Mas a verdade é que o Ministério Público apenas tinha cumprido o seu dever de defender a legalidade democrática e pedido ao Tribunal Constitucional para apreciar e declarar a inconstitucionalidade dessa resolução.
O insólito tinha acontecido antes: mais de dois anos depois do agora ex-deputado, “judicialmente ter perdido o mandato por crime de responsabilidade”, aparentemente procura-se reabrir o processo com uma comissão de inquérito parlamentar, para supostamente apreciar e fiscalizar “eventual violação de deveres e uso abusivo de direitos” que teria cometido. A questão que se coloca é a quem isso serviria. Ao próprio certamente que não, pois, por comando constitucional, “as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades”.
Ao próprio parlamento parece que não serviria considerando que a polémica criada à volta da competência da Comissão Permanente “em exercer os poderes da Assembleia Nacional relativamente aos mandatos dos deputados” entre reuniões plenárias, tida por alguns como “costume” e contrária à Constituição, continua a constar do Regimento da AN e não é prevista a sua alteração, nem mesmo no projecto de revisão do regimento apresentado conjuntamente pelos dois partidos para aprovação na sessão parlamentar iniciada hoje. Fundamentalmente serve, de facto, para reatiçar os ataques aos juízes e ao Ministério Público num quadro mais geral de descredibilização das instituições que bem se presta aos propósitos populistas de minar a democracia a partir de dentro.
Se alguma dúvida houvesse quanto à intencionalidade política da criação da comissão de inquérito, foi claramente dissipada pela imediata e quase explosiva reacção verificada na comunicação social e nas redes sociais ressuscitando as velhas acusações contra o poder judicial, mas também contra o parlamento e não poupando o presidente da república. Aliás, uma primeira tentativa de pôr os órgãos de soberania a rever decisões dos tribunais já tinha sido feita com a petição dirigida ao PR a pedir a convocação de uma sessão da AN para apreciar o acórdão do Tribunal Constitucional sobre a mesma matéria que agora vai ser objecto da comissão parlamentar. O PR recusou o pedido e na sequência um dos mentores da petição, em entrevista à imprensa, em Julho de 2023, não deixou de reconhecer que caso tivesse decidido o contrário e convocado o parlamento teria criado “uma crise institucional”.
Desta vez parece que se acertou em criá-la e agora é ver até onde pode ir nos seus efeitos funestos. Diferentemente do PR que justificou a sua recusa ao pedido na petição alegando a separação de poderes, alguns deputados dos dois maiores partidos, MpD e PAICV, juntaram-se a uma iniciativa da UCID para viabilizar com 15 deputados a criação obrigatória de uma comissão de inquérito. É verdade que nem o Presidente da AN tinha de aceitar a proposta por manifestamente inconstitucional, nem teria que ser incluída na ordem do dia por maioria absoluta dos votos dos deputados, nem votada a lista dos membros da comissão de inquérito pela mesma maioria. Falhas em catadupa que felizmente o PGR com o pedido de fiscalização abstracta da constitucionalidade poderá eventualmente reparar.
Os estragos em termos de descrédito das instituições são, porém, inevitáveis como pretendido pelos que, por razões várias, aproveitam de todas as oportunidades de crise real ou imaginária para, com manifestações sucessivas de indignação e ressentimento, alimentar sentimentos antisistema. O problema torna-se mais grave quando são os partidos, que deviam ser os pilares do sistema democrático e liberal, a se aliarem a essas manobras e movimentações, à procura de um ganho político imediato. Nota-se, entretanto, que sempre que a democracia está a ser fustigada e ameaça deslizar por uma rampa descendente, há um alvo preferencial a desgastar - o poder judicial.
Quando se esbate o consenso entre os partidos e os actores políticos sobre a necessidade de salvaguardar as normas e os procedimentos democráticos, ainda são os tribunais independentes que podem pôr travão às pretensões ilegais, antidemocráticas e limitadoras dos direitos fundamentais. Por isso é que, numa deriva autocrática, em antecipação, se procura pôr todo o sistema judicial em causa, capitalizando o descontentamento real da generalidade das pessoas com os problemas da justiça, em particular os da morosidade. Vê-se isso em todas as democracias, onde disputas com forças iliberais estão a ter lugar, seja nos Estados Unidos, no Brasil, e em vários países europeus.
A referida deriva fica mais fácil se um dos partidos já foi capturado por uma liderança populista autocrática como aconteceu nos Estados Unidos com o partido republicano e se o outro, o partido democrático, dividido e desnorteado por facções e divisões internas, não sabe como contrapor ao tacticismo de quem não se rege pelas regras do jogo democrático. Algo similar poderá estar a acontecer em Cabo Verde. Os acontecimentos dos últimos dias à volta da Câmara Municipal da Praia, em reacção à busca do Ministério Público nas suas instalações, no âmbito de uma investigação criminal, podem ser o prenúncio de um resvalar para a autocracia num futuro próximo.
Os ataques violentos ao poder judicial são um sinal disso. Também o é a complacência na criação da comissão de inquérito, que claramente iria pôr em causa a credibilidade das instituições, ao revelar um deficiente engajamento dos partidos com os princípios, as normas e os procedimentos democráticos. Da mesma forma que também é um sinal grave deixar-se criar um ambiente de impunidade perante atropelos graves à lei e à ordem, designadamente os de, arbitrariamente e num acto de retaliação política, encerrar serviços públicos municipais, não recolher o lixo e impedir o acesso aos cemitérios.
Steven Levitsky, no seu livro “Como as democracias morrem”, diz que “As democracias podem morrer não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos — presidentes ou primeiros-ministros que subvertem o próprio processo que os levou ao poder. Alguns desses líderes desmantelam a democracia rapidamente (…). Mais frequentemente, porém, as democracias se deterioram lentamente, em etapas quase imperceptíveis.”
É fundamental que se tenha bem presente essa verdade e estar alerta quanto aos sinais para os contrapor. Também é fundamental estar ciente que a liberdade e a prosperidade actual de Cabo Verde resultam da democracia estável e funcional que prevaleceu nos últimos trinta e cinco anos. E que mais crescimento, mais prosperidade e esperança no futuro vão depender de se poder manter e aprofundar essa ordem democrática.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1255 de 17 de Dezembro de 2025.
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