A queixa, a que a Lusa teve hoje acesso, foi apresentada na semana passada pelo piloto Nuno Miguel à Organização Internacional de Aviação Civil (ICAO, na sigla inglesa), agência das Nações Unidas responsável por verificar a aplicação dos acordos internacionais em matéria de aviação civil por quase 200 países e respectivas autoridades nacionais.
Na queixa, o piloto português, condenado este mês pelo tribunal da ilha da Boa Vista a um ano de prisão, suspensa na execução, por omissão de auxílio depois de ter recusado realizar uma evacuação médica sem o obrigatório documento médico de transporte e uma maca para imobilizar o paciente, entende que a Agência de Aviação Civil (AAC) de Cabo Verde, face ao teor da sentença e ao processo judicial de que foi alvo, “não é mais a autoridade em relação à estrutura jurídica aeronáutica de operadores e tripulantes que operam no país”.
“Este facto, por si só, representa um enorme risco para a segurança das operações aéreas em Cabo Verde. Ninguém pode estar seguro num futuro próximo se esse problema não for solucionado, uma vez que o transporte de um passageiro em estado crítico de saúde, num voo comercial e sem seguir os procedimentos adequados, pode e colocará em risco a aeronave, o paciente e outros ocupantes, possivelmente resultando num acidente ou um incidente grave”, lê-se na queixa apresentada à ICAO.
O caso remonta a 14 de Maio de 2018, quando um homem foi baleado e esfaqueado no abdómen, na ilha da Boa Vista, durante a madrugada, junto a uma discoteca local, tendo a delegação de saúde solicitado a evacuação médica para um hospital da cidade da Praia, ilha de Santiago, mas pela ligação comercial de passageiros da companhia Binter.
Em tribunal, o piloto Nuno Miguel, de 43 anos, comandante da aeronave da Binter que naquele dia fazia a ligação entre a Praia e a Boa Vista (e regresso à capital), afirmou que o pedido de evacuação não respeitou os procedimentos formais e obrigatórios internacionalmente para o transporte de um paciente com necessidades de apoio médico num voo comercial. Alegou igualmente que o avião não tinha maca para o seu transporte, pelo que, nessas condições, estaria ainda em causa a segurança da tripulação e restantes passageiros.
Contudo, foi condenado, em 14 de Novembro, a uma pena de um ano de prisão, suspensa por dois anos, por omissão de auxílio, enquanto a companhia aérea espanhola, pelo mesmo crime, foi condenada a pagar uma indemnização de quatro milhões de escudos (36.200 euros) à vítima, que acabou por sobreviver. Julgado ao lado do piloto português – o tribunal também não aceitou separar os processos -, o autor da agressão foi condenado ao pagamento de uma multa de cerca de 150 euros.
O piloto e a Binter já anunciaram que vão recorrer desta sentença.
A Lusa solicitou uma posição à AAC, sobre os efeitos desta decisão do tribunal, mas sem sucesso até ao momento.
Na queixa à ICAO, o piloto português afirma que durante o julgamento a acusação defendeu que “quando uma vida humana está em risco, os papéis e os procedimentos normais não importam”.
Por outro lado, descreveu, “os médicos aeronáuticos que prestaram testemunho durante o julgamento disseram que o paciente nunca deveria ter sido submetido a uma evacuação aeromédica devido ao seu estado clínico, que nunca deveria estar sentado com o cinto de segurança apertando o ponto de entrada da bala [como seria transportado], que os intestinos provavelmente teriam rompido através do orifício no abdómen assim que a pressão caísse, causando um sério risco à segurança do voo”, pelo que só “estará vivo devido ao comportamento do comandante”.
Acrescenta que, durante o julgamento, o director executivo da AAC afirmou que não há evacuações aeromédicas em Cabo Verde devido à falta de recursos e que a Binter CV apenas pode realizar voos comerciais de passageiros.
Há uma semana, em entrevista à Lusa, o piloto português disse que apenas cumpriu regulamentos nacionais e internacionais, prometendo denunciar o caso em todas as instâncias.
“É um sentimento de injustiça flagrante. É inqualificável, na medida em que estou a ser prejudicado por ter cumprido escrupulosamente a lei do país e as leis internacionais”, afirmou.
Com duas décadas de experiência como piloto – militar e civil – em Portugal e no estrangeiro, garante que o transporte daquele paciente “só teria duas hipóteses” possíveis na altura. “Ou de maca ou sentado. Ora, o documento médico indica precisamente que o paciente é incapaz de viajar sentado, e por maioria de razão, com uma bala na zona onde o cinto aperta, o paciente está completamente imóvel, não poderia ir sentado. Não tendo maca a bordo, não tinha forma de transportar aquele paciente”, assume.
Acrescentou que foi também considerado um possível cenário de alteração a bordo com os restantes passageiros, face a um eventual agravamento do quadro clínico, tendo em conta as condições em que seria transportado e as perfurações que apresentava.
“Estamos a falar de voos comerciais e não voos específicos para uma evacuação aeromédica. Todos os outros passageiros e tripulantes daquele voo tinham o mesmo direito à vida”, sublinhou.
Na sentença, o tribunal considerou que a Binter “orientara os seus pilotos a recusarem transportar qualquer doente” sempre que “o MEDIF [documento médico internacional e obrigatório com informação sobre o estado do paciente] que lhes for entregue se encontrar mal preenchido”, como acabou por reconhecer a sentença.