Há momentos em que a vida de um país se mede não pelo brilho dos discursos, mas pela simplicidade de um gesto quotidiano: uma criança que pega na sua mochila e segue para a escola. O regresso às aulas em Cabo Verde, como em tantas outras geografias, é sempre um ato de renovação. Significa devolver à rotina a promessa do futuro. Significa acreditar que, apesar das dificuldades e das incertezas, há sempre um caminho que se abre para o amanhã. Este ano, porém, esse gesto ganha um peso simbólico ainda maior, sobretudo em São Vicente, onde as chuvas recentes deixaram marcas profundas, vidas perdidas e uma comunidade ainda em luto.
Ver as crianças regressarem às aulas naquela ilha, mesmo entre escombros e memórias dolorosas, é mais do que um sinal de resiliência, é a prova de que a educação é um alicerce que resiste às tempestades. Num tempo em que tantos perderam, as mochilas e os livros, voltar a ver os uniformes é a vida em forma de esperança. É como se cada sala de aula fosse, agora, um pequeno refúgio contra a violência imprevisível da natureza, mas também um espaço onde se pode sonhar com um futuro diferente.
Professores, os heróis discretos
Não podemos falar do regresso às aulas sem recordar os professores. O ano letivo passado foi marcado por lutas, reivindicações e conquistas importantes para a dignidade da classe docente. Pela primeira vez em muito tempo, muitos professores sentiram que a sua voz foi ouvida, que as suas reivindicações ganharam espaço na agenda nacional. Este ano, regressam às escolas com uma energia diferente. Têm pela frente não apenas a missão de ensinar, mas também a responsabilidade de transformar a educação cabo-verdiana num pilar ainda mais sólido.
É nos professores que se joga uma das batalhas centrais do país. Eles são os primeiros engenheiros da sociedade, os construtores invisíveis que moldam as gerações futuras. E, se é verdade que o seu trabalho exige melhores condições, é igualmente verdade que o país só poderá vencer os desafios de pobreza, desigualdade e vulnerabilidade climática se tiver na educação a sua maior arma.
O início de cada ano letivo é, portanto, um renovar de votos onde professores voltam a abraçar a missão, alunos regressam com os seus sonhos e famílias organizam-se para garantir o básico. E aqui cabe lembrar cada caderno oferecido, cada mochila partilhada e cada gesto de solidariedade que temos assistido em São Vicente, e a lembrança que estes atos são uma forma de dizer que acreditamos, todos, no poder transformador da educação.
O peso da desigualdade
É importante, no entanto, termos a consciência que não podemos fechar os olhos às desigualdades. A escola é o espaço onde de forma mais clara se refletem as fragilidades sociais. Crianças que chegam sem pequeno-almoço, jovens que dependem do transporte escolar para percorrerem longos trajetos ou famílias que têm de escolher entre comprar livros ou assegurar comida na mesa. Estes são desafios que não podem ser ignorados e que exigem do Estado, da sociedade civil e da diáspora uma resposta firme.
O regresso às aulas em Cabo Verde deve ser um momento para recordar que educar não é apenas abrir as portas de uma sala, mas criar as condições para que todos possam aprender com dignidade. É também um momento para reforçar o pensamento que investir na educação não é uma despesa, é a mais sólida e certeira estratégia de desenvolvimento. A este propósito, não posso deixar de citar Derek Bok quando afirmou “Se pensa que a educação é cara, experimente a ignorância”.
Lições do mundo: o que vem da China
Se ampliarmos a lente com que olhamos e observarmos para lá das nossas ilhas, percebemos que a educação está no centro de uma encruzilhada global. A reunião recente que teve lugar na China juntou líderes de diferentes países num momento marcado por tensões geopolíticas, desafios económicos e pelo peso de uma nova ordem mundial que começa a redesenhar-se.
Pode parecer distante, mas não é. Cabo Verde, como pequeno Estado insular, sente diretamente os efeitos das decisões que se tomam nos grandes centros de poder. Seja pela dependência económica, seja pelas mudanças climáticas que são fruto de políticas globais, seja pela própria necessidade de encontrar aliados estratégicos, ou por palavras mais simples e diretas, o que acontece na China têm impacto em nós.
E é precisamente aqui que a educação surge como ponte. Num mundo cada vez mais competitivo, em que a tecnologia e a inovação definem quem lidera e quem fica para trás, só os países que investirem fortemente na qualificação das suas populações poderão proteger-se das ondas da instabilidade internacional.
Enquanto os líderes discutem a ordem mundial em Pequim, nas salas de aula de Cabo Verde joga-se a ordem do nosso futuro. Porque a verdadeira soberania não se mede apenas pelo controlo das fronteiras ou pela robustez das finanças públicas, mas pela capacidade de formar cidadãos livres, críticos e preparados para enfrentar os desafios de um tempo de incerteza.
Reconstruir São Vicente com educação
A tragédia que atingiu São Vicente recorda-nos que o futuro será cada vez mais marcado por fenómenos extremos e imprevisíveis. E aqui também a educação deve ser central. Precisamos de ensinar as nossas crianças a compreender os riscos climáticos, a respeitar o ambiente, a preparar-se para uma economia verde e para formas de vida mais sustentáveis. Não basta reconstruir casas, temos de reconstruir mentalidades e preparar a sociedade para um mundo em que desafios serão permanentes.
A escola pode, e deve ser o primeiro espaço de resiliência. Professores que ensinam sobre sustentabilidade, currículos que introduzem a proteção dos oceanos e da biosfera, e projetos escolares que mobilizam comunidades para a proteção ambiental. Esta pode ser a verdadeira homenagem às vítimas, transformando a dor em lição e a vulnerabilidade em força.
Entre a esperança e a responsabilidade
Já exprimi no início deste artigo a minha visão que o regresso às aulas é sempre um tempo de esperança. As ruas enchem-se de crianças de uniforme, as mochilas carregam sonhos e até os cadernos em branco parecem carregar a promessa de páginas cheias de descobertas. Não obstante, é também um tempo de responsabilidade. Porque se não cuidarmos da educação hoje, daqui a vinte anos o país não terá o capital humano necessário para enfrentar os desafios que já estão à vista, com destaque para a economia digital, a inteligência artificial e a competição internacional cada vez mais forte.
A reunião na China é apenas um lembrete que vivemos num mundo interdependente, em que as decisões de uns afetam a vida de outros. Cabo Verde não pode competir com os gigantes em território ou em recursos naturais, mas pode, e deve competir naquilo que é mais duradouro, a capacidade de formar cidadãos de excelência. Um olhar para exemplos como Singapura poderão ser interessantes, modelos onde a educação e a formação de capital humano se equiparam a uma produção industrial ou a uma indústria de recursos naturais.
Assim, cada regresso às aulas é um ato político, mesmo que silencioso. É o momento em que decidimos, como sociedade, se acreditamos ou não na educação como caminho. Em São Vicente, este ano, essa escolha é ainda mais visível. Ao ver crianças regressarem às escolas, percebemos que o futuro insiste em nascer, mesmo entre lágrimas.
Num mundo incerto, onde a geopolítica se joga em reuniões distantes e a crise climática se abate sobre nós com cada vez mais violência, Cabo Verde tem de apostar naquilo que realmente lhe pode dar vantagem, uma educação de qualidade, inclusiva, capaz de formar cidadãos globais e resilientes.
O que está em causa, afinal, é simples, quando uma criança pega na sua mochila e segue para a escola, não é apenas o início de um ano letivo, é o início de um futuro possível. É a prova de que, apesar de tudo, o amanhã ainda está nas nossas mãos. E com isto, sou levado a concluir que a educação é o farol que guiará Cabo Verde para o amanhã.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1241 de 10 de Setembro de 2025.