Introdução
Em 2011, um grupo de mais de uma centena de distintos cidadãos mindelenses — muitos deles residentes na diáspora — lançou o Manifesto por um São Vicente Melhor, um documento que, pela primeira vez em décadas, condensou num texto claro e combativo a consciência coletiva de uma ilha em declínio e a vontade de inverter o rumo de centralização e marginalização que se vinha acentuando desde a independência.
O Manifesto denunciava o progressivo esvaziamento económico, institucional e cultural de São Vicente e reclamava uma reforma profunda na forma como o Estado se relaciona com as ilhas do arquipélago: mais equilíbrio territorial, mais autonomia administrativa e mais investimento estratégico na economia, na educação, na cultura e na inovação — especialmente em São Vicente.
Quinze anos depois, a ilha permanece, em grande medida, refém das mesmas fragilidades que o Manifesto havia identificado — e, em alguns casos, agravadas. O sonho de um desenvolvimento policêntrico, com Mindelo como motor de modernidade e plataforma atlântica, esbateu-se perante sucessivos desaires políticos e estratégicos. A perda do Campus Universitário para a capital, a incapacidade de sustentar o movimento regionalista até à votação de 2019 e a falta de continuidade das mobilizações cívicas revelam uma sociedade-ilhéu dividida entre a memória do que poderia ter sido e a resignação com o que é.
A recente tempestade Erin, que atingiu violentamente São Vicente, veio expor de forma dramática as vulnerabilidades estruturais da ilha. As enxurradas e destruições não foram apenas o resultado de um evento meteorológico extremo, mas também o espelho de décadas de urbanização descontrolada e ausência de planeamento territorial sustentável. A catástrofe revelou como a centralização política e a dependência de decisões tomadas à distância fragilizam a capacidade de resposta local — uma metáfora trágica de um país que, em vez de fortalecer as suas ilhas, continua a concentrar recursos e poder numa só.
Erin foi mais do que uma tempestade: foi o sintoma visível de uma crise profunda — ambiental, social e política — que o Manifesto de 2011 já previa sob outras formas. Quinze anos depois, entre o ideal cívico de “um São Vicente melhor” e a realidade de uma ilha à deriva, a questão essencial mantém-se: como reconstruir o futuro de uma comunidade que já foi símbolo de vanguarda em Cabo Verde e hoje se encontra à mercê do esquecimento e das intempéries — naturais e políticas?
1. O caso do Campus Universitário: uma oportunidade desviada
A questão do Campus Universitário constitui o símbolo maior das oportunidades perdidas de São Vicente. A ideia não era nova: quanto eu sei teve origem no engenheiro Humberto Cardoso, nos anos 1990, quando este assessorava o governo do MpD, defendendo a criação de um campus na Ribeira de Julião, em torno do então CFN/ISECMAR.
Contudo, foi apenas com o Manifesto por um São Vicente Melhor que a proposta ganhou forma concreta e se transformou numa verdadeira reivindicação cívica. Tudo indicava que Mindelo e São Vicente — pela sua história, tradição urbana e vocação cosmopolita, tendo acolhido o primeiro Liceu de Cabo Verde — reuniam todas as condições sociológicas e culturais para acolher o primeiro ou parte de um campus universitário do país, construído de raiz.
A lógica assim o exigia: qualquer nação que ambicionasse um desenvolvimento equilibrado teria investido na criação de dois polos universitários, um no sul e outro no norte do arquipélago. Contudo, a ideia acabou plagiada e desviada. Mindelo desapareceu do mapa das prioridades governamentais em matéria de ensino superior, e os recursos destinados ao projeto — que teriam sido um impulso vital para a economia da ilha — foram integralmente canalizados para a Praia, como sucede, aliás, com quase tudo o que de inovador é proposto para São Vicente.
Mais grave ainda, as forças vivas da ilha — outrora combativas — reagiram com apatia. O silêncio cúmplice de representantes locais e a falta de articulação da sociedade civil contribuíram para mais esta desconsideração da “ilha-cidade”, reduzindo São Vicente a mero espectador do seu próprio declínio.
2. A manifestação reivindicativa de 2017: um evento frustrado
A manifestação de 2017, nascida precisamente da questão do Campus Universitário, tinha potencial para se transformar numa vitória histórica para São Vicente e relançar uma nova dinâmica sociopolítica. Pela dimensão e força popular da mobilização, era previsível que o governo recuasse e reconsiderasse o modelo universitário unipolar centrado na Praia, destinando parte dos recursos a Mindelo.
Porém, o movimento foi mal conduzido. Dispersou-se, careceu de liderança, de palavras de ordem e de um objetivo específico e claro. Incrivelmente, nem sequer se pronunciou sobre o Campus durante a manifestação — a razão que dera origem à mobilização —, acabando num fiasco. Os líderes desviaram o foco para o tema da regionalização, já amplamente explorado pelo Grupo de Reflexão do Mindelo, diluindo o impacto do protesto. Por não apresentar uma reivindicação explícita, o governo terá interpretado a manifestação como mais um desfile carnavalesco mindelense, esvaziado de conteúdo político.
Na realidade a decadência moral e cultural da ilha é hoje tal que a própria ideia de um campus universitário já não suscita o entusiasmo que outrora moveria multidões. São Vicente tornou-se uma ilha depauperada, proletarizada e culturalmente distraída, concentrada em festas e carnavais que, embora expressão legítima da alegria popular, substituíram o antigo fervor cívico e intelectual que caracterizava o Mindelo de outrora.
A reivindicação concreta — “Queremos o Campus para Mindelo!” — perdeu-se em discursos genéricos e agendas paralelas. O resultado foi previsível: nenhum ganho político, nenhum compromisso concreto, nenhuma continuidade. Por esta e outras razões, é pouco provável que São Vicente volte a mobilizar tamanha adesão popular num futuro próximo.
Recorde-se que, no início do século XX, quando o Liceu do Mindelo foi encerrado, o abalo na ilha foi tão profundo que uma delegação encabeçada pelo ilustre Dr. Adriano Duarte Silva deslocou-se de imediato à Lisboa e só regressou depois de obter a confirmação do restabelecimento da instituição. Hoje, em contraste, o desaparecimento de oportunidades estruturantes, como o Campus Universitário, não provoca senão indiferença ou resignação.
3. O papel dos mindelenses no fiasco programado da regionalização de 2019
O fracasso da regionalização em Cabo Verde — um processo que se arrastou de 2010 a 2019 — foi duplo e multifacetado. Para além das responsabilidades que recaem sobre os partidos MpD, PAICV e UCID, o episódio expôs tanto a resistência do centro político e institucional como a fragilidade da periferia organizada — particularmente no plano sociopolítico mindelense.
Em 2016, quando o MpD e o PAICV iniciaram um raro diálogo com o Grupo para a Regionalização do Mindelo, tudo parecia indicar que a reforma tinha condições para ser aprovada. O projeto dispunha de apoio técnico sólido, mobilização cívica significativa e forte envolvimento da diáspora — que, de facto, sustentava a reflexão teórica e política do movimento regionalista.
Contudo, o desalinhamento político interno em São Vicente, marcado por oportunismos, hesitações e divisões, aliado à pressão exercida sobre deputados-chave, acabou por ditar o destino do processo no Parlamento em 2019. Mesmo quando tudo parecia encaminhado para a aprovação final — após o texto ter sido votado na generalidade —, dois deputados do PAICV, oriundos de São Vicente e da região de Barlavento, mudaram inesperadamente de posição no momento decisivo, selando o fracasso da proposta e frustrando anos de trabalho e esperança coletiva.
Por outro lado, o próprio Grupo para a Regionalização do Mindelo, que deveria ter mantido viva a chama da causa e pressionado os decisores até ao fim, confiou excessivamente nos partidos, perdendo força e visibilidade nas fases cruciais do processo. A diáspora, que havia liderado o movimento nos seus primórdios preferiu abster-se de um processo que só podia ser digladiado por forças residentes. O movimento cívico transformou-se em retórica, e a regionalização ficou reduzida a mais um episódio inacabado da história recente da ilha.
Conclusão
Quinze anos após o Manifesto por um São Vicente Melhor, a ilha encontra-se num ponto de inflexão. As teses visionárias do documento foram engolidas por uma sucessão de desilusões políticas e pela persistência de um modelo de governação que continua a tratar Cabo Verde como um país de uma só cidade.
A tempestade Erin veio lembrar, de forma dolorosa, que os fenómenos naturais não são apenas meteorológicos — são também sociais e políticos. Uma ilha que perde o seu dinamismo cívico e a sua capacidade de planear o futuro está tão exposta às intempéries do poder quanto às da natureza.
O desafio de São Vicente, hoje, é reencontrar a energia e o sentido de propósito que outrora a fizeram vanguarda do arquipélago. Só uma nova geração — livre de complexos e compromissos estritamente partidários, e verdadeiramente comprometida com o bem comum — poderá reatar o fio interrompido e devolver à “ilha-cidade” o lugar que sempre lhe pertenceu: o de farol atlântico da modernidade, da cultura e da cidadania cabo-verdiana.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1248 de 29 de Outubro de 2025.
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