As democracias não são destruídas apenas por inimigos declarados. São, muitas vezes, minadas por aqueles que dizem agir em seu nome. Recordemos Alexis de Tocqueville quando advertia que o maior perigo para a liberdade não vem do excesso de conflito, mas da erosão lenta das garantias institucionais, quando os cidadãos se habituam a ver o poder ultrapassar limites em nome de causas supostamente nobres.
As buscas realizadas pelo Ministério Público à Câmara Municipal da Praia não são, por si só, uma crise democrática. São o funcionamento normal de um Estado de Direito. A verdadeira crise começa quando uma investigação judicial passa a ser tratada como um golpe político, quando magistrados são transformados em alvos e quando a aplicação da lei é apresentada como perseguição.
Quem acredita na sua inocência coopera com a justiça. Quem confia nas instituições não precisa de gritar. Quem respeita a democracia não tenta intimidar quem a sustenta. A independência do poder judicial não é um privilégio dos magistrados, é uma garantia dos cidadãos. É o último escudo entre o indivíduo e o arbítrio. Sempre que esse escudo é atacado, não é a justiça que perde primeiro, é o cidadão comum, sobretudo o mais frágil, o menos protegido.
O que se seguiu às buscas não foi defesa institucional nem esclarecimento público. Foi uma campanha agressiva, ruidosa e calculada contra o poder judicial, contra o Ministério Público e, por arrasto, contra a própria Constituição. Uma campanha alimentada por aliados políticos, alguns deles com evidentes conflitos de interesse, incluindo ligações familiares diretas a pessoas visadas pela investigação. Nada disto é acidental.
Montesquieu deixou-nos um aviso que atravessa séculos quando afirmou que “Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo de principais, exercesse os três poderes”. Quando hoje se ataca o poder judicial por exercer as suas funções, está-se a tentar reescrever essa equação fundamental, substituindo o equilíbrio pela submissão.
Quando o poder se sente ameaçado, tenta primeiro desacreditar, depois condicionar e, por fim, controlar. O discurso atual segue essa cartilha com rigor inquietante, uma estratégia onde os magistrados são apresentados como atores políticos, processos judiciais descritos como conspirações e instituições tratadas como obstáculos.
A história recente mostra-nos como este discurso evolui, começando com a suspeição, avançando para a deslegitimação e terminando na captura institucional. Países que ontem eram democracias funcionais acordaram, em poucos anos, com tribunais enfraquecidos, constituições moldadas ao poder e liberdades reduzidas a formalidades. Nenhum deles acreditou, no início, que estava a seguir esse caminho.
Não posso, ainda, deixar de salientar o silêncio do Presidente da República durante tantos dias. Num regime democrático, o Chefe de Estado não é um figurante quando a separação de poderes é posta em causa. É o seu garante. Quando se cala perante ataques desta natureza, o silêncio deixa de ser neutralidade e passa a ser tolerância. Há que reconhecer a insistência dos jornalistas que permitiram “arrancar” uma verdade inegociável, a que a Constituição da Republica não pode ser atacada.
Em momentos críticos como o atual, o silêncio institucional não é neutralidade. É um posicionamento. O Chefe de Estado não existe apenas para representar o país no exterior. Existe, sobretudo, para defender a Constituição quando ela é atacada, mesmo que isso seja incómodo e tenha custos políticos.
O verdadeiro alarme soa quando se começa a falar, com naturalidade perturbadora, na necessidade de “rever” a Constituição. Não para a fortalecer ou aprofundar direitos, mas para limitar a autonomia do poder judicial e torná-lo mais “controlável”.
O conceito de “justiça controlável” é, em si mesmo, uma contradição democrática. Uma justiça que pode ser controlada deixa de ser justiça. Passa a ser administração do poder. E quando o poder controla a justiça, deixa de existir qualquer garantia real contra abusos, corrupção ou perseguições seletivas.
É assim que as democracias se perdem. Não por revoluções, mas por revisões. Não por tanques na rua, mas por alterações legais aprovadas sob aplauso partidário. Sempre com boas intenções declaradas. Sempre em nome da estabilidade.
Vaclav Havel lembrava que o autoritarismo moderno raramente se apresenta como tirania. Apresenta-se como pragmatismo, eficiência e resposta a uma crise. E é precisamente nesses momentos que as sociedades são chamadas a escolher entre o conforto imediato e a liberdade duradoura.
Cabo Verde conhece bem este caminho. Antes de 1991, vivemos num regime onde a justiça não era independente, onde o poder político não tinha contrapoderes reais e onde a liberdade era concedida, não garantida. A mudança democrática exigiu coragem, risco pessoal e uma rutura clara com esse modelo.
Os fundadores da nossa democracia não procuraram atalhos. Não tentaram domesticar instituições nem pediram uma justiça “compreensiva”. Exigiram liberdade plena, pluralismo e separação de poderes, mesmo sabendo que isso significava perder controlo.
Hoje, essa herança está a ser testada. A democracia cabo-verdiana não nasceu por inércia. Nasceu de uma escolha consciente, feita contra o medo e contra a tentação do controlo absoluto. Esquecer esse percurso é desrespeitar quem arriscou reputações, carreiras e futuro pessoal para que hoje possamos discordar livremente.
Não se defende a democracia atacando juízes, não se protege o povo fragilizando as instituições que o defendem e não se combate a corrupção escolhendo alvos conforme a conveniência política.
Há uma ironia difícil de ignorar, onde muitos dos que agora atacam o Ministério Público são os mesmos que, em discursos passados, exigiam mão dura contra a corrupção. O problema nunca foi o combate à corrupção. O problema começa quando esse combate deixa de ser seletivo. A justiça não se agenda, não se negocia e não pede autorização.
Quando a justiça se transforma em instrumento, já não protege direitos, distribui favores. Deixa de servir a lei para passar a servir interesses. E quando isso acontece, o cidadão deixa de confiar, a sociedade fragmenta-se e o próprio Estado perde autoridade moral.
Este momento é perigoso porque normaliza o inaceitável e habitua o país à ideia de que magistrados podem ser pressionados. Porque ensina que, quando o poder é questionado, a resposta legítima é atacar quem pergunta.
Cabo Verde é respeitado internacionalmente não pela sua dimensão, mas pela sua credibilidade democrática, pela previsibilidade institucional e pela confiança nas regras. Essa reputação levou décadas a construir e pode ser destruída em poucos meses de irresponsabilidade política.
Quem hoje se apresenta com soluções autoritárias ou revisões constitucionais oportunistas deveria ter a honestidade de dizer ao país o que realmente propõe, ou seja, menos democracia em troca de mais poder. Este não é um debate partidário, é um teste moral e institucional.
Ou estamos do lado da Constituição, da separação de poderes e da justiça independente, ou estamos a abrir a porta a um regresso que jurámos nunca mais permitir. A história ensina-nos que a democracia raramente morre de repente. Morre devagar, sob aplausos e sob o argumento traiçoeiro de que “é só desta vez”. Desta vez, não pode ser.
Porque quando a justiça é atacada, não é o Ministério Público que está em risco. É a liberdade de todos nós.
Finalmente, neste tempo de Boas Festas, desejo a todos os cabo-verdianos serenidade e confiança no futuro. Que entremos no novo ano firmes na defesa da liberdade, da justiça e da democracia.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1256 de 24 de Dezembro de 2025.
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