No ano em que se assinalam os 72 anos do encalhe do navio John Scmeltzer, em Santo Antão, Pitt Reitmaier e António Pedro Delgado juntaram-se e, a quatro mãos, escreveram o romance histórico Tempo de John – Encalhe do navio SS John Schmeltzer em Cabo Verde.
Tempo do John ficciona a história da ‘fome de 47’ e o episódio envolvendo o navio a vapor, em Canjana.
Carregado de milho, o cargueiro, encalhado junto à costa, representou um sinal de esperança para uma população faminta, que acorreu ao local em grande número. Se o cereal salvou vidas, estima-se que centenas de pessoas tenham acabado por morrer pelo consumo de milho em más condições – recuperado do fundo do mar, ingerido sem acesso a água potável ou lenha para o cozinhar – ou do cansaço provocado pela longa caminhada até à praia Formosa.
Escrito a partir de mais de uma centena de testemunhos recolhidos ao longo de 30 anos pelo médico alemão Pitt Reitmaier, que exerceu em Santo Antão, o livro é um reencontro com um marco da história de Cabo Verde e da ‘ilha das montanhas’, em particular.
“Quando cheguei, lembro-me que nas histórias dos doentes o ‘tempo de John’ estava presente. Antes do ‘tempo de John’, depois do ‘tempo de John’. Era uma marco muito importante e também um grande marco na história individual e até cultural deste concelho [Porto Novo]”, recorda.
Um dos milhares de cargueiros da classe Liberty, o SS John E. Schmeltzer foi construído em Baltimore, nos Estados Unidos, durante a II Guerra Mundial, com o objectivo de garantir o transporte de tropas, armas e provisões. Na sua última viagem, no pós-guerra, e ainda propriedade das Forças Armadas norte-americanas, seguia carregado com quase dez mil toneladas de milho, proveniente da Argentina, rumo a Gotemburgo, na Suécia, onde seria descarregado. O carregamento seria distribuído como ajuda humanitária à população austríaca e alemã, numa Europa destruída pela guerra de 39-45.
“O pós-guerra é feito de guerra e quando há fomes é pior do que durante a guerra, porque a guerra tem um tipo de organização. No pós-guerra não há comida, não há transportes, não há comunicação, nada funciona. Até o dinheiro perde o seu valor. Achei importante dar à história do John a dimensão atlântica que merece”, explica Pitt Reitmaier.
Pitt nasceu em 1946, ano da grande fome que se seguiu ao final da II Grande Guerra, numa altura em que os pais viviam num abrigo de refugiados. Formou-se em medicina e ciências sociais. Nos anos 80 do século passado, trabalhou como Delegado de Saúde em Porto Novo. Percorreu a pé as montanhas da ilha, ao encontro de povoados distantes.
Foi em Santo Antão que conheceu o cabo-verdiano António Pedro Delgado, também médico, que viria a ser, anos mais tarde, Director Nacional de Saúde. “Ele disse-me: ‘tu não queres ler isto e ajudar-me a escrever?’ E eu disse: ‘porque não?’ Isto é o resultado da amizade que nós temos, mantida ao longo de todo esse tempo. Comecei a ler e a achar a história interessante. Começámos esse processo de discussão, sobre como é que faríamos e chegámos a ideia de que era bom escrever o livro em português, mas com algumas partes em crioulo”, comenta António Pedro.
Ao longo das páginas de Tempo de John é possível encontrar passagens traduzidas para o crioulo de Santo Antão, lado a lado com a versão em língua portuguesa. Uma tentativa de preservar a genuinidade dos relatos.
Recolher, organizar, seleccionar, escrever e rever. A empreitada de Pitt e António Pedro procurou passar a livro a história romanceada de uma época trágica que afectou gerações.
“Este é um período extremamente difícil. Já vamos no terceiro ano de seca mas as consequências não são tão gravosas. Se fosse naquela época, a população era dizimada. Acho que este livro serve também para ajudar a esconjurar a fome e as consequências da fome. A verdade é que este passado de fome e sofrimento marcou a população cabo-verdiana”, acredita António Pedro Delgado.
“Quatro dias depois do encalhe, do John Schmeltzer, a gente de Tabuga de Cima voltou à Praia Formosa. Padrin e Terezinha levavam um burro carregado de sacos e outro com um berkin velho que já perdia alguma água pelo caminho. Não eram só eles que para lá se dirigiam, mas era um povo inteiro em movimento! De todos os cantos da ilha surgiam mais e mais pessoas que se cruzavam com outras tantas, já de regresso, carregadas de sarrons e balaios a transbordar de milho. Na chã a leste da foz da ribeira da Praia Formosa, surgem as primeiras casas, a que chamam “castelinhos”. Tendo por ali passado no próprio dia do encalhe, Terezinha quis mostrar aos amigos que conhecia o lugar: “Aqui há movimento. Mais uns dias, Praia Formosa vai ter mais casas que Tabuga de Cima.” Tempo de John Pitt Reitmaier e António Pedro Delgado Editora Lucete Fortes 2019
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 939 de 27 de Novembro de 2019.