, marcado por ressentimentos e isolamento emocional. A divisão da casa simboliza o abismo entre eles, e Alex, amargurado, busca controlar a narrativa até em sua morte. Além disso, a velhice e a doença transformam sua vida em uma luta diária, exacerbando sua sensação de inutilidade e abandono, tanto pela comunidade que antes o admirava quanto por sua própria família.

A história também explora o declínio de Alex após sua derrota política, que o deixou recluso e corrosivo. Seu relacionamento com Eva, antes baseado em amor, torna-se uma guerra emocional, simbolizada pela separação dentro da própria casa.

Em contraste com os temas sombrios da morte e da decadência, o livro também aborda o orgulho e a honra de Alex, que continuam a moldar suas decisões, mesmo em seus últimos dias. Ele recusa-se a morrer de maneira “comum”, como tomando uma overdose de remédios ou enforcando-se discretamente em casa. Ele quer que sua morte seja um acto de grandeza, algo que o imortalize na memória das pessoas, especialmente aquelas que ele considera responsáveis por seu sofrimento. A obsessão por uma morte grandiosa reflecte sua dificuldade em aceitar a perda de controle sobre sua vida e seu destino.

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A vida política de Alex também é uma importante linha narrativa do livro. O passado de Alex como presidente da câmara é explorado através de memórias e reflexões que ele tem sobre seus anos de poder. Ele relembra as obras que realizou, os projectos que implementou e as relações que construiu, mas também o ressentimento que sente por aqueles que, em sua visão, o traíram depois de sua derrota eleitoral. A sua incapacidade de lidar com essa perda é central para o seu colapso emocional, e a narrativa mostra como a política, que antes era sua vida, agora é apenas uma lembrança amarga de um tempo que ele não consegue recuperar.

Mata-me depois é, acima de tudo, uma reflexão sobre o significado da vida e da morte, e sobre como o orgulho, o arrependimento e o desejo de controle podem definir nossas últimas decisões. Evel Rocha cria um protagonista complexo, cujos pensamentos sombrios e atitudes muitas vezes amargas são temperados por um senso de humor irónico e um desejo desesperado de manter algum grau de dignidade. A obra é uma meditação sobre o envelhecimento, a perda e o desejo humano de significado, mesmo quando a vida parece ter perdido todo o sentido.

A narrativa de Evel Rocha é rica em detalhes psicológicos e emocionais, e o livro oferece uma visão crua e sem rodeios sobre as dificuldades da velhice e as complexidades dos relacionamentos humanos. Alex Segredo é uma personagem trágica, mas ao mesmo tempo fascinante, cuja luta para reconciliar seu passado com seu presente doloroso é o coração da história. O livro deixa o leitor reflectindo sobre as próprias questões de honra, moralidade e o que realmente significa viver – e morrer – com dignidade.

Por fim, a justificativa do Júri para a atribuição do Prémio Literário Arnaldo França a este romance em 2023:

“Trata-se de uma obra que apresenta os seguintes factores positivos de destaque: a) tema pertinente e inovador pela apropriação de um período histórico e político da História de Cabo Verde ainda pouco presente na Literatura nacional contemporânea; b) temuma narrativa bem desenvolvida, com uma trama envolvente, sobretudo pelo exercício de prender e cativar o leitor para o desfecho anunciado na primeira página e resolvido em retrospectiva; c) no conjunto das obras concorrentes apresenta-se bem escrito...”. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1190 de 18 de Setembro de 2024.

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Autoria:Brito-Semedo,23 set 2024 7:26

Editado porAndre Amaral  em  5 out 2024 21:20

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