A discussão em torno da memória cultural e o destino dos espólios de intelectuais, artistas e pensadores é urgente e de primordial relevância - daí a necessidade desta reflexão e de um debate público consequente. A forma como uma sociedade trata os seus arquivos e legados diz muito de si, refletindo não apenas o respeito pelo passado e pelas suas gentes, mas também os caminhos e a visão que projeta para o futuro. No entanto, o que deparamos é com a ausência de políticas eficazes para a gestão e proteção desses espólios.
Esse património coletivo não deve e, nem deveria, constituir um fardo para as famílias que os detêm, que, em regra, não dispõem de condições técnicas nem financeiras para a sua salvaguarda e gestão. Para evitar esse cenário, é fundamental criar mecanismos que possibilitem a implementação de projetos que garantam a
Quando me refiro a financiamento, não sugiro que apenas projetos públicos sejam financiados, ainda que também possam fazer parte. Refiro-me, particularmente, à possibilidade de as famílias dessas figuras e outros agentes privados terem acesso a linhas de financiamento disponibilizadas pelo Estado para materializar projetos que, de outra forma, seriam praticamente inviáveis. Esses projetos exigem contratação de especialistas de diferentes áreas, planos de manutenção, criação de condições logísticas e físicas para o acondicionamento e tratamento de espólios, digitalização, investigação, divulgação, entre outras ações essenciais. Tudo isto só é possível com uma visão clara sobre o destino que estamos a dar ou queremos dar à nossa memória coletiva.
Não podemos ser ingénuos quanto aos riscos do apagamento da memória, sobretudo num contexto em que o esquecimento e a omissão podem ser instrumentalizados para fins políticos, por exemplo. Esta possibilidade de apagamento, evidentemente, não é um problema exclusivo de Cabo Verde. Num contexto histórico mais alargado, diversos autores, como Achille Mbembe e Paul Ricoeur, por exemplo, analisaram como o poder influencia a forma como a história é narrada e silenciada. Estes autores lembram-nos que preservar a memória não é apenas um ato de respeito pelo passadoe os seus protagonistas, mas também uma forma de resistência, preservação e afirmação da identidade coletiva.
Voltando à urgência de debatermos este assunto publicamente e encontrarmos soluções que façam justiça ao legado que sustenta a nossa sociedade, é fundamental questionar - sem necessidade de recuar demasiado na história - o que é feito dos espólios dos modernistas dos anos 30 ou de figuras mais recentes da nossa história e cultura. Concretamente, que ações foram tomadas ou estão em curso relativamente ao espólio de intelectuais, artistas e pensadores como Baltazar Lopes, Aurélio Gonçalves, João Vário, Cesária Évora, Manuel Figueira, Luísa Queirós, Bela Duarte, Tututa, Manuel de Novas, Moacyr Rodrigues e Alex da Silva, apenas para citar alguns que me vêm imediatamente à memória?
Fala-se frequentemente da importância da cultura como potencial turístico - o que, à partida, pode ser questionável, dependendo das prioridades e interesses subjacentes - num país com as características de Cabo Verde. Mas como é que se pode falar da culturacomo ativo turístico de forma séria, se o trabalho basilar e fundamental está por realizar? Estamos, portanto, a falar de memória coletiva, história, investigação, produção de conhecimento para o presente e para o futuro, e da educação das próximas gerações. Mais do que criar produtos turísticos, parece-me que devemos focar-nos naquilo que é verdadeiramente urgente e encarar de frente o trabalho estrutural que precisa ser realizado. Escusado será dizer que o setor turístico, a longo prazo, beneficiará deste trabalho, contribuindo para a economia do país.
A título de exemplo, menciono algumas situações com as quais estou
Sem se fazer este trabalho primordial, qualquer discurso sobre cultura será vazio e irrelevante. Não podemos continuar a arrumar a sala para impressionar os visitantes enquanto, nos outros compartimentos da nossa casa, a história vai sendo
É urgente que os governos locais e centrais criem condições estruturais para preservar esse património. Não podemos continuar a concentrar os esforços apenas em eventos efémeros que, apesar do seu mérito, muitas vezes não acrescentam valor real à construção do presente e do futuro do país. Precisamos de projetos estruturantes que passem de geração a geração. Todos ganham: a cultura, a ciência, a educação e, se quisermos, o turismo e a economia. Trata-se de um trabalho exigente e moroso, mas absolutamente essencial.
Defendo e reforço a necessidade de criação de linhas de financiamento que permitam à sociedade civil liderar este processo por meio de iniciativas privadas. O Estado, infelizmente, ainda não dispõe de condições institucionais, recursos humanos e técnicos para abranger toda a extensão desse trabalho – caso contrário, possivelmente, já o teria feito. Além disto, as instituições existentes estão centralizadas, o que compromete o acesso e a fruição desse património.
Pessoalmente, considero que os espólios espalhados pelo país devem ser preservados e trabalhados no contexto onde emergiram, para evitar esvaziamento das ilhas e localidades da sua memória essencial. Muitas das figuras mencionadas no texto, em vida, certamente manifestaram a importância de manter esse património nos seus locais de pertença.
Reforço, assim, a necessidade de desenvolver políticas públicas culturais que
Em suma, urge ativar este debate e implementar ações concretas e consequentes, pois a memória que não é protegida está condenada ao desaparecimento.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1216 de 19 de Março de 2025.