Contudo, quando indago mais profundamente, procurando saber se o detido, no momento da abordagem, recusou-se a apresentar meios de identificação ou se estava impossibilitado de fazê-lo, a resposta é frequentemente vaga, remetendo à noção genérica de “segurança” e a uma alegada “necessidade” de conduzi-lo à esquadra para verificação. Esta resposta revela-se ainda mais preocupante quando se trata de condutores que, apesar de munidos de documentos válidos, são levados compulsoriamente à esquadra, ignorando-se a possibilidade de identificação imediata e voluntária. É imperioso, diante dessa realidade, refletir acerca do equilíbrio precário entre a segurança pública e a liberdade individual. A Constituição da República de Cabo Verde, fundamento do nosso Estado de Direito, eleva a liberdade individual a um patamar inegociável, admitindo a sua restrição unicamente em casos estritamente previstos em lei, pautados pelos princípios da necessidade e proporcionalidade. Deste modo, toda e qualquer limitação deve resguardar, em essência, a observância fiel aos preceitos constitucionais, sob pena de subversão dos princípios fundadores do ordenamento jurídico. No nosso ordenamento, a liberdade individual é princípio de matriz inviolável e, como tal, um dos pilares que sustentam o Estado de Direito. A Constituição, em seu artigo 29.º, n.º 1, consagra a inviolabilidade dessa liberdade, estipulando que a restrição ou supressão da mesma é admitida unicamente nos casos previstos em lei. Esta previsão visa impedir qualquer forma de arbítrio estatal, alicerçando-se no respeito à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais que lhe são inerentes. Reconheça-se, porém, que, embora revestidos de sacralidade, os direitos fundamentais não possuem caráter absoluto. A própria lógica constitucional admite exceções em situações em que o interesse coletivo ou a segurança pública se sobreponham, embora sempre dentro dos rigorosos limites da legalidade e da proporcionalidade. Nesse sentido, o artigo 30.º da Constituição, ao tratar da liberdade individual, prevê a possibilidade de mitigação desse direito basilar, desde que respaldada por uma previsão legal e aplicada de acordo com princípios constitucionais estritos. Um exemplo de tais exceções encontra-se na detenção para efeito de identificação, delineada na alínea h) do n.º 3 do artigo 30.º, em que a privação de liberdade é temporariamente permitida para que as autoridades confirmem a identidade do indivíduo.
Contudo, ao regulamentar essa exceção, o Código de Processo Penal (C.P.P) impõe restrições adicionais, especificando que a identificação pode ser exigida apenas quando há fortes indícios de envolvimento do suspeito em atividades ilícitas, processos de extradição ou expulsão, ou quando o indivíduo permanece irregularmente no território nacional (Art. 228º, n.º 1 do CPP). Ademais, a legislação impõe a obrigação de os agentes informarem o suspeito sobre as circunstâncias que fundamentam a necessidade de identificação e oferecerem meios adequados para tal, conforme o n.º 2 do artigo 228.º. Segundo os n.ºs 3 e 4 do mesmo artigo, o suspeito pode satisfazer a obrigação mediante a apresentação de documentos oficiais, como o bilhete de identidade ou passaporte. Na falta desses documentos, a lei dispõe, no n.º 5, que a identidade poderá ser confirmada por meios alternativos, incluindo a comunicação com terceiros ou a obtenção dos documentos noutro local. Esta previsão legal visa evitar que um cidadão seja desnecessariamente conduzido à esquadra, assegurando, assim, que a condução se configure como uma medida de último ratio, aplicável apenas quando se esgotem os meios alternativos de identificação no local. Em conformidade com o nº 6 do artº 228 do C.P.P, a permanência na esquadra não deve ultrapassar três horas, um prazo razoável para que a verificação dos dados ocorra de maneira eficiente e respeitosa aos direitos do cidadão. No entanto, é imperioso sublinhar que o limite de três horas não deve ser tomado como regra, mas como teto máximo; a identificação deve ser realizada no tempo mais breve possível, respeitando-se a premissa de mínima restrição à liberdade. Inclusivamente, a identificação deve prevalecer sobre quaisquer outras tarefas, evitando que seja realizada apenas quando o limite de três horas está prestes a ser alcançado, como frequentemente justificam os agentes ao alegarem ocupações com outros afazeres.
Face ao exposto, constata-se um descompasso entre as normas legais e a prática corrente das forças de segurança. A legislação cabo-verdiana estipula que a restrição à liberdade deve ser aplicada com estrita observância aos princípios de necessidade e proporcionalidade. No entanto, a realidade indica uma aplicação rotineira e, por vezes, arbitrária dessa medida, o que suscita graves questionamentos quanto à conformidade com o Estado de Direito. Importa frisar que a mera observância do limite temporal de três horas não basta para legitimar a detenção para identificação; este prazo deve vir acompanhado do cumprimento de todos os requisitos impostos pela lei. Em outras palavras, a detenção só será legítima se observar rigorosamente as condições específicas e excepcionais previstas. Caso contrário, mesmo que dure apenas um minuto, a detenção configura-se como ilegal, passível de responsabilização do Estado e dos agentes envolvidos. O mais grave, no entanto, não reside apenas na prática abusiva em si, mas na aceitação tácita e quase cúmplice que se sedimentou em torno dela, criando uma perigosa sensação de normalidade. Assistimos, com uma passividade inquietante, à consolidação de um verdadeiro desvio de função, em que a exceção passou a ser tratada como regra, e a restrição de liberdade, trivializada como um procedimento de rotina.
Esse fenômeno é um retrato alarmante da erosão de princípios fundamentais, pois, ao permitir que práticas abusivas se estabeleçam como práticas aceitas e recorrentes, estamos a banalizar o próprio conceito de liberdade individual e, com ele, o Estado de Direito.
Tal aceitação, além de perigosa, revela uma indiferença institucional que, em última análise, condescende com o abuso e legitima o arbítrio. Assim, não se pode deixar de notar que o verdadeiro perigo está não só na ação dos agentes, mas também na inação de uma sociedade que, ao permanecer em silêncio, legitima e perpetua a violação dos direitos que deveria proteger e preservar. A condução automática e arbitrária de indivíduos à esquadra, sem o recurso prévio a meios de identificação no local, traduz-se em um abuso claro desta prerrogativa, contrariando o princípio do último ratio.
Em suma, a detenção para efeito de identificação deve ser tratada com a seriedade e o rigor que os direitos fundamentais exigem. O uso desta prerrogativa deve observar de modo rigoroso os limites legais, assegurando que qualquer privação de liberdade seja efetivada apenas nos exatos termos da lei. O desvio desses parâmetros transcende uma mera falha processual; representa um atentado ao Estado de Direito e à dignidade humana. A preservação da liberdade individual não é um mero detalhe burocrático; é a essência da justiça em uma sociedade democrática.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1198 de 13 de Novembro de 2024.