Populismo vive de problemas, não resolve problemas

PorA Direcção,6 jun 2025 8:17

A corrida para os extremos continua. No domingo passado, 1º de Junho, na Polónia, mais uma candidatura apoiada pela direita radical ganhou as eleições presidenciais. Tudo leva a crer que forças radicais em vários outros países não vão ficar por aí, particularmente quando, como no caso polaco, se tem o apoio explícito do movimento de Donald Trump (MAGA).

A persistência nessas sociedades de condições propícias ao crescimento do extremismo político tanto da direita como de esquerda, entre as quais a extrema polarização, a preferência pelo discurso político na base do ressentimento e a actuação política dirigida para a descredibilização das instituições, garante que haverá mais vitórias dos radicais.

O espantoso é que quem mais sai a perder com o processo continue a actuar da mesma forma. É o que se nota nas forças políticas tradicionais apesar da sua decrescente representação eleitoral e também nos contrapoderes, como os média, os sindicatos e as ONGs, e nos próprios indivíduos, mesmo perante a evidente derrapagem a favor dos extremos. Ninguém parece disposto a alterar a sua abordagem política, sentida como distante, mas apresentada como de proximidade, nem as suas reivindicações, que ignoram consequências e responsabilidade ou a sua preferência pela gratificação pessoal e instantânea tirada de denúncias de corrupção e de demonstrações de indignação. Mesmo quando é claro e evidente para onde se dirigem as soluções de mudança propostas pelos extremos – o mal-estar e o sofrimento que geram, a erosão de direitos que provocam e o futuro menos próspero e previsível que deixam – percebe-se que não é fácil travar ou inflectir tais abordagens políticas e avançar com reformas vantajosas para todos.

Não há, porém, como negar o resultado de certas políticas, de certa forma de governar e de um certo entendimento do mundo face ao que se assiste nos Estados Unidos, e ainda não se completaram seis meses do mandato de Donald Trump. Assim, na forma típica de exercício do poder pelos populistas centrada no líder tem-se reforçado a autoridade da presidência face ao poder legislativo e ao poder judicial. O sistema de checks and balance ficou mais fraco ao se forçar a submissão do congresso e ao se desafiar continuamente os tribunais até ao limite do não cumprimento pelo executivo de decisões judiciais, no que pode vir a configurar uma crise constitucional.

Na própria administração federal, com a imagem da serra eléctrica empunhada por Elon Musk, procurou-se tornar os funcionários vulneráveis, reduzir a independência das autoridades reguladoras e diminuir a isenção e imparcialidade do serviço público a favor da lealdade directa ao presidente. Nem as forças armadas, as polícias e os serviços de inteligência ficaram imunes a intervenções divisivas em contra-corrente com a cultura institucional existente que privilegia o mérito, a competência e o respeito pela constituição.

A erosão de direitos fundamentais que de imediato se sentiu naturalmente acabou por ter o maior impacto nos imigrantes e nas minorias, com prisões, deportações e perdas de emprego e de benefícios sociais. Para a criação do novo ambiente socio- político caracterizado pela compressão de direitos, deve-se juntar a ofensiva contra os média institucionais e contra universidades de referência e institutos científicos sob a capa de combate às políticas de diversidade, equidade e inclusão.

O impacto no mundo com o desencadear da guerra das tarifas tem sido terrível a ponto da OCDE, esta terça-feira, ter previsto que o crescimento mundial em 2025 será o mais baixo depois da pandemia da Covid-19. Com a guerra comercial têm-se deteriorado também as relações entre os países, entre os chefes de Estado com o exemplo das cenas grotescas na Casa Branca nas visitas do presidente da Ucrânia e da África do Sul. O mundo globalmente tornou-se mais perigoso, com guerras intensas sem fim à vista e com o sistema de alianças que mantiveram o mundo estável a desmantelar-se.

Também as fragilidades do mundo ficaram mais expostas com o sistema de ajudas internacionais a ameaçar colapso e as instituições multilaterais a debaterem-se com várias indefinições em relação ao futuro, designadamente em relação ao processo de globalização, às migrações, à transição energética e à luta contra as alterações climáticas. E ainda está para ver como vai ser enfrentado o futuro que já se anuncia cada vez mais próximo, marcado pela emergência e a utilização universal da Inteligência Artificial.

Tratando-se da maior potência mundial e da mais velha democracia constitucional, o que se passa na América pode ser, com as devidas proporções, a imagem da actuação do populismo noutras latitudes. Aliás, o seguimento pelos modernos líderes populistas do essencial do playbook de Trump já sugere o que virá depois do acesso às rédeas do poder quanto ao impacto a ser esperado no sistema político, na estrutura económica, no tecido social e no ambiente mediático. Se nem na América se sabe realmente se os estragos serão reversíveis, imagine-se o que pode vir a verificar-se à escala de outros países com menos capacidade e recursos para resistir e inverter a marcha depois da passagem da onda populista.

A melhor opção é, a tempo, não deixar a onda formar-se e crescer. Depois de já ter ganho dimensão seria de a impedir de chegar ao poder porque pela experiência de Trump já se sabe o que vai acontecer: a tendência para o culto de personalidade do líder, para se eliminar os equilíbrios de poder que impedem a concentração do poder, para condicionar a legalidade à conveniência do poder, para limitar a liberdade dos média e para expor o indivíduo à maior discricionariedade e arbitrariedade das autoridades. Nem como putativo prémio de consolação tais regimes se mostram capazes de fornecer serviços públicos com eficiência e eficácia, gerir o país com competência nos vários sectores e implementar estratégias inovadoras para o futuro.

Cabo Verde, à semelhança da generalidade das democracias, também se confronta actualmente com uma tentação populista. Para a enfrentar é fundamental que haja convergência de forças e vontade democrática para trabalhar na renovação da confiança nas instituições democráticas. Sentimentos anti-sistema em certos sectores de opinião acenam com supostas vantagens de regimes autoritários, até trazendo exemplos de movimentos militares em países da África Ocidental. É preciso informar aos mais novos e relembrar os outros que Cabo Verde já teve a experiência durante quinze anos de ditadura do partido único à mistura com o culto de personalidade do líder messiânico rodeado dos “melhores filhos do nosso povo”. Não deu certo.

O povo teve que conquistar a democracia para ter oportunidade de ser livre e construir a prosperidade que existe hoje. Nos processos de desenvolvimento há sempre a possibilidade de deparar com obstáculos que podem afectar o crescimento. Ultrapassá-los nem sempre é fácil. Como ninguém tem a verdade, há mais hipótese de os vencer com diálogo num ambiente de pluralismo de ideias e em que há confiança porque as regras do jogo democrático são respeitadas e acredita-se que mesmo com opinião diferente todos defendem o interesse público e o bem comum.

O populismo alimenta-se da falta de confiança, da divisão e da negação da pertença de todos à comunidade nacional. A partir daí não há uso para o diálogo, adversários são inimigos, a verdade é só uma. Acaba a política e o pensamento próprio e só resta a lealdade ao líder e à sua orientação. Não custa muito ver que esse é o caminho para o autoritarismo e para o atraso do país e das suas gentes.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1227 de 4 de Junho de 2025. 

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Autoria:A Direcção,6 jun 2025 8:17

Editado porAndre Amaral  em  7 jun 2025 23:29

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