Há um novo mundo do outro lado do oceano Parte I

PorPaulo Veiga,17 mar 2025 9:15

A geografia sempre foi um protetor invisível da nossa História. Sermos uma nação de ilhas, no meio do Atlântico, entre a América, a Europa e África, permite-nos ter uma distância de segurança de muitos dos problemas do mundo, ao mesmo tempo que não estamos tão distantes que não possamos lá chegar. E se há momentos em que esta insularidade nos limita, há outros em que nos protege.

Conseguimos, talvez por isso, ter sido um país sem guerra, com estabilidade e único em África na sua História democrática, imune a algumas doenças e ainda com muitas zonas virgens e de enorme beleza. No entanto, os “efeitos borboleta” que as economias lançam sobre os países, tardam, mas chegam às nossas costas. A interdependência das economias mundiais impossibilita, à data de hoje, uma imunidade face a fatores externos, em especial a um país como Cabo Verde, que tem a necessidade de importar uma esmagadora parte das suas necessidades de consumo.

Um bom exemplo destes impactos, muito mais financeiros, foi sentido com a Covid-19. As nossas ilhas, tiveram, felizmente e com um trabalho intenso de todos, muito menos impactos humanos que outros países. Infelizmente, não foram totalmente eficazes e registámos perdas humanas, mas onde a Covid-19 se fez sentir com toda a sua força foi nos impactos económicos. A paragem no turismo, a queda das economias internacionais e a inflação devastaram as ruas cabo-verdianas. As tempestades financeiras são imprevisíveis e de difícil controlo, sendo profundamente impactantes num país com as dependências de Cabo Verde.

As lições históricas de uma pandemia

A razão da introdução deste artigo prende-se com o momento atual que o nosso planeta atravessa. Após uma pandemia mundial com efeitos muito nocivos, o mundo mergulhou numa crise económica que foi “curada” artificialmente e de forma muito pouco sustentada. Os desequilíbrios e as brechas abertas nas sociedades criaram um rastilho previsível de instabilidade, conflitos e mudanças políticas. Historicamente, era expectável que estes primeiros anos fossem profundamente difíceis, mas, talvez, nada nos tenha preparado para o que estamos a viver. Quando no século XIV o mundo foi dizimado pela Peste Negra, não foi “apenas” a horrível, e sem memória, perda de vidas que mudou o planeta. Estima-se que as mortes possam ter alcançado um quarto da população europeia, tendo atravessado fronteiras e continentes.

Não nos foquemos na pandemia, na sua origem ou nas explicações para a sua dimensão, mas olhemos para as suas consequências. Ainda durante o auge da doença, as faltas de justificações para o que estava a suceder, a ausência de conhecimento médico ou científico, e a própria estrutura da sociedade, levaram a um conjunto de reações espontâneas, sem qualquer correlação com as reais causas da doença, mas que nos podem dar lições importantes para o que a História teimou em repetir. Face à falta de ferramentas médicas que conseguissem ter sucesso no tratamento da doença, as pessoas procuraram na fé e no divino explicações e salvações. Culpados foram encontrados e era necessário expiar os pecados e eliminar os pecadores. No meio desta loucura pandémica, os judeus foram identificados como um dos principais causadores das enfermidades e foram registados inúmeros ataques, desde o massacre de Estrasburgo, em fevereiro de 1349, onde cerca de 2 mil judeus foram assassinados, à aniquilação das comunidades judaicas de Mainz e Colónia em 1349. Por volta de 1351, um total de 210 comunidades haviam sido destruídas, iniciando um movimento de fuga em direção a uma tolerante Polónia, onde cinco séculos mais tarde iriam sofrer o mesmo destino, num repetir histórico que envergonha a humanidade.

De referir que este movimento persecutório surgiu em plena época da Inquisição na Europa, tendo, dessa forma, a busca de culpados e, como resultado, o início dessas perseguições, sido “natural”. E se a Peste Negra trouxe morte e perseguições étnicas e religiosas, os impactos financeiros e sociais também marcaram esta pandemia horrível. Com o pânico, grandes massas de populações fugiram em busca de salvação e, mais tarde, em busca de trabalho e rendimento. A chegada da pandemia a colónias (em especial britânicas) originou um conjunto de medidas nunca antes vistas e com brutais consequências nas populações. Pela primeira vez, foram registadas formas de confinamento ou quarentenas. Na África do Sul, os ingleses deslocaram uma tribo inteira, dando origem a um movimento de segregação com as consequências que o mundo conheceu no país de Mandela.

Se tudo isto é algo que nos faz fazer comparações, pensemos que foi precisamente nesta época que o mundo mudou e surgiu o Renascimento. O sistema feudal ruiu por um conjunto de efeitos, desde a extensão de mortes e como isso afetou as cidades e os campos, a crise de preços, a crise de mão de obra, as mortes transversais nos diversos extratos sociais, e a necessidade de suprir os mortos e, com isso, permitir a ascensão social e eliminação de privilégios. Tudo isto levou a uma mudança tão profunda que culminou com o terminar de uma Era.

Como corolário, importa referir que este cenário dantesco foi uma variável marcante do século que, provavelmente, mais marcou negativamente o período entre o século X e o século XVIII, mas não foi a única a levar-me a escolher este exemplo para olharmos para o presente. O século XIV registou guerras e conflitos, de onde se destaca a "grande guerra” medieval: a Guerra dos 100 anos. Na verdade, esta guerra é um conjunto de três grandes guerras que envolveram vários reinos europeus, dizimaram populações e resultaram na transformação dos exércitos em forças “profissionais”. A Europa assistiu a uma mudança de pensamento e a uma “corrida às armas” que foi sentida de Portugal à Rússia.

O fim de uma Era?

É assustador olharmos para os factos históricos e vermos como podíamos estar a descrever o passado recente. Isto é relevante porque os padrões que assistimos hoje em dia dizem-nos que podemos estar a assistir a mudanças de tal maneira significativas e profundas que podem resultar numa alteração significativa do mundo como o conhecemos. No momento em que escrevo este artigo, ainda não decorreu a reunião entre os EUA e a Ucrânia para voltar a tentar um acordo que possa conduzir a um processo de paz. Acredito que esse caminho possa ser feito e que a guerra que assola a Europa atualmente possa ter um final, ou pelo menos uma pausa.

O que vemos atualmente pode ser resumido de forma muito simplista em fortes massas migratórias resultantes de crises económicas profundas pós-pandemia e conflitos regionais, reforço de governos protecionistas e uma escalada militar sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial. Se pensarmos em termos sociais, a destruição das instituições, a sua falência moral e ética e a nova realidade social de radicalização e aumento do extremismo político, e se compararmos isso com padrões históricos, podemos concluir que o mundo arrisca-se a estar perante o fim de uma Era. Tal como os italianos viram o nascer do Renascimento depois das trevas, podem as gerações atuais ser testemunhas do declínio final das sociedades ocidentais.

Tenho esperança que a próxima etapa seja de um novo Renascimento, mas sei que o caminho para lá chegar tem muitos perigos e desafios. É imperativo que Cabo Verde possa criar estruturas que defendam a nossa população e criem solidez na nossa economia e na nossa sociedade. A alteração do paradigma económico, procurando menor dependência do turismo e do exterior, a solidificação das nossas instituições e democracia e a aposta na “nossa gente” através da educação e políticas sociais, são estratégias fundamentais para mitigar desafios e lançar um Cabo Verde de futuro. Acredito sempre em Cabo Verde, mas este não é um momento para irresponsabilidades. Este é o momento para estarmos unidos, para sermos resilientes, para não embarcarmos em populismos ou falsos profetas. Este pode ser um final de Era e não podemos ignorar que, embora sejamos ilhas protegidas por um oceano, fazemos parte de um mundo que nos afeta cada vez mais. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1215 de 12 de Março de 2025.

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Autoria:Paulo Veiga,17 mar 2025 9:15

Editado porAndre Amaral  em  17 mar 2025 9:15

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