A opção pelo ensino privado parece ter como motivo a busca de uma maior qualidade no ensino. Por outro lado, a percepção de que a massificação do ensino público não tem sido acompanhada pela qualidade encontra eco junto a certos quadrantes da sociedade. Com os sucessivos governos a anunciarem reformas e investimentos vários na Educação, o que estará a falhar?
Quando na segunda-feira, dia 17 de Setembro, iniciaram em todo o país as aulas do ensino básico e secundário, Matilde (nome fictício) foi uma entre vários outros encarregados de educação a acompanhar o filho António no seu primeiro dia de aulas, numa nova escola. Ao contrário do que se possa pensar, António não estava a iniciar um novo ciclo escolar. Este ano frequenta o 3º Ano do ensino básico e a mudança de escola deve-se ao imprevisto encerramento do estabelecimento de ensino que até aí frequentava, o Colégio Semear.
Como a Semear, a nova escola de António, o Colégio Português (na cidade da Praia), é uma escola privada, mas de matriz internacional. Ao ver-se na situação de ter que matricular o filho numa nova escola Matilde não considerou outra opção que não o ensino privado. No seu caso, diz que a escolha se deve ao facto de ser consultora internacional e a possibilidade de ter que mudar de país ser real, pelo que sempre optou por escolas cujo programa se aproximasse dos standards internacionais.
“ Na verdade eu queria tê-lo matriculado desde logo numa escola Inglesa porém, não temos ainda essa opção em Cabo Verde”, diz. “ Mas acabou por ser uma com um programa que mais facilmente iremos encontrar lá fora, e assim ele não ter que se adaptar a um programa completamente diferente”.
O programa de ensino, o conteúdo curricular, tem assim um peso fundamental na escolha desta encarregada de educação. Ainda assim, Matilde defende que as escolas públicas de Cabo Verde diferem bastante entre sí, havendo aquelas melhor organizadas e que se esforçam por ir um pouco além do programa estabelecido pelo Ministério da Educação.
“Já houve professores de escolas públicas a pedirem-me emprestados os manuais do meu filho para terem outros conteúdos para as suas aulas. As escolas públicas não são todas iguais, algumas são boas”, opina.
Perspectiva diferente tem Aurora (nome fictício), mãe de Ana e Beatriz de 8 e 7 anos, respectivamente, e que desde o ano passado transferiu as filhas do já mencionado Colégio Semear para a Escola Portuguesa de Cabo Verde, escola pública portuguesa mas que pelo seu cariz internacional tem em Cabo Verde um status de escola privada.
Para Aurora, a fragilidade das escolas públicas cabo-verdianas deve-se sobretudo aos docentes. “A minha percepção é de que no ensino público a qualidade dos professores é um pouco fraca. Ficam-se pelo básico, são pouco curiosos e não se esforçam para evoluir”, diz a jovem mãe que aponta ainda o domínio da Língua Portuguesa como um défice do ensino público.
Mesmo com as filhas a frequentarem uma escola privada (cabo-verdiana) de qualidade reconhecida, Aurora optou por trocar as filhas de escola tendo sobretudo a segurança das mesmas como motivo. Mas também refere a qualidade do ensino e um espaço físico mais adequado como tendo pesado na sua decisão. E, para já, diz-se satisfeita com os avanços que diz ter percebido nas suas educandas.
“É mais desafiador para as crianças, as matérias são mais aprofundadas, o nível é mais avançado e há mais atenção por parte dos professores”, observa sobre a nova escola onde diz sentir um ambiente familiar e notar nas filhas uma maior motivação em frequentar as aulas.
Matilde, cujo filho também vem transferido do Colégio Semear, diz-se satisfeita com a atenção que o filho recebia da professora na outra escola. É um aspecto que destaca nas escolas privadas: a dedicação dos professores.
“O facto de as turmas serem pequenas permite aos professores dispensarem uma atenção maior a cada criança”, reconhece.
Há cerca de três anos, a professora e antiga ministra da Educação Ondina Ferreira e a primeira-dama e jurista Lígia Fonseca defenderam publicamente, numa tertúlia denominada “Educação: 40 anos de Caminho”, que a escola em Cabo Verde tem ainda falta de qualidade e que por isso era necessária uma aposta forte no Ensino Básico.
“A qualidade está a deixar alguma coisa, para não dizer muita coisa, a desejar. Há um descontentamento geral sobre um abaixamento de qualidade de exigências, não só na transmissão do conhecimento científico, como também na transmissão de valores que formam cidadãos”, disse na ocasião Ondina Ferreira que, mais recentemente, numa crónica retomou o tema pondo a tónica sobretudo no ensino da Língua Portuguesa e na carência de bons manuais.
Já Lígia Fonseca reconheceu que o percurso feito pelo país ao nível da educação é motivo de “orgulho”, mas defendeu a importância de se apostar na qualidade, inclusive dos espaços físicos que recomendou serem adaptados a novos métodos de ensino. “É preciso que as novas tecnologias cheguem às escolas”, alertou ainda.
As novas tecnologias são de facto uma das grandes apostas do Governo para os próximos anos. Integrando de há muito o projecto da reforma do sistema educativo, tem conhecido pouco desenvolvimento, mormente iniciativas como o Mundu Novu, que com o computador Gota d’Água prometia em 2011fazer chegar as TIC às escolas do país. Desta feita promovem-se os chamados WebLabs como a verdadeira chegada das Novas Tecnologias ao ensino público. Juntamente com a melhoria da rede escolar e a “sinalização” das crianças com necessidades educativas especiais (NEE) foi apresentado como a aposta para o ano lectivo 2018/2019. Na origem dessa aposta estarão compromissos como a Agenda Global 2030 com o Objectivo de Desenvolvimento Sustentável 4 em destaque.
Esta inconstância de estratégia e programa é referida pelo investigador Victor Semedo na análise que faz ao sistema educativo cabo-verdiano.
“O sistema educativo cabo-verdiano tem passado por vários momentos. O que hoje critico tem a ver com a instabilidade do programa, dos planos curriculares, e políticas para a Educação”, afirma. “Da forma como estamos o sistema desorienta-se. Tantos os pais, os professores, os alunos... Não podemos continuar com isso de num ano haver uma disciplina no 8ª ano e no seguinte já não há, etc. Temos que ter estabilidade para que o sistema educativo seja mais consistente”.
Refutando a ideia de que o comprometimento qualidade do ensino público tenha a ver, por sí só, com a massificação do acesso a esse ensino, Semedo entende que isso se deve especificamente aos “preparativos para essa massificação”. “Ou seja, quando se dá oportunidade a todos para estudarem significa que deveria haver professores para todos. E professores com qualidade. O país deparou-se com essa dificuldade no início da massificação e depois não conseguiu resolver, apesar da criação da escola de formação de professores”. E acrescenta outros requisitos, como os manuais, os equipamentos escolares, as infra-estruturas e os profissionais ligados à gestão da Educação, como factores a pesar na qualificação do ensino.
Os pais que fomos ouvindo para a realização desta reportagem não estão sós na sua preocupação com o nível do ensino do Português e da Matemática no sistema público. O investigador concorda que é evidente que “temos ainda dificuldades a nível da Língua Portuguesa e da Matemática. Tem a ver com o nível de preparação, desde o Básico até o Secundário. Isso poderá estar na origem do interesse dos pais pelas escolas estrangeiras a operar no nosso país. Certamente os pais querem o melhor para os seus educandos”, reflecte.
“Sabemos que o sistema público tem falhas. Mas, se o sistema educativo tem falhas e as instituições são fracas então devem reforça-las. Isto implica investimento público”, exorta para de seguida assumir a dúvida de que a economia nacional esteja em condições de suportar mais investimentos na Educação. “Temos uma economia débil e isto também não nos ajuda a ter um sistema educativo que todos nos gostaríamos de ter”, conclui.
Debruçando-se sobre a questão da opção de alguns encarregados de educação pelo sistema privado e internacional, Victor Semedo acredita que o mesmo vai reforçar nos próximos anos os desequilíbrios sociais. “Esses alunos têm um programa educativo muito mais consolidado. Têm uma carga horária diferente, onde inclusive beneficiam de estudo assistido. Isso faz diferença. Tudo aponta que os nossos alunos, saídos do ensino público, terão mais dificuldades de singrarem no mundo do trabalho”.
Privado ou Internacional?
No início da década de 90, a liberalização da economia trouxe a abertura do sistema de ensino aos privados. Surgiram no país algumas escolas particulares que, entretanto, não gozavam de muito prestígio social pelo facto de os alunos serem, quase na sua totalidade, provenientes do ensino público onde tinham perdido direito de estudar devido à acumulação de retenções.
O Colégio Semear, fundado na cidade da Praia uns anos depois da abertura permitida pela lei, nasceu com o propósito de contrariar essa má conotação das escolas privadas.
“Foi por compreender, como professora, a necessidade de haver uma oferta ao público dum ensino de outra qualidade – mesmo se reservado apenas a quem pudesse pagá-lo - e compreender a importância do ensino básico, como matriz de toda a qualidade do ensino a diversos escalões, que me decidi a abrir a escola”, escreveu a fundadora do Colégio, Nélida Araújo, quando em Julho passado anunciou aos pais e encarregados de educação o encerramento da escola depois de 20 anos de actividade.
A gestão da escola privada cabo-verdiana - onde estudavam filhos de ministros e de grandes empresários mas também quadros técnicos apostados em garantir aos filhos uma educação de qualidade - justificou a decisão com a difícil situação financeira em que se encontrava a instituição. Ciente da concorrência ditada pelas novas escolas privadas de matriz internacional a funcionarem na capital, os proprietários do Colégio Semear – que investia por sua conta na criação de condições de acesso ao ensino para crianças com Necessidades Educativas Especiais - manifestaram-se desagradados com um alegado favorecimento do Estado para com estas outras instituições.
“O Estado tem tido, e isso desde longa data, presumíveis compromissos políticos ou parcerias diversas, seja com Igrejas seja com Estados estrangeiros, pelos quais (sic) lhes concede vantagens que destroem toda a possibilidade de concorrência e nesse capítulo, parece não se colocarem já princípios como o da igualdade de tratamento”, apontou a proprietária do Colégio na referida nota, a que o Expresso das Ilhas teve acesso e foi autorizado a divulgar.
Entretanto, tanto a Escola Portuguesa de Cabo Verde (EPCV), como o Colégio Português e a Escola Portuguesa de Mindelo negam gozar de qualquer comparticipação ou subsídio do Estado cabo-verdiano. A EPCV refere apenas ter recebido da Câmara Municipal da Praia, em regime de cedência, o terreno (na zona de Cidadela, bairro do Palmarejo) onde foi edificada.
Já o Centro Educativo Miraflores, uma das escolas mais procuradas do país, por ser semi-pública goza de alguns benefícios: a gestão é privada, feita por uma congregação de freiras católicas, mas o corpo docente é financeiramente suportado pelo Governo. O programa de ensino desta escola contempla a Teoria das Inteligências Múltiplas e integra o ensino de Religião e Moral (que o Governo, em mais uma mexida nos currículos, programa introduzir nas escolas públicas em 2020); também, os professores são sujeitos a formação contínua e reciclagem de conhecimentos. Estes factores são apontados como fundamentais para a qualidade do ensino da escola que recentemente foi distinguida com o “Selo de Qualidade em Educação” na 1ª edição do concurso promovido pelo Ministério da Educação com o fim de estimular e divulgar as boas práticas desenvolvidas pelas instituições educativas públicas e privadas.
A competição, iniciada no ano passado, pretende contribuir para a promoção da qualidade em educação fazendo com que as escolas “se transformem em espaços que promovam não só a educação, mas também a saúde, a família, a inclusão, a leitura, o respeito pelo ambiente e a inovação, de entre outros aspectos”.
Diferente da prática em outros países, em que a classificação das escolas num ranking se faz com base nos resultados dos exames nacionais, este concurso, com abrangência nacional, tem por objectivo “instigar as instituições educativas, com o apoio da rede de amigos de educação, a elaborarem e implementarem projectos educativos que visem a promoção de actividades, ao longo do ano lectivo, em torno de uma temática que as conduzirá à obtenção de uma valorização no país no domínio da educação”, lê-se no site do concurso.
Apesar de haver quem defenda o investimento num sistema nacional de avaliação das escolas através de um ranking de classificações baseado nos resultados de exames nacionais, não se vislumbra que tal venha a acontecer nos próximos tempos.
“Devemos pensar nisso”, concorda Victor Semedo. “Mas é preciso ter outros elementos importantes para que ocorra esta classificação das escolas. Não há provas de aferição, também não temos sistema de exames nacionais. O Estado de Cabo Verde forma professores para leccionar as várias disciplinas mas, não forma pessoal de apoio à Educação: falo de planificadores de Educação, sociólogos da Educação, inspectores com formação básica para Educação... Não temos isso e qualquer professor pode assumir a gestão de uma escola e pode entrar como quadro da Inspecção. Isto não traz mais-valia ao sistema para podermos, um dia, ter um programa de avaliação como faz a OCDE através do sistema de avaliação PISA.”
Aqui refere-se ao Programme for International Student Assessment – Programa Internacional de Avaliação de Estudantes coordenado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e que se traduz numa iniciativa de avaliação comparada, aplicada de forma amostral a estudantes matriculados a partir do 7º ano do ensino fundamental na faixa etária dos 15 anos, idade em que se pressupõe o término da escolaridade básica obrigatória na maioria dos países.
O investigador admite estar ainda longe o dia em que tal avaliação será possível em Cabo Verde contudo, defende que entretanto é preciso ver onde estão as falhas e superá-las. “Senão, não vamos ter o ensino de qualidade que pretendemos e nem vamos conseguir colocar os nossos quadros internacionalmente. Não podemos ter gente com 12º ano e com formação superior para servir só internamente. Até porque hoje falamos de globalização e isso não pode ficar só pelo comércio. O mercado de trabalho também precisa ser global”, finaliza, lembrando que a Educação deve estar verdadeiramente alinhada com a estratégia de desenvolvimento do país e que esta precisa ser bem definida e estável, e não alterada a cada mudança de governo.
Escolas internacionais com filas de espera
Apenas no ensino básico, eram 4391 os alunos matriculados nas escolas privadas do país no ano lectivo 2016/2017. Dados do ano lectivo 2017/2018 estão ainda a ser compilados pelo Ministério da Educação mas, torna-se fácil prever que irão mostrar um aumento nos números de matrículas, a maior parte delas de crianças cabo-verdianas ou com dupla nacionalidade. O aumento da procura de vagas nas escolas privadas do país é um facto confirmado pelas três escolas das quais a nossa reportagem conseguiu obter informações.
A primeira das três escolas a iniciar actividades no país, o Colégio Português, escola privada de matriz internacional, iniciou a sua actividade na cidade da Praia em 2013-2014 com 30 alunos. Conta actualmente com 215 alunos, desde a creche ao 10.º Ano do ensino Secundário.
“Este ano letivo foram feitas novas matrículas para os vários níveis de ensino, num total de 45 novos alunos”, diz a actual directora da instituição, Sofia Gonçalves.
Já a Escola Portuguesa de Mindelo, também uma escola privada de matriz internacional, abriu portas em Setembro de 2016 com 28 alunos igualmente divididos por duas turmas, uma do pré-escolar e outra do 1º ano do ensino básico. “Hoje, no início do nosso terceiro ano letivo temos 131 alunos divididos por três turmas do pré-escolar, duas turmas do 1º ano, uma do 2º e uma do 3º ano do ensino básico, num total de sete turmas”, aponta Ana Cordeiro, a directora. A mesma refere 47 novas matrículas no ano lectivo 2018/19.
Por sua vez, a Escola Portuguesa de Cabo Verde, escola pública portuguesa em território cabo-verdiano, começou a funcionar em Novembro de 2016 com 22 alunos distribuídos por 2 turmas do pré-escolar e 1 turma composta do 1ºAno e 2º Ano.
Em Fevereiro de 2017 aconteceu a inauguração formal o que levou a uma grande procura. “Maior do que a nossa capacidade na altura”, lembra a directora da escola, Suzana Maximiano. Fechou esse ano lectivo com 56 alunos e no ano lectivo 2017/2018 chegou aos 210 alunos. Este ano receberam 190 novas matrículas, perfazendo assim o total de 400 alunos.
Nas três escolas registam-se filas de espera pelo que a ampliação das estruturas das mesmas já está em curso.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 879 de 03 de Outubro de 2018.