Tribunal de Justiça da CEDEAO. Mais que direitos humanos

PorJorge Montezinho,1 jul 2019 7:25

1

É um organismo que tem por objectivo forjar uma cultura forte de respeito pelos direitos humanos e promover a boa governação no espaço comunitário, mas é quase um desconhecido no panorama da CEDEAO.

Quase um ano depois de ser eleita juíza do Tribunal de Justiça da Comunidade da CEDEAO, a cabo-verdiana Januária Costa esteve no arquipélago, na segunda missão da principal instituição jurídica da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental ao país (a primeira tinha sido há dez anos). Apesar do amplo programa de sensibilização em Cabo Verde, que decorreu entre os dias 17 a 22 de Junho, a adesão dos cidadãos deixou muito a desejar.

“É a segunda vez que o tribunal se desloca à Praia para esta missão e como vê, apesar das várias comunicações e anúncios que rodeou esta iniciativa, ainda sentimos fraca adesão da nossa população a esta actividade”, confessava Januária Costa aos jornalistas, no penúltimo dia da estadia em Cabo Verde.

“Registamos com apresso o interesse das entidades oficiais, a presença de várias instituições que lidam com estas matérias, porque haverá a multiplicação. Mas há também subjacente a este fórum chamar a atenção da nossa juventude para se virar para a nossa sub-região e procurar nela oportunidades que surjam. Essa é uma preocupação de Cabo Verde, fazer com que os jovens sintam integrados nesta sub-região que lhes pode oferecer várias oportunidades”, continuava a antiga ministra da Justiça cabo-verdiana (entre 1999 e 2001).

O tribunal da CEDEAO tem como competência dirimir conflitos, não só entre Estados, mas também entre cidadãos e Estados, principalmente na área respeitante à violação dos direitos humanos. Cabo Verde nunca foi accionado por violação de direitos humanos no tribunal de justiça da CEDEAO. “Isso, para nós, é um bom indício, se compararmos aos vários processos que entram no tribunal da comunidade em que vários estados da sub-região são demandados pela violação dos direitos mais básicos que se possam imaginar”, disse posteriormente a juíza ao Expresso das Ilhas. Cabo Verde não é caso único, e os juízes que integram o tribunal da CEDEAO fazem uma leitura positiva deste aspecto, mas não quer dizer que não possa haver situações que sejam passiveis de serem levadas ao tribunal.

“E isso leva-nos a pensar, será que as pessoas não conhecem estes instrumentos postos à disposição pelos cidadãos pela comunidade? Ou será que efectivamente o sistema vive uma situação de perfeição tal que não há casos que possam ser trazidos ao tribunal. Preferimos sempre uma leitura positiva, mas é nessa preocupação que o tribunal entendeu ser oportuno voltar e lembrar a existência deste tribunal”, reforçou Januária Costa.

É exactamente para tornar mais conhecido a existência desta instituição que, no fundo, é a guardiã das liberdades fundamentais dentro da comunidade, que o tribunal tem inscrito no seu programa de actividades este projecto de sensibilização, que leva a cabo em vários Estados da sub-região. Este ano, antes de Cabo Verde, realizaram acção semelhante na Libéria e na Serra Leoa. Até porque, os casos levados ao organismo no último ano foram poucos, 63 em 2018. “É um número muito baixo”, admite Januária Costa.

O primeiro colectivo de juízes iniciou funções em 2003 e só em 2004 foi alargado o acesso directo dos cidadãos ao tribunal. A partir dessa altura, os números vêm crescendo, mas não numa proporção que talvez fosse a desejável, segundo os juízes da instituição. “Aceder ao tribunal tem várias dificuldades”, refere a juíza cabo-verdiana. “As petições devem ser apresentadas em Abuja, isso já constitui uma grande dificuldade para as pessoas se deslocarem e apresentarem as suas petições. Muito recentemente tem-se discutido este aspecto e tem-se admitido que as petições e os documentos sejam enviados por via electrónica. O tribunal está a trabalhar num projecto de instituir uma plataforma digital para facilitar os processos no tribunal. Há esta dificuldade de acesso, motivada pela distância, mas há também as dificuldades económicas que as partes enfrentam, muito embora a justiça seja gratuita no tribunal, mas as pessoas ainda assim terão de ter advogados. Isso já é um problema que não diz respeito ao tribunal, isso caberá aos Estados membros, criar mecanismos que garantam uma assistência judicial”.

No entanto, garante Januária Costa, apesar dos processos serem reduzidos não invalida o impacto grande que têm nos países da sub-região. Por isso mesmo, muitas vezes as relações entre Tribunal da CEDEAO e os Estados não são as mais pacíficas. “Os tribunais locais não acham piada aos tribunais internacionais, os governos, por vezes, também não acham piada aos tribunais internacionais”, disse Januária Costa ao Expresso das Ilhas. “Os Estados decidiram livremente criar este tribunal, cederam a sua soberania e instituíram este tribunal como instrumento para a integração económica, e conferiram-lhe um poder jurisdicional único. O tribunal da CEDEAO é o único com competência para interpretar e aplicar as leis comunitárias, o tribunal da CEDEAO julga conflitos existentes entre as instituições comunitárias e o seu staff, portanto funciona como tribunal de trabalho, o tribunal da comunidade funciona ainda como um tribunal administrativo na medida em que se permite ao cidadão impugnar decisões do Conselho de Ministros ou de Chefes de Estado, desde que essa decisão o afecte directamente. Dentro da sua competência contenciosa, o tribunal tem ainda competência para julgar casos de responsabilidade civil da comunidade para com terceiros ou de terceiros para com a comunidade, ou seja, a comunidade pode accionar qualquer terceiro, exigindo responsabilidades dentro do quadro contratual ou extracontratual. Portanto, o leque de competências é vasto”.

Muito mais do que um tribunal de direitos humanos

Apesar dessa competência ser a mais referida, até por que o grosso dos processos que entra são relativos à violação dos direitos humanos, o tribunal tem igualmente uma função consultiva, ou seja, as instituições comunitárias podem consultar o tribunal. Até hoje, essa competência só foi exercida por duas vezes. O problema, segundo a juíza, é a institucionalização destes tribunais numa base política. “Apesar de ter nascido da vontade dos Estados, o tribunal não tem nenhuma competência ao proferir a sua sentença, cabe ao Estado executar a decisão do tribunal. O tribunal já não tem controlo no acompanhamento”, resume Januária Costa.

Há sanções previstas no tratado da CEDEAO e nos seus protocolos relativos à falta de cumprimento das obrigações comunitária. Por exemplo, o cumprimento de uma sentença é uma obrigação comunitária e o incumprimento poderia desencadear alguma responsabilização do Estado no quadro das sanções previstas no tratado, mas até hoje nunca foi utilizado e o tribunal enfrenta alguma dificuldade na execução das suas decisões. Por isso mesmo, é desconhecida a percentagem de sentenças que são, de facto, cumpridas.

“Como o tribunal não tem capacidade de acompanhar a execução das decisões, não temos uma estatística credível, mas aquilo que é percepção é que há Estados que cumprem de forma livre a execução das decisões, mas há outros que nem tanto”, explica a juíza cabo-verdiana. Uma das obrigações imposta pelo tratado é que cada um dos Estados membros deveria designar uma entidade competente para fazer cumprir, no respectivo Estado membro, as decisões proferidas pelo tribunal da comunidade. Até esta altura só seis estados cumpriram e Cabo Verde é um dos que está em falta.

“Mas isso não quer dizer que só seis cumpram, há muitos Estados que apesar de não terem designado as suas entidades, cumprem as decisões do tribunal”, sublinha Januária Costa. “De onde tiramos a percepção da utilidade do tribunal? Das várias missões de sensibilização, onde vemos a importância que o cidadão atribui ao tribunal. Portanto, acreditamos que apesar do número das decisões não serem consideráveis, face à existência de 15 países, o efeito dessas decisões são relevantes”.

Os primeiros anos do tribunal serviram para que este fosse instalado e divulgado no espaço da comunidade (2001 a 2006). Depois houve os anos de consolidação das suas vitórias e de aumento do seu impacto na paisagem institucional da comunidade (2009 a 2011). Entretanto, pela tribuna dos juízes passaram casos relacionados com educação, direitos das mulheres e das crianças, escravatura, no fundo, algumas das principais preocupações actuais da sub-região, no particular, e do continente, no geral.

“Encontramos violação de direitos humanos mais básicos, desde a dignidade humana básica, como a tortura, escravatura, mas no nosso continente há um outro factor que impressiona: as práticas tradicionais. Muitas práticas tradicionais que vigoram na sub-região foram transformadas em leis e acabam por ser fonte de violação de direitos humanos, principalmente em menores e em mulheres, de forma muito grave. E para isso o tribunal tem tido um papel essencial, por que não só declara violação de direitos humanos, como impõe ao Estado obrigações de retirar da sua lei esses aspectos”, salienta Januária Costa.

Questões entre investidores e Estados também são aceites no tribunal da CEDEAO, mas só se houver violação de direitos humanos, como por exemplo casos que tenham a ver com o direito de propriedade ou a violação de direito equitativo, as únicas situações em que as sociedades comerciais têm procurado o organismo. Sobre os desafios que a instituição enfrenta, o reforço do poder dos juízes tem sido um dos mais referidos. Januária Costa considera que seria bem-vindo. “Este é o primeiro colectivo que foi reduzido para cinco juízes, o tribunal funcionou com sete desde o início, primeiro com um mandato de 7 anos, depois foi reduzido para 5 e depois para 4 anos. Agora, os juízes terminam mandato na mesma altura e começam na mesma altura, isto cria algum vazio porque perde-se a memória institucional e jurisprudencial, começa-se de novo. Não achamos que seja o mais adequado, porque ao iniciarmos todos juntos, levamos, no mínimo, 4 a 5 meses para estarmos em condições de trabalhar juntos e depois há outra particularidade, o tribunal é composto por juízes vindos de jurisdições diferentes, com sistemas jurídicos diferentes, por isso, leva tempo até que as coisas funcionem”, conclui a juíza que tomou posse do cargo no dia 31 de Julho do ano passado, durante a primeira cimeira conjunta dos Estados Membros da África Ocidental e da África Central.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 917 de 26 de Junho de 2019. 

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Jorge Montezinho,1 jul 2019 7:25

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  7 dez 2020 11:09

1

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.