A aprovação da Declaração Universal em 1948 constituiu a primeira etapa do processo da afirmação dos direitos humanos. A segunda só se completou em 1966, com a aprovação de dois pactos: um sobre direitos civis e políticos, e outro sobre direitos económicos, sociais e culturais. Todos os Estados que posteriormente se tornaram membros da ONU, como Cabo Verde, em 1975, automaticamente comprometeram-se a obedecer aos regulamentos.
A independência de Cabo Verde representou para os cidadãos a materialização de um direito fundamental, o de soberania. A Constituição da República de 1980, consagrava o arquipélago como uma república soberana, democrática, laica, unitária, anticolonialista e anti-imperialista (CRCV, 1980, Art. 1º). A Constituição defendia ainda, que Cabo Verde era um Estado de democracia nacional revolucionária, fundada na unidade nacional e na efectiva participação popular, orientando-se para a construção de uma sociedade liberta da exploração do homem pelo homem (CRCV, 1980, Art.º 3). Isto era no papel, na prática, o regime de partido único violou constantemente o direito de liberdade de participação política. Aliás, o Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV) era consagrado como a única força dirigente da sociedade civil e do Estado (CRCV, 1980, Art.º 4).
Com a abertura democrática e a vitória do Movimento para a Democracia (MpD), a 13 de Janeiro de 1991, com maioria qualificada, abre-se o caminho para a nova Constituição da República (de 1992), mais abrangente em relação aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e à concepção da dignidade da pessoa humana como valor absoluto e sobrepondo-se ao próprio Estado. A Constituição de 1992 passa a sustentar dois pilares fundamentais do Estado de Direito Democrático: primeiro, os direitos humanos e segundo, a soberania popular, indicando de forma aprofundada a relação intrínseca entre as instituições do Estado e os direitos humanos, apresentando um vasto conjunto de princípios como: o da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade e da autonomia individuais e da solidariedade.
Os três parágrafos anteriores resumem de forma fria as relações entre os Direitos Humanos e o arquipélago, mas há nomes e há realidades que se varrem para debaixo do tapete. Durante 15 anos, houve cabo-verdianos mortos, presos arbitrariamente, mortos e o país tem problemas em assumir esse lado mais sombrio da sua história. Entre os cidadãos que têm lutado contra este esquecimento está António Pedro Silva. “Essencialmente, tenho chamado a atenção para o que aconteceu em 77 em São Vicente”, diz ao Expresso das Ilhas, “porque deve prevalecer a verdade e as pessoas, os que fizeram os actos, os cúmplices e co-autores, devem ser responsabilizados. Não defendo a teoria que deve ser o Estado a assumir as consequências destes actos”.
São Vicente, Julho de 1977
No dia 4 de Julho de 1977, era detido em São Vicente um grupo de conhecidos mindelenses, acusados de serem contra-revolucionários e de estarem a preparar ataques terroristas, mas que entretanto se tinham limitado a distribuir panfletos. O regime de partido único reage com violência, torturando e espancando os presos. Pedro Pires, então Primeiro-Ministro, afirmava que “é preciso que as pessoas não confundam tolerância com fraqueza”.
Agnelo Alves é preso e passa os primeiros dias sem qualquer alimento nem água. A família não sabe o que lhe aconteceu. Sem poder tomar banho e com uma lata de azeite como retrete, só tem acesso aos primeiros cuidados de higiene no dia em que é levado para interrogatório (um banho de três minutos, sem sabão). No antigo quartel de João Ribeiro começa o questionário e as torturas com choques eléctricos, durante horas, até ser retirado em braços da cela. Depois de assinar uma confissão que não lera, passam-se semanas até que a família seja autorizada a levar-lhe comida. Lembra-se dos outros presos, Lulu Marques, metido numa cela isolado, a gritar durante três dias consecutivos, próximo da loucura. Toi de Forro, igualmente isolado, com um braço e costelas partidas, acabando por morrer porque ninguém o deixou ser visto por um médico.
Manuel Chantre é levado igualmente para João Ribeiro. É questionado sobre a “organização”, o nome do chefe e dos integrantes. Perante o silêncio, é espancado até quase ao desmaio. São-lhe mostrados os panfletos que circularam pelo Mindelo: “Homens do PAIGC regressem para o mato onde a barba é simples resguardo da pele do rosto e não o símbolo da divindade humana. O povo já não vos quer, o povo já não vos tolera mais”. Perante a ameaça de mais sevícias, Manuel Chantre confessa que tinha sido ele a estampar os panfletos e que não havia organização alguma. Isso não satisfaz as autoridades. Os interrogatórios continuam, sempre sem a presença de advogados de defesa ou de escrivães para anotarem as palavras dos presos, mas a máquina de choques eléctricos nunca faltava. Como disse anos mais tarde: “Eu fazia parte de um grupo anti-PAIGC, mas não se tratava de qualquer conjuração ou conspiração para a perpetração de qualquer crime contra a segurança interior ou exterior do Estado, nem de qualquer conspiração que tivesse tomado a forma de associação ilícita ou organização secreta com vista ao incitamento ou execução de qualquer crime”. Manuel Chantre fica preso na Ribeirinha até Janeiro de 1979.
Adelino Leite é preso e deixado incomunicável e sem alimento por dias. Segue depois para interrogatório onde leva choques eléctricos durante horas. A cena repete-se dias depois. Os interrogadores faziam as perguntas e davam as respostas, os interrogados tinham de responder “sim” a tudo. Se negassem, levavam um choque. Fica preso durante oito meses, sem culpa formada e sem julgamento. Quando é libertado, ameaçam-no com o regresso à cadeia se contasse o que lhe tinha acontecido.
Mário Leite é preso e passa os primeiros dias sem direito a água nem comida. Quando se queixa da sede, trazem-lhe água numa lata com fezes (o mesmo procedimento é descrito por outros prisioneiros). Fica preso durante 41 dias, “dias de sofrimento e de maus tratos, que eu não desejo nem ao pior dos inimigos”, como dirá mais tarde.
João da Cruz Lima é preso e fica incomunicável por 45 dias. É interrogado numa sala onde a máquina de choques eléctricos está presente, como um aviso (João da Cruz Lima nunca refere que foi torturado, provavelmente porque estava doente quando foi preso). Feitas as perguntas e dadas as respostas, o inquisidor escrevia-as à sua maneira. “Terminado o interrogatório, feito à maneira deles, sem a presença de um defensor jurídico, foi-me dado um documento para assinar”.
Augusto de Melo conhece as prisões logo a seguir ao 25 de Abril. Como se recusa a aderir a uma greve anunciada pelo PAIGC é preso, levado para o Tarrafal, em Santiago, e mais tarde para Caxias, em Portugal.
Libertado nove meses depois, regressa a Cabo Verde em Janeiro de 1976 e continua a ser vigiado pelo PAIGC. Em 1977 participa, de forma pouco activa, na distribuição de panfletos onde se mostravam contra a unidade Guiné/Cabo Verde (ironicamente, a história dar-lhes-ia razão três anos depois), se opunham à presença de russos e cubanos no arquipélago e aconselhavam o Partido Único a voltar para o mato. É preso e torturado com choques eléctricos durante horas, “nunca na minha vida imaginei sequer que houvesse um desespero igual feito por cabo-verdianos e para cabo-verdianos”. Quando adoece e pede um médico, as autoridades dizem-lhe que só havia médicos cubanos e russos, como tinham escrito nos panfletos que não os queriam, fica sem consulta. Augusto de Melo é libertado em Janeiro de 1979.
“Penso que essa data é mais relevante para o futuro do país que o 31 de Agosto”, sublinha António Pedro Silva, “porque definiu o destino deste país. Procurou-se cortar todas as veleidades e amordaçar de vez. Para mim, é a atitude que demarcou e ditou a ditadura neste país, porque se tentou silenciar todas as vozes críticas e todas as alternativas”.
Santo Antão, Agosto de 1981
Em Santo Antão, a repressão sente-se quatro anos mais tarde, no seguimento do anteprojecto da reforma agrária, apesar do seu início ser o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, na Guiné-Bissau. Os dirigentes cabo-verdianos encontram nessa ruptura uma fonte privilegiada de exaltação do patriotismo islenho e de louvação do peso específico da participação dos nacionalistas ilhéus na saga libertária da Guiné-Bissau, como escreve José Luís Hopffer C. Almada no ensaio: Das tragédias históricas do povo cabo-verdiano e da saga da sua constituição e da sua consolidação como nação crioula soberana. Nesse contexto, acelera-se o processo de procura de uma nova localização, exclusivamente cabo-verdiana, das fontes de legitimação do poder dos dirigentes do regime de partido único e assiste-se a uma aceleração do “processo revolucionário em curso”.
O objectivo programático de Reforma Agrária, várias vezes antes adiado, foi assim retomado para conseguir o apoio da população rural. Olívio Pires declara que “a Reforma Agrária é um acto eminentemente político” e continua,“vamos confirmar a total identificação do Partido e Governo com as massas e vamos também provar quem são os verdadeiros amigos do nosso povo, os defensores dos seus interesses mais profundos” .
O certo é que a reforma agrária não foi bem recebida em Santo Antão. Fosse por desconhecimento dos laços estreitos que uniam proprietários e agricultores, fosse pelo objectivo político, tentou impor-se uma ideia que não se coadunava com aquilo que os santantonenses tinham em comum: as relações com a terra. No fundo, o meeiro, como era chamado quem trabalhava a terra do proprietário, era quem mandava na terra.
Muitos trabalhadores rurais entregam as terras aos donos, dizendo que não queriam saber da história da reforma agrária. Sentiam que iam ser prejudicados e que podiam perder um compadre e um amigo. Estes sentimentos começaram a fervilhar e acabaram por desembocar no 31 de Agosto.
No dia anterior, 30, houve uma reunião do PAICV em Figueiral onde surge uma manifestação que gritava contra o partido. Essas pessoas foram presas. No dia 31, a intenção era fazer outra manifestação para pedir a libertação desses homens. O objectivo era ir até à Ribeira Grande, mas são barrados pelos militares em Boca de Figueiral. O povo não arredou o pé. Ficaram lá a gritar: “não à reforma agrária”, “libertação dos presos”. Até que os militares respondem. Como resumiu Epifânio Ferreira, anos depois, em 2000, num discurso proferido no local: “Nas nossas rochas que ladeiam este vale, soavam os estampidos e uma densa nuvem de fumo toldava os ares na zona de Boca de Figueiral. Balas perdidas cravaram-se nas paredes de algumas casas. O partido da força, luz e guia que como força trouxe-nos a prepotência, como luz a da metralha e como guia a PIDE CV, que nos atirou para o fundo do abismo, quis mostrar aos santantonenses que eram fortes em combates mesmo lutando contra homens que como armas traziam alguns cigarros nos seus bolsos”.
Nessa madrugada sucedem-se as portas arrombadas a meio da noite, homens semidespidos são arrastados para fora da cama, há espancamentos, coronhadas, pontapés, murros. Ataques praticados sem uma única palavra, sem uma única explicação. São levados para o Externato de Ribeira Grande, onde continuam a ser espancados. Se caiam no chão, devido às agressões, eram pisados pelos militares. Nessa noite sofrem maus-tratos durante duas horas: murros na cara, na boca, na cabeça, pontapés, coronhadas. Depois são transportados para o Porto Novo, metidos num navio e quando chegam a São Vicente são postos em celas com pavimento de cimento, os colchões eram areia de vulcão e o travesseiro uma pedra. As necessidades eram feitas dentro do cubículo, num canto. De noite os militares passavam junto às portas e disparavam rajadas para impedir que os presos dormissem. Seguiram-se os interrogatórios. Diários. Acompanhados por mais agressões e choques eléctricos. Os presos, “acusados de tentativa de alteração da Constituição por rebelião armada..” receberam penas de 6 meses a 10 anos de prisão de um tribunal militar constituído por juízes, promotor de Justiça e defensor oficioso, nomeados pelo Ministro da Defesa. Nesses dias, direitos fundamentais foram negados aos cabo-verdianos: o direito de expressão do pensamento, o direito de reunião e de manifestação, o direito à vida e à integridade física e moral, o direito à liberdade e segurança pessoal, o direito à inviolabilidade do domicílio, o direito às garantias penais de defesa (presunção de inocência, presença do advogado nos interrogatórios, não submissão a torturas para extracção de provas, etc.).
Apurar responsabilidades
“Penso que, infelizmente, esse período não tem sido tratado, nem sequer se pode falar com a devida atenção, simplesmente não tem sido tratado”, refere António Pedro Silva. “Há uma outra referência, que se faz pontualmente, mas falta analisar esse período. Só de pensar no absurdo de chegar à intenção de prender uma pessoa como Baltazar Lopes da Silva, é uma situação inqualificável. Foi o pior ataque a este país. Se falamos de humilhação em relação ao 31 de Agosto, o que se dirá do que se passou em 77?”, questiona.
“Diria que nem se tenta branquear, porque para o fazer era necessário falar dela, está a esconder-se a história, a fazer-se uma nova história. No meu entender, quer em relação a 77, quer em relação ao 31 de Agosto, não deve ser o Estado a responsabilizar-se pelas reparações, deve acima de tudo fazer-se com que as pessoas envolvidas sejam responsabilizadas. Os mandantes, os executantes, os co-autores e os cúmplices, devem assumir as consequências”, reforça António Pedro Silva. “Eu sei que falamos numa falsa paz social para não abordar o tema, mas quando se trata de benefícios facilmente se identificam as pessoas. Quantos têm o estatuto de Lutador de Liberdade da Pátria? Nessa altura, essas pessoas identificam-se. Já quando há má acção, em que há crimes, em que deverá haver responsabilidade, é o Estado. Se há pessoas concretas que têm os benefícios, também terá de haver pessoas concretas para assumir as responsabilidades”.
“Neste momento”, conclui António Pedro Silva, “as universidades têm um papel importante nisto, para reporem as verdades. Não falo de comissões parlamentares, mas nos estudiosos, nos cientistas sociais, eles é que devem fazer este trabalho. Claro que é difícil falar desse período, porque não querem assumir, preferem falar desse período como de heroicidade. Mas têm de falar do outro lado também. Vou convidar outros a reflectir de forma descomplexada, a chamar as coisas pelo nome e ver se mais alguém se associa e ajuda a repor a verdade. Somos um país que vive na base da mentira e dos misticismos”.
O regime de partido único (1975 – 1990) foi uma máquina totalitária que controlou, vigiou, prendeu e torturou cidadãos cabo-verdianos. Quantas vítimas houve, não se sabe ao certo e é difícil contabilizar formas de coacção que apesar de não serem visíveis estavam lá. Os números estão longe dos 400 mortos da ditadura brasileira, dos 3000 “desaparecidos” no Chile, das centenas de presos e seviciados do Salazarismo e do Franquismo, mas, há duas certezas, houve vítimas e estas nunca foram indemnizadas pelo que sofreram às mãos do regime.
[Principais fontes: A Tortura em Nome do Partido Único, de Onésimo Silveira; O Partido Único em Cabo Verde: Um Assalto à Esperança, de Humberto Cardoso; Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, de José Vicente Lopes].
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 874 de 29 de Agosto de 2018.