Em particular dos actores políticos, espera-se que na sua actuação, tanto no processo de conquista do poder, como no cumprimento do mandato enquanto governo ou oposição procurem salvaguardar a ordem constitucional e a confiança dos cidadãos no sistema democrático como pressupostos básicos para um futuro de sucesso.
Infelizmente, vão no sentido contrário as actuais tendências de políticos a querer agir como celebridades, em demonstrações muitas vezes desabridas de narcisismo, e a fazer da política mais um espectáculo para suscitar emoções do que como processo para visionar, decidir e agir. Justifica-se essa opção como exigência dos tempos actuais. Diz-se que a atenção das pessoas é mínima, a atracção pelo que choca e entretém é maior e que se tende a confundir o quebrar das regras, dos costumes e da própria legalidade com demonstrações de autenticidade e de uma certa masculinidade. A verdade é que há quem ganhe eleições indo por esses caminhos e nota-se que cada vez mais partidos e personalidades deixam-se resvalar para esse tipo de mobilização política.
O problema é que tais práticas ao minar a confiança nas instituições limitam a própria eficácia das políticas a serem implementadas no âmbito do mandato recebido nas urnas. O mal-estar socio-económico que acaba por se instalar contribui para a polarização da sociedade que dificulta o diálogo e provoca a ascensão do discurso populista e demagógico. Cria-se com isso um círculo vicioso que pode levar à estagnação ou a crescimento económico insuficiente para erradicar a pobreza e atender as expectativas das pessoas. A directora do FMI, Kristalina Georgieva, num discurso nos encontros de 22 de Outubro das instituições de Bretton Woods chamou a atenção para a tendência expansionista dos orçamentos estatais de vários países motivada por esse tipo de discurso que aumenta a fatia do serviço da dívida no orçamento, retirando espaço fiscal para responder a crises futuras e para investir com vista a mais crescimento económico.
A grande dificuldade de hoje é encontrar partidos e personalidades com coragem e audácia para se recusarem a ir por esse caminho de reduzir a política a espectáculo e a culto pessoal do líder. E é assim porque nem sempre resulta para que quem opta por pôr o foco nas questões do país com visão, estratégia e reformas dirigidas para maior crescimento e emprego. Um exemplo é o que acontece nos Estados Unidos, onde depois dos anos de espectáculo e da personalização da política por Donald Trump, o presidente Biden optou pelo regresso a uma certa normalidade e por políticas inovadoras e ainda assim a sociedade continua altamente polarizada. O país devido às reformas poderá ter ultrapassado com sucesso a situação de policrise e ser considerado “a inveja do mundo”, segundo o último número da revista Economist (19 Out), mas o mal-estar continua e poderá pesar a favor de Trump nas eleições daqui a quinze dias. Não é por acaso que nem todos ousam fazer diferente.
Essa falta de ousadia, porém, não existiu sempre. Em Cabo Verde, nos anos noventa, os ventos da mudança deram ao país uma oportunidade para sair da estagnação económica e crescer com liberdade e segurança. A liderança do então primeiro-ministro dr. Carlos Veiga foi crucial para atingir os dois grandes objectivos de implantar a democracia e construir uma economia de mercado. Tinha recebido um mandato a 13 de Janeiro de 1991 com maioria qualificada de dois terços do eleitorado que foi renovado cinco anos depois nas legislativas com uma percentagem superior de votos. As dificuldades em prosseguir com as reformas políticas e económicas face às resistências na sociedade e tensões no interior do seu partido não o dissuadiram de as levar a bom termo. Perdeu a maioria qualificada do primeiro mandato e recuperou-a nas eleições seguintes.
Ao longo dos dez anos de governação o Dr. Carlos Veiga conseguiu através do diálogo permanente manter, num partido que ainda era um movimento político (apareceu em 1990), uma maioria suficiente para adoptar o país de uma Constituição democrática e liberal. De seguida, pôde seguir com a liberalização da economia e reforma do sistema financeiro e fiscal e ainda avançar com as privatizações num esforço de atracção de investimento directo estrangeiro e construção de uma economia de mercado. Sob a sua liderança o país encontrou solução inovadora para a pesada dívida interna herdada das empresas estatais num Trust Fund que associado ao Acordo Cambial com Portugal, e depois com a União Europeia, serviram de base para as décadas seguintes de inflação baixa e estabilidade monetária e cambial.
Pela descrição feita no Memorando de 14 de Julho de 2023 do Banco Mundial que “o modelo económico de Cabo Verde tem dado sinais de cansaço desde a crise financeira mundial de 2008” e que “a taxa de crescimento anual caiu de uma média de 10,1% na década de 1990 para 7,2% na década de 2000 e para 1,2% na década de 2010”, percebe-se como é que o país ainda parece estar a beneficiar das reformas do anos noventa, mas com efeitos decrescentes. O potencial do crescimento que segundo o BM era de 6% na década de noventa passou para 3,5% depois de 2010 devido à perda de produtividade que por sua vez é atribuída à rigidez estrutural resultante de falta de reformas.
Não obstante os evidentes ganhos das reformas, ou talvez devido às verdadeiras disrupções que puseram o país num outro patamar, Carlos Veiga acabou por ter que enfrentar mais uma cisão no seio do partido maioritário, mas não sem ainda finalizar uma revisão da Constituição em 1999 que ajudou a consolidar o regime democrático. Um ano depois, o seu partido perdia as eleições e uma das razões, segundo o doutor Onésimo Silveira no livro do José Vicente Lopes (2016) “é que o MpD trouxe não só uma ideia de modernidade, como da modernidade das instituições que o povo na sua maioria conservadora não teria aceitado numa situação normal”. Depois de anos de tensões por causa das reformas compreende-se a derrota eleitoral porque segundo ele “ninguém gosta de viver de sobressaltos”. No entrementes os efeitos das reformas dos anos noventa ainda vão se fazendo sentir.
Nas democracias é normal não ser recompensado nas urnas por fazer reformas profundas ou por outras ousadias. Caso clássico é o de Churchill que perdeu as eleições para o partido trabalhista em 1944 apesar de ter liderado o Reino Unido durante a II Guerra Mundial. A dimensão dos verdadeiros estadistas vê-se no facto de não terem deixado de fazer o que tem que ser feito por receio de derrota nas eleições. O papel do partido e dos seus dirigentes não deve se resumir à conquista e à manutenção do poder a todo o custo. Deve fundamentalmente ser o de servir as pessoas e o país com a humildade e o desprendimento de quem detém um mandato popular e de estar ciente da realidade complexa dos problemas para cuja resolução se exige a participação de todos e se assume que ninguém é indispensável.
Por ocasião dos 75 anos do Dr. Carlos Veiga, celebrados no dia 21 de Outubro, o Expresso das Ilhas presta-lhe uma merecida homenagem pela sua liderança na construção da Liberdade e democracia em Cabo Verde e pelo exemplo de estadista sereno e dialogante, e forjador de vontades que tornou possível construir o quadro jurídico e institucional que conduziu o país à modernidade.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1195 de 23 de Outubro de 2024.