Há silêncios que salvam e há silêncios que condenam. Uns nascem da prudência republicana, do cuidado com as palavras e do respeito pelas instituições; outros são cálculo frio, método antigo de sobrevivência política, ferrugem discreta que corrói a República por dentro. É deste segundo que importa falar quando um Presidente da República, confrontado com alguma balbúrdia institucional, escolhe a mudez estratégica. Não por desconhecimento, não por ingenuidade, mas por opção consciente. A pergunta impõe-se: que significado tem o silêncio de quem foi, até ontem, líder do partido hoje implicado na turbulência que sacode a maior Câmara Municipal do país? A resposta é desconfortável, mas necessária: trata-se de uma escolha política com consequências institucionais.
Quando o Presidente da Câmara da Praia administra a desordem como se fosse governo, confronta a justiça como se fosse adversária política e encena a vitimização como se o cumprimento da lei fosse um abuso inédito, o problema deixa de ser pessoal ou partidário. O que está em causa é o princípio republicano. E é precisamente nesse ponto que o silêncio presidencial deixa de ser neutro e passa a ser pedagógico: ensina que atacar a justiça compensa, desde que se grite alto, desde que se confunda ruído com coragem.
A Constituição da República de Cabo Verde não cochicha. Não é um texto medroso nem ambíguo. Fala alto, claro e sem rodeios, mesmo quando os seus intérpretes preferem sussurrar ou desaparecer do palco. O artigo 28.º (1), ao consagrar a igualdade de todos perante a lei, não permite dramatizações seletivas: a justiça não é novidade quando chega à Praia, nem é escândalo quando bate à porta do poder local. O artigo 226.º (2) reconhece a autonomia do poder local, mas fá-lo dentro do Estado de Direito, não fora dele; a autonomia não é soberania paralela, nem licença para a desordem institucional. E o artigo 128.º (3) coloca o Presidente da República como garante do regular funcionamento das instituições democráticas, garante e não espectador, árbitro e não cronista tardio dos acontecimentos. Quando o Presidente se cala perante ataques explícitos à justiça, não preserva a estabilidade: adianta a erosão.
Em Cabo Verde, o tempo transformou-se num álibi político refinado. Há uma arte velha de esperar que a poeira baixe para depois surgir com ar grave, discurso polido e memória curta. José Maria Neves meu tio queridíssimo, homem experiente, inteligente e plenamente consciente do peso simbólico do cargo que ocupa, parece apostar novamente nessa cronologia conveniente. Espera, mede, calcula, ajusta o tom ao momento em que falar já não custa nada. Mas, como lembra Hannah Arendt, o maior mal do mundo não é cometido por monstros, mas por homens que se recusam a pensar. E o silêncio, quando é pensado em excesso, deixa de ser prudência para se tornar conivência estética.
Enquanto isso, a balbúrdia cresce e organiza-se como espetáculo. Vivemos um tempo em que a confusão tem público, a gritaria tem seguidores e a desordem ganhou estatuto de discurso político legítimo. Surgem figuras que não trazem ideias, mas ruído; não constroem projetos, mas espetáculos. Caem de paraquedas na política, mudam de partido como quem muda de camisa e prosperam porque o caos dá audiências. Como escreveu Umberto Eco, quando a estupidez sobe ao palco, o pensamento é empurrado para a plateia. O problema é que, quando o pensamento se senta, a República tropeça, e tropeçar repetidas vezes é a forma mais discreta de cair, não que a queridíssima Adélia Prado esteja errado sobre a estética.
Há algo de intimamente disfuncional na maneira como este país se manifesta. Não é apenas uma questão de rua, de cartazes ou de vozes; é uma questão de critério moral. Marcha-se pouco quando estão em causa a justiça, a ética pública ou o Estado de Direito — essas entidades abstratas que não gritam, não choram, não se fazem de vítimas e, sobretudo, não rendem fotografias emocionadas.
As manifestações cívicas, quando acontecem, são discretas até à invisibilidade. Servem para a elegância democrática do instante, para o conforto da consciência e para a selfie bem enquadrada. São exercícios de participação sem risco, protestos que não perturbam ninguém, nem sequer quem protesta.
Em contrapartida, basta que um homem politicamente comprometido, denunciado pelo seu próprio vereador, colega de partido e figura do mesmo sistema, se apresente como mártir, para que a praça se transforme em santuário. O denunciante é crucificado, a dúvida é perseguida, a razão é acusada de traição. A rua enche-se não de ideias, mas de ruído. Inventam-se causas, fabricam-se crenças, distribuem-se certezas morais em megafones improvisados.
O mais curioso — e talvez o mais inquietante — é que grande parte dessa multidão professa uma fé piedosa. Acredita num Deus misericordioso, indulgente com os deslizes humanos, desde que o pecador seja humilde. Ora, na política, esse Deus muda de carácter: deixa de ser justo, deixa de ser ético, deixa de ser exigente. Passa a ser um Deus de comando, um Deus de estimação, sempre pronto a absolver o político preferido, desde que ninguém lhe toque no gato amado.
Rezadores fervorosos nas redes sociais, tornam-se inquisidores digitais quando alguém ousa separar fé de poder, devoção de governação, crença privada de responsabilidade pública. A oração corre em procissão virtual, enquanto o insulto se organiza com método e zelo.
Este país não sofre de falta de fé nem de excesso de política. Sofre de uma perigosa confusão entre ambas. Quando a devoção substitui o pensamento crítico e o barulho ocupa o lugar da ética, a democracia deixa de ser um projeto coletivo e passa a ser um espetáculo de lealdades cegas.
E convém dizê-lo sem metáforas piedosas: na política, esta confusão não é apenas ridícula. É estruturalmente fatal. É bom ter em mente que a fé que absolve políticos não é religião: é conveniência com joelhos.
O Presidente da República não foi eleito para falar apenas quando o silêncio lhe convém, nem para reagir quando o discurso já está pronto para consumo mediático. Foi eleito para interromper a degradação, mesmo quando isso incomoda os seus, mesmo quando custa capital político. Como lembrava Albert Camus, o silêncio é o consentimento quando a injustiça fala. E numa democracia jovem e karkitxada, mas longe de ser ingénua, o consentimento silencioso deixa marcas profundas e duradouras.
A República não espera, e a história também não. A justiça não é perfeita; é lenta, falível e humana, apesar de a nossa ser, muitas vezes, um absurdo. Ainda assim, é o instrumento mais sério que temos contra a arbitrariedade. Quando é atacada, exige defesa institucional imediata, clara e sem medo, se possível à chamada, sem cálculos excessivos nem discursos tardios. As câmaras municipais não pertencem aos partidos, a justiça não pertence ao governo e o silêncio presidencial não pertence à República. Pertence apenas à história, e a história, como sabemos, raramente é indulgente com quem esperou demasiado para falar.
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(1) Hoje é o artigo 24º da Constituição que consagra o princípio da igualdade;
(2) Hoje a matéria das autarquias locais é regulada nos artigos 230º a 239º da Constituição. Não existe uma disposição expressa que afirme de forma categórica que as autarquias locais são entidades territoriais autónomas, mas a conclusão retira-se sem esforço do próprio conceito de autarquias locais, como também das referências nos artigos 230º, 232º, 233º e 234º. Assim, o uso da expressão “nos termos dos artigos 230º e seguintes da Constituição” afigura-se mais apropriada, por ser a que mais se aproxima da realidade.
(3) Hoje a disposição é o 125º da Constituição, sob a epígrafe “definição”, no capítulo dedicado ao PR: “Nº 1. O Presidente da República é o garante da unidade da Nação e do Estado, da integridade do território, da independência nacional e vigia e garante o cumprimento da Constituição e dos tratados internacionais. Nº. 2. O Presidente da República representa interna e externamente a República de Cabo Verde e, por inerência das suas funções, é o Comandante Supremo das Forças Armadas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1256 de 24 de Dezembro de 2025.
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