O Silêncio que Fala: Memória, Verdade e Liberdade

PorManuel Brito-Semedo,24 dez 2025 7:58

O Centro Nacional de Artesanato e Design, em São Vicente, onde foi apresentado Tarrafal, 1975 – O Campo do Silêncio, foi o lugar que, a 9 de Dezembro de 1974, se fez ouvir a tomada da Rádio Barlavento. Esse espaço guarda ainda o eco de um tempo em que a palavra se confundia com o poder e a liberdade com o risco.

O Lugar Onde a Liberdade Falou e o Silêncio Ficou

Coincidência carregada de sentido: o lugar que acolheu a voz da memória foi o mesmo que, há meio século, fez ressoar a voz da liberdade. Ali, a voz das ilhas – símbolo de modernidade e esperança – converteu-se no prelúdio de um novo silêncio: o início de um ciclo que conduziria às prisões e à reabertura do Campo de Chão Bom, no Tarrafal. A história fala connosco através das suas ironias: o mesmo espaço onde a liberdade falou tornou-se, pouco depois, marco de repressão.

Há livros que não são apenas livros: são gestos de coragem, exercícios de lucidez e de reparação. Tarrafal, 1975 – O Campo do Silêncio é um desses – simultaneamente documento e consciência, prova e interrogação. Um livro que não acusa nem absolve, mas restitui – com a serenidade de quem sabe que a verdade, para ser libertadora, não precisa de gritar.

A Descoberta: Arquivos, Vozes e Fantasmas

O Tarrafal – nome que atravessa quase um século – tornou-se sinónimo de repressão, sofrimento e resistência. Conhecíamos o Tarrafal do Estado Novo, criado em 1936 nas areias quentes de Santiago, para onde foram enviados opositores do regime. Durante décadas, o “Campo da Morte Lenta” simbolizou a crueldade colonial. Acreditou-se que essa história terminara a 1 de Maio de 1974, com a libertação dos últimos presos políticos. Pensava-se que o lugar se transformaria em memorial – que o seu silêncio seria apenas o da memória.

Mas a história raramente se deixa fechar. Entre pastas amareladas, a autora encontra telegramas e relatórios de 1975: o campo fora reaberto. A partir daí, a investigação transforma-se em compromisso. Sandra Inês Cruz mergulha nos arquivos de Lisboa e da Praia, cruza fontes e recolhe testemunhos. O livro devolve nome e rosto a cinquenta e oito homens presos sem culpa formada, apenas por divergirem das ideias dominantes. Essa sensibilidade ética foi reconhecida com o Prémio Literário Manuel Alegre 2025, atribuído ao conto Inocência, inspirado no mesmo universo.

A autora não escreve apenas como jornalista, mas como cidadã e historiadora da memória. A sua escrita é um exercício de escuta: dá voz aos silenciados, traduz em palavra o que ficou por dizer. O gesto de ir ao arquivo torna-se acto político e moral, porque recordar, neste contexto, é também um modo de reparar. E, ao fazê-lo, a autora reinscreve o Tarrafal não como ferida, mas como advertência – como um espelho onde a nação pode rever-se sem medo. A investigação é, assim, um acto de amor cívico: enfrenta o esquecimento e devolve humanidade à história.

Estrutura e Vozes

A obra inicia-se com uma introdução que explica o propósito: compreender como um espaço de repressão pôde voltar a funcionar num tempo de libertação. “Os Antecedentes” reconstituem o ambiente político de 1974-75 – as divisões entre movimentos e a disputa pelo sentido da independência. “Os Factos” mergulham nos documentos, revelando a engrenagem da repressão e a fragilidade do momento histórico.

Depois, a narrativa passa do plano político ao humano: A Prisão na Boca dos Prisioneiros, A Prisão na Memória das Famílias e Os Prisioneiros na Memória do Arquivo dão voz ao sofrimento. São cartas, depoimentos e recordações de quem viveu a contradição de ser prisioneiro de uma liberdade ainda por amadurecer. Um telegrama enviado às Nações Unidas resume o drama moral:

“Alarmante panorama… presos apenas por discordarem da política em curso, enclausurados no antigo e tão criticado Campo de Concentração, reaberto há quarenta e oito dias.”

Essa denúncia, que atravessou o Atlântico, é o espelho da perplexidade de uma época em que o poder confundia segurança com medo e unidade com obediência. O último capítulo, Ecos do Tarrafal de 1975, reúne reflexões e debates que, ao longo das décadas, tentaram devolver esta história ao espaço público. Mostra como o tema foi sendo silenciado e, ao mesmo tempo, como alguns insistiram em não o deixar cair no esquecimento.

A estrutura do livro – do documento à voz e da voz à reflexão – é metáfora do próprio processo de libertação. Conhecer, compreender, recordar: esse é o caminho. O livro conduz da frieza dos factos à vibração da consciência e lembra que a liberdade é construção permanente.

Os nomes que a autora restitui – Ângelo Lima, Tomás Benrós, Arlindo Barradas, Fausto Barbosa, Pedro Varela, entre outros – tornam-se símbolos de um tempo que o país precisa reconhecer. Não são mártires nem heróis, mas cidadãos que sofreram as contradições da história. É essa dimensão humana que faz desta obra um acto de consciência e não de denúncia.

A Consciência como Última Liberdade

O esquecimento é sempre uma escolha; a memória reprimida regressa sob outras formas. Este livro mostra que é possível olhar o passado com serenidade e sem complacência. Recordar não reabre feridas – impede-as de infeccionar. Reconhecer não divide – reconcilia.

Cinquenta anos depois, o Tarrafal continua metáfora e espelho: lugar físico e espaço mental, onde se confrontam poder e consciência, medo e esperança. É um sítio onde se ouvem as vozes que o tempo tentou calar – vozes de operários, marinheiros, professores, jovens sonhadores que acreditavam num país mais justo. Cada nome é uma história, cada história uma advertência.

O livro restitui-nos não apenas um episódio, mas um sentido de responsabilidade. O Tarrafal é já parte do nosso percurso democrático e, por isso, esta obra é necessária: porque restitui nomes, devolve dignidades e lembra que a justiça começa na verdade. Ao fim de cinco décadas, Sandra Inês Cruz oferece-nos um livro que transforma o silêncio em palavra e a palavra em consciência.

A sua mensagem é clara: não há reconciliação sem memória, nem liberdade sem verdade, nem futuro sem coragem para recordar. O silêncio, quando é finalmente escutado, torna-se consciência – e a consciência é a forma mais alta da liberdade.

Antes de concluir, uma palavra de gratidão: à autora, pela coragem e lucidez; e aos que guardaram documentos, testemunhos e fé na verdade. Que este livro circule, seja lido e levado às escolas, porque sem memória não há pertença, e sem pertença não há futuro. Recordar é cuidar, e cuidar é amar o país inteiro – com as suas luzes e as suas sombras.

E que o Tarrafal, convertido em espaço de memória viva, continue a lembrar-nos que a liberdade é uma tarefa inacabada – um pacto de consciência que cada geração deve renovar. Porque só quando o país aceitar o seu passado por inteiro poderá, enfim, escrever o futuro sem medo e com dignidade. Que este livro, nascido do silêncio, se torne instrumento de voz colectiva, devolvendo à palavra o poder de unir, curar e libertar.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1255 de 17 de Dezembro de 2025.

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Autoria:Manuel Brito-Semedo,24 dez 2025 7:58

Editado porSara Almeida  em  24 dez 2025 7:58

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