A escrita antes da lei
O manual chega às escolas com ambição: páginas cuidadas, textos que dão gosto ler, actividades digitais que despertam curiosidade e um discurso afirmativo sobre a nossa língua materna. É, no plano pedagógico, um avanço necessário e bem-vindo. Cabo Verde precisava deste passo há muito tempo.
Mas esse avanço trouxe consigo um deslize de método. Ao assumir uma grafia única – coerente, sistemática, aplicada de ponta a ponta – o manual procedeu como se a norma ortográfica já estivesse definida, aprovada e legitimada pelo Estado. Não está. E é precisamente aqui que o parecer do Procurador-Geral da República se torna incontornável: a fixação de uma norma ortográfica não cabe a um manual; cabe ao processo institucional e constitucionalmente previsto.
Desde o ALUPEC, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 67/98 e posteriormente instituído como Alfabeto Cabo-Verdiano pelo Decreto-Lei n.º 8/2009, a questão da escrita sempre exigiu equilíbrio entre técnica, participação e legitimidade.
Contudo, o modo processual da aprovação do ALUPEC foi desde cedo alvo de críticas: tratou-se de um decreto-lei governamental, e não de uma lei parlamentar, numa matéria que muitos consideram estrutural e identitária. A ausência de debate público e científico amplo fragilizou a sua legitimidade, e o diploma acabou por instituir um alfabeto, não uma norma.
O mesmo padrão repetiu-se com o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AO-1990). Também nesse caso, o Governo cabo-verdiano optou por aprovar o diploma por decreto-lei, em 2009, sem debate parlamentar, definindo um período de transição entre seis e dez anos. Tal como o ALUPEC, o Acordo foi juridicamente reconhecido, mas a sua implementação prática revelou-se lenta e incompleta.
O paralelo é evidente: em Cabo Verde, a política linguística tem sido conduzida mais por actos administrativos do que por processos participativos – e é precisamente essa ausência de debate que volta agora a fragilizar a adopção da grafia no Manual de Língua e Cultura Cabo-Verdiana.
O que o manual fez, ao avançar com uma grafia própria, foi agir como se esse caminho estivesse concluído – ignorando que o Estado reconheceu um alfabeto, mas nunca definiu uma ortografia nacional.
Os conflitos actuais em torno da grafia do Manual revelam, afinal, a fragilidade estrutural daquele diploma fundador: teve o mérito de abrir a porta, mas não chegou a construir o caminho.
O PGR não discute linguística; discute legalidade. E lembra que padronizar a escrita do cabo-verdiano é acto de política cultural que exige debate, rigor e legitimidade. A escola não pode substituir-se ao Estado. Nem deve.
A língua não se impõe por decreto pedagógico
A língua cabo-verdiana é património cultural, memória colectiva e bem jurídico. A sua escrita – ainda em construção – tem implicações directas na sua futura oficialização. Por isso, não pode ser definida de forma silenciosa, nem imposta pela prática escolar antes de existir consenso nacional.
Ao introduzir uma ortografia operacional e única, o manual criou um facto consumado: quando uma grafia aparece num manual escolar, mesmo sem intenção normativa, a escola transforma-a em uso regular e, inevitavelmente, em norma tácita. Tornou rotina o que é, ainda, proposta. E fê-lo sem o diálogo necessário com o Ministério da Cultura, com especialistas que há décadas estudam o cabo-verdiano, com associações que acompanham a causa da oficialização e, sobretudo, sem ouvir a pluralidade dos falantes.
E essa pluralidade conta. Nenhuma ilha fala sozinha. Cada variante carrega séculos de história, memória e afectos. Uma norma que favoreça apenas algumas variantes cria assimetrias pedagógicas e injustiças desnecessárias. Nada disto fortalece a língua. Nem a escola. E muito menos o país que pretende uma política linguística séria, inclusiva e legitimada.
Em matéria de língua, o método é tão importante quanto o resultado: a norma ortográfica é um instrumento do Estado – nunca um subproduto da urgência escolar.
Uma boa ideia, um mau atalho
O ensino do cabo-verdiano nas escolas é uma conquista histórica. O parecer do PGR não a põe em causa – reforça-a. Exige, apenas, que o caminho seja feito com rigor, prudência e legitimidade.
O que está em causa é o atalho: a transformação de uma grafia experimental numa norma tácita, introduzida por via de um manual que chegou antes do debate nacional. Cabo Verde, que tanto tem discutido a sua língua, não merece decisões apressadas sobre um dos seus patrimónios mais profundos.
O manual podia ter desempenhado outro papel: apresentar as variantes, explicar as propostas existentes, contextualizar o ALUPEC, mostrar os pontos de convergência e de divergência. Podia – e devia – ter ajudado os alunos a compreender que a escrita é um processo vivo, plural e democrático.
Em vez disso, fixou uma única forma gráfica. E perdeu-se a oportunidade rara de fazer pedagogia da diversidade – essa mesma diversidade que é a grande força do cabo-verdiano.
Perante o impasse criado, a saída não passa por suspender o ensino da língua, mas por corrigir o método e recentrar o processo onde ele deve estar: no Estado e na participação pública. O parecer do PGR aponta o caminho essencial: reconhecer a precipitação, reabrir o debate e criar uma comissão nacional, plural e tecnicamente sólida, capaz de propor uma norma de referência sem atropelos, sem exclusões e sem favoritismos entre variantes.
Ao mesmo tempo, uma norma transitória – clara, provisória e assumidamente plural – permitiria ao sistema educativo trabalhar com serenidade enquanto o consenso se constrói. Desta forma, o manual deixa de ser um atalho e passa a ser o que deve ser: um instrumento pedagógico ao serviço da diversidade, e não uma norma tácita imposta pela pressa. Porque a língua cabo-verdiana só avançará de forma segura quando avançar com o país inteiro por dentro.
O Caminho que a Língua Exige
Chegados aqui, torna-se evidente que o debate já não é apenas técnico ou escolar – é, acima de tudo, um exercício de responsabilidade nacional.
Ensinar o crioulo é um acto de futuro – mas o futuro não aceita atalhos. Exige caminho firme, chão seguro, passos dados à luz do dia. A língua cabo-verdiana, com a sua música, as suas marés e as suas ilhas todas dentro, não cabe numa pressa, nem tolera que a amarrem antes de a ouvirem.
O parecer do PGR lembra-nos isso mesmo: que a língua é casa de todos, não aposento de alguns; que a norma deve nascer de um país inteiro, e não de um manual que correu mais depressa do que a lei; que a escrita, para ser nossa, precisa antes de ser justa.
Porque uma língua não se impõe – conquista-se.
Devagar, com coragem.
Com ciência, com debate.
E, sobretudo, com a humildade de quem sabe que nenhuma grafia vale mais do que a dignidade dos seus falantes.
Só assim o crioulo poderá escrever, um dia, a sua página mais alta: a da oficialização feita com consenso, clareza e pertença. Até lá, que se avance – mas com o país inteiro por dentro, e nunca apenas com a pressa de um manual que chegou antes da hora.
E isso – mais do que uma questão técnica – é uma exigência democrática.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1254 de 10 de Dezembro de 2025.
homepage








