Num regime democrático, a atuação da justiça deveria ser recebida com serenidade institucional, colaboração e respeito pelas regras. Quando a resposta é o ataque frontal aos tribunais, a vitimização política e a tentativa de descredibilização do sistema judicial, o problema deixa de ser meramente processual. Passa a ser político e, mais gravemente, institucional.
A tese da perseguição política não resiste a uma análise séria. A PGR tem atuado de forma transversal sobre instituições e responsáveis públicos de diferentes quadrantes políticos.
Houve investigações e buscas em câmaras municipais lideradas pelo MpD, diligências relacionadas com a gestão dos Fundos do Turismo e do Ambiente, intervenções na UASE e até buscas à residência de um Vice-Presidente do MpD. Mais do que isso, dois ministros deste Governo cessaram funções na sequência de processos judiciais, precisamente porque, num Estado de Direito, o escrutínio da justiça produz consequências políticas.
Estes factos desmontam qualquer narrativa de seletividade. A justiça atua onde entende existir matéria para investigação, independentemente da filiação partidária ou da posição institucional dos visados.
As diligências agora realizadas não surgem no vazio. São o resultado de quase cinco anos de denúncias, alertas e sinais de disfunção, muitos deles vindos do interior da própria CMP.
Um desses factos foi a carta pública do Director de Auditoria Interna da Câmara, contratado pelo próprio Presidente da autarquia. Não se tratava de um opositor político, mas de um técnico cuja função era assegurar legalidade, controlo e boa gestão. Essa carta contém passagens particularmente graves, descrevendo práticas e procedimentos que levantam sérias reservas quanto ao respeito pelas normas, pela transparência e pela defesa do interesse público.
A estas denúncias juntaram-se também posições públicas assumidas por um Vereador da própria equipa camarária, que ao longo do tempo tem feito denúncias públicas de elevada gravidade. Estamos, portanto, perante um histórico consistente de alertas internos, sucessivamente ignorados ou desvalorizados.
Reduzir este percurso a uma súbita perseguição política é negar deliberadamente a existência de sinais claros que se foram acumulando ao longo do tempo.
Neste contexto, insere-se também o caso “Babilónia”, como parte de um conjunto de práticas que suscitaram dúvidas persistentes sobre a gestão do património municipal e a legalidade de determinados atos administrativos.
A apreensão de terrenos e documentação pela PGR confirma a gravidade da matéria em causa. Quando estão em jogo bens públicos e decisões com impacto coletivo, o apuramento rigoroso de responsabilidades não é uma opção política; é uma exigência democrática.
No recente Debate sobre o Estado da Justiça, o PAICV assumiu um discurso firme de combate ao crime do colarinho branco, defendendo uma justiça mais musculada e menos tolerante com crimes económicos e financeiros. Essa posição é correta e necessária.
O que se torna difícil de compreender é a incoerência entre esse discurso e a reação atual. O crime do colarinho branco não deixa de o ser quando envolve dirigentes do próprio partido. Pelo contrário: sendo crimes que envolvem recursos públicos (de todos) devem merecer atenção prioritária da justiça.
Defender o combate a estes crimes em abstrato e rejeitá-lo quando se materializa em fiscalização concreta enfraquece a credibilidade política e o próprio Estado de Direito.
Este episódio revela também um padrão típico do populismo contemporâneo. No plano discursivo, proclama-se transparência, abertura à fiscalização e intolerância à corrupção. Mas quando a fiscalização acontece, quando a justiça atua de forma efetiva, a reação é de ataque e deslegitimação.
A transparência aceitável é a proclamada; a que incomoda é a exercida. Em vez de se discutir factos, constrói-se uma narrativa emocional destinada a substituir a realidade por percepções. É o que tenho designado como a “armadilha da percepção” em funcionamento.
No entanto, o Presidente da CMP, conseguiu ser ainda mais surpreendente, propondo uma alteração da Constituição, com o argumento de que seria necessária “para não voltarmos a ter ações desta natureza”.
A Constituição de Cabo Verde não é um instrumento circunstancial, moldável ao desconforto momentâneo de titulares de cargos públicos. É o pilar fundador do Estado de Direito Democrático, assente na separação de poderes, na autonomia do poder judicial e na independência da justiça face ao poder político.
Propor uma revisão constitucional em correlação direta com uma intervenção da justiça transmite uma mensagem inquietante: a de que o problema não está nos factos nem na legalidade, mas na existência de uma justiça capaz de incomodar o poder. O timing da proposta não é neutro. É politicamente e institucionalmente revelador.
A Constituição existe precisamente para proteger a democracia nos momentos difíceis, quando o poder se sente limitado, escrutinado ou contrariado. Utilizá-la como escudo contra a ação da justiça seria inverter a sua razão de ser.
Quando se ataca a justiça, se relativizam denúncias internas, se descredibilizam investigações e se acena com alterações constitucionais para evitar o escrutínio judicial, aproxima-se perigosamente a ideia de que o poder político pode colocar-se acima da lei.
Esse é um limite que nenhuma democracia pode aceitar. O exercício de funções públicas implica deveres acrescidos de responsabilidade, respeito institucional e exemplaridade. A lei existe para enquadrar o poder, não para ser moldada em função dele.
Cabo Verde construiu, com esforço coletivo, um Estado de Direito respeitado. Essa conquista não pertence a partidos nem a pessoas. Pertence ao país. E só se preserva com um princípio simples, mas essencial: ninguém está acima da Lei.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1255 de 17 de Dezembro de 2025.
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