Símbolo de excessos, de idolatria e de confusão, Babilónia acabou por cair, deixando como herança a imagem de uma civilização que, apesar da riqueza e do poder, se autodestruiu por não respeitar fundamentos morais e espirituais.
Evocar hoje a palavra “Babilónia” é falar de um lugar onde a mentira se torna sistema, onde a corrupção deixa de ser exceção e onde as instituições perdem a sua credibilidade. É nesse sentido que, na Praia, podemos falar da nossa própria Babilónia: não erguida em pedra e muralhas, mas feita de palavras quebradas, de contratos desrespeitados e de papéis tornados inúteis.
Tudo começou com uma mentira dita no espaço público. O Presidente da Câmara Municipal da Praia afirmou publicamente que o terreno da chamada “Babilónia” tinha sido vendido a uma empresa credora. Mas a verdade é outra: o terreno foi entregue a um privado, juntamente com outros, para ser vendido em nome próprio, destinando-se o produto da venda ao pagamento de dívidas ao credor em causa.
Mas a mentira é apenas a superfície. O que se esconde por baixo é mais grave: um conflito institucional entre poderes públicos pela titularidade do terreno, aliado à recusa em se cumprir um contrato e a um cenário de corrupção potencial. Terrenos públicos avaliados em centenas de milhares de contos são entregues por valores muito abaixo do mercado, levantando a inevitável questão: para onde vai a diferença? Quando recursos que pertencem a todos nós são canalizados de forma opaca e lesiva para a cidade, estamos perante a mais grave das acusações: a utilização do património público para alimentar interesses privados ou partidários. Este é o “saco azul” que mina a democracia e transforma a gestão municipal numa máquina de financiamento político.
Se a mentira mina a confiança e a suspeita de corrupção ameaça a democracia, há ainda um terceiro nível mais profundo: o da segurança documental, jurídica e do direito à propriedade. O direito à propriedade é um dos valores sacrossantos das democracias liberais. Não é apenas a garantia de que cada cidadão pode usufruir do que lhe pertence — é o alicerce sobre o qual se ergue a confiança económica, a iniciativa privada e a própria liberdade individual. Como dizia John Locke, “a propriedade é uma extensão natural da vida e da liberdade de cada pessoa”.
Mas a propriedade só é verdadeiramente protegida quando existe segurança documental. Foi Montesquieu quem recordou que a função das leis é, antes de mais, proteger os bens dos cidadãos contra o arbítrio. Sem contratos respeitados, sem registos credíveis, o direito à propriedade não passa de uma promessa vazia. Também a economia encontra aqui a sua base. Adam Smith já advertia que “sem a segurança da propriedade não há prosperidade nem crescimento sustentável”. E mais tarde, Hayek sublinharia que “onde a propriedade é frágil, a liberdade também o é”, porque sem autonomia patrimonial o cidadão fica dependente do poder político.
É por isso que a segurança documental e jurídica é pilar central do ambiente de negócios e um critério fundamental em qualquer ranking internacional de competitividade. Ela traduz-se na certeza de que quem investe em Cabo Verde pode ter a garantia de que o contrato assinado hoje será respeitado amanhã, e de que a propriedade adquirida não será arbitrariamente questionada ou violada. O caso da “Babilónia” não é, por isso, apenas um episódio local. É um sintoma de algo maior: a forma como decisões políticas inconsequentes podem corroer o direito à propriedade, fragilizar a confiança institucional e abalar a imagem externa de Cabo Verde.
O caso da “Babilónia” não ameaça apenas o direito à propriedade e a credibilidade institucional. Ele coloca também à prova a própria justiça. Porque quando surgem indícios de corrupção e violações graves de princípios fundamentais, o Estado de Direito exige uma resposta judicial firme e célere. É aqui que entramos num terreno ainda mais delicado: a judicialização da política.
O equilíbrio entre política e justiça é delicado. Um excesso de zelo judicial transforma conflitos políticos em processos judiciais. Mas há um risco igualmente corrosivo: a inação. Quando a justiça se cala perante casos que abalam a confiança pública, não apenas falha ao seu dever, como dá espaço à ideia de que tudo é permitido ou cria a percepção de absolvição, pois, afinal, o silêncio da justiça também é veredicto. Esta omissão fragiliza o Estado de Direito. Porque uma justiça que não responde a tempo e com clareza não protege a democracia — enfraquece-a. E nesse vazio cresce a indignação popular, alimenta-se o descrédito institucional e ganha terreno a narrativa de que a política é um espaço sem regras, onde tudo é tolerado.
“Babilónia” não é apenas o nome de um terreno. É uma metáfora histórica que expõe uma forma de governar que mente, que fragiliza o direito à propriedade, que desrespeita contratos e que ameaça a confiança nas instituições. É o símbolo da corrupção potencial e do colapso da segurança documental e jurídica que deveria sustentar o Estado de Direito.
Quando a palavra do poder político não vale, quando a propriedade deixa de ser segura, quando a justiça se cala, o que está em causa não é apenas um processo local — é a própria credibilidade do Estado. E um Estado que não é credível não inspira confiança nem dentro nem fora: nem aos cidadãos, nem aos investidores, nem à comunidade internacional.
Na memória bíblica, Babilónia caiu porque foi erguida sobre bases frágeis, corrompidas pela arrogância e pela decadência. A nossa Babilónia também corre o risco de ruir, arrastando consigo a confiança que demorámos décadas a construir. Mas este episódio pode ser mais do que um sinal de queda. Pode ser o alerta que nos obriga a reforçar a seriedade do Estado, a proteger o direito à propriedade, a honrar os contratos e a exigir uma justiça que responda com firmeza e celeridade.
Porque, no fim, tudo se resume a isto: um Estado vale tanto quanto vale a sua palavra. E é sobre a palavra do Estado — para lá da mentira e da corrupção — que está em jogo a confiança dos cidadãos, a vitalidade da democracia e a imagem externa de Cabo Verde.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1242 de 17 de Setembro de 2025.