Em Cabo Verde “ainda existe o culto da rádio, o que é fenomenal”

PorSara Almeida,13 fev 2020 12:14

Num mundo mediático em constante mutação, a rádio tem sabido adaptar-se às mudanças e manter a sua principal característica: a proximidade. Em entrevista ao Expresso das ilhas, Nuno Andrade Ferreira, Director Executivo da Rádio Morabeza, traça o cenário deste meio e os seus desafios, no mundo e, particularmente, em Cabo Verde. No país, os principais desafios são de ordem financeira, “ponto”, e urge uma uma “regulação efectiva do mercado, numa perspectiva de acesso aos recursos”, aponta.

Já foi o medium mais popular - aliás, em África continua a ser – mas tem vindo a perder destaque para outros media. Qual é o papel da rádio hoje em dia numa sociedade?

Em alguns mercados, a rádio está, de facto, a reconquistar ouvintes. Em Portugal, por exemplo, o número de ouvintes do meio rádio aumentou 5% nos últimos dez anos.

A rádio é um meio com uma grande capacidade de adaptação. Soube resistir e adaptar-se à televisão e ao vídeo. Soube adaptar-se à Internet. Claro que, nesta fase, divide públicos com muitos outros meios e suportes, mas as suas características tornam-na muito maleável, tão maleável que tem sido capaz de entrar nesses outros suportes e ir lá buscar novos públicos.

Veja-se um exemplo. No final dos anos 90, início dos anos 2000, a tendência do mercado eram as rádios-playlist. Horas de música, muita automação, tudo perfeito, takes gravados, sem nenhuma margem para o erro, para experimentar. Isso coincide com o surgimento dos leitores de mp3 e com a possibilidade de as pessoas ouvirem a sua música, na sua ordem preferida. Ora, que interesse tinha uma rádio-playlist se eu podia ter a minha própria playlist dentro do bolso? Felizmente, percebeu-se isto e inverteu-se a tendência, devolvendo a dimensão humana à rádio, a sua espontaneidade, enquanto elementos fundamentais daquela que é a principal característica deste meio: a proximidade.

O papel da rádio varia de país para país. Em países altamente urbanizados, nas grandes cidades, a rádio é uma companhia no trânsito. Para países com grande dispersão geográfica, a rádio é um meio se de chegar a comunidades isoladas e uma forma de assegurar a representação mediática das periferias. Em todo o lado, a rádio, nas muitas formas de consumo que hoje existem, continua a ser a única forma de aceder a informação e entretenimento sem necessidade de dedicação exclusiva, ao contrário da televisão, das plataformas de streaming de vídeo, de um jornal online, etc.

Em Cabo Verde temos a vantagem adicional de a rádio ter uma base de credibilidade e reconhecimento muito grandes. Ainda existe, o que é fenomenal, o culto da rádio.

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Como é que a rádio se pode e deve adaptar aos novos tempos?

Percebendo, desde logo, que os hábitos de consumo de conteúdos mediáticos se alteraram e vão continuar a alterar. Que o on demand está a conquistar terreno, ou seja, eu, consumidor, quero escolher o que consumo e quando consumo. A transição para o digital impacta a rádio em três planos. Primeiro, no fim progressivo do FM e na transição para a rádio digital, da qual se fala há mais de duas décadas, mas que está agora, finalmente, a avançar, mesmo que a velocidades muitos díspares. Depois, na urgência de se reforçar a aposta na distribuição de conteúdos de forma não linear. Ou seja, mantendo a programação e a grelha de programas, com conteúdos seleccionados para determinadas horas, para que o ouvinte ligue o rádio, ou abra o streaming live e acompanhe a emissão, mas, ao mesmo tempo, disponibilizando os meus conteúdos em plataformas dedicadas - em várias, idealmente - para que eles possam ser recuperados a qualquer hora, eventualmente até em formatos alargados ou, como já acontece em vários países, com produção dedicada. Finalmente, no surgimento da chamada visual radio, que alia imagem ao som, e que não percebemos muito bem até onde irá.

Dir-me-ás: mas qualquer um pode fazer um podcast ou um live streaming. Sim, e há fantásticos exemplos de conteúdos que são produzidos por gente que não tem qualquer ligação à rádio. O que, neste caso, a rádio tem de mais-valia é toda a sua estrutura técnica, os seus recursos humanos qualificados e a experiência de décadas dedicadas à produção de conteúdos.

O que temos aqui é um gigantesco desafio. Já cometemos, nós, indústria, muitos erros - e ainda bem - já confundimos as coisas, já se tentou fazer televisão na rádio ou fazer da rádio televisão (a visual radio não é exactamente televisão-rádio). Mas com o tempo acho que chegaremos lá. Reparemos só no potencial de crescimento de públicos que isto representa.

Quais os principais desafios da Rádio, em particular em Cabo Verde?

Financeiros, ponto. No caso das rádios privadas, o problema é financeiro, apenas. No caso da rádio pública será outro, muito relacionado com uma estrutura demasiado pesada, que atrasa a inovação.

No nosso caso, não é um problema de saber fazer, nem um problema de querer fazer. É um problema de ter a capacidade financeira para investir: em recursos humanos, contratando mais gente e pagando melhor, permitindo aumentar e melhorar a produção de conteúdos de qualidade - e sublinho qualidade; em meios técnicos que possibilitem o aumento da área de cobertura e a migração mais séria e rápida para o digital, para o streaming, para os conteúdos on demand, de olhos postos na produção e na distribuição.

Com poderiam/deveriam ser contornados?

A primeira coisa, através de uma regulação efectiva do mercado, numa perspectiva de acesso aos recursos. Criando condições para que todos os operadores possam competir de forma justa pelos recursos que, no seu conjunto, o mercado disponibiliza.

Tu não podes continuar a ter um operador público hegemónico, financiado por múltiplas fontes, e depois operadores privados aos pulinhos, a disputar o micro mercado publicitário nacional, em concorrência com o próprio operador público. Não funciona e não é bom para ninguém, nem para o próprio operador do Estado. Tens que ter um operador público forte, moderno, financiado por todos nós, que seja uma referencial de qualidade, rigor e exigência, mas que não seque tudo à volta. É possível fazer isso com regulação mais eficaz, por exemplo, no acesso ao mercado publicitário comercial, mas também no mercado publicitário institucional que, no caso de Cabo Verde, tem um peso muito significativo.

Também podes fazer isso por via fiscal, como se chegou a equacionar, ou através da criação de concursos para financiamento dirigidos a projectos de conteúdos de serviço público, produzidos por operadores privados.

Todos sairiam beneficiados de um mercado mais claro e justo. Os operadores privados, que operariam em melhores condições, o panorama mediático, mais plural e polifónico, e o próprio operador público, necessariamente mais ágil e moderno, porque sujeito a concorrência efectiva.

Como tem sido a “evolução” da Morabeza ao longo destes últimos anos?

Lenta, mas sólida e, acima de tudo, séria e credível. A nossa seriedade, a credibilidade dos nossos profissionais, são os nossos principais activos. Em 2012, quando a Média Comunicações assumiu a gestão da rádio, fomos claros na ambição de tornar a Morabeza uma alternativa credível no contexto mediático nacional. Somos uma rádio generalista, mas com uma forte componente informativa, ancorada num jornalismo de qualidade e que, na impossibilidade de competir, por manifesta ausência de meios, na urgência dos breaking news, se esforça por, sem perder o vínculo com a actualidade, dar contexto, apresentar outras perspectivas, aprofundar temas. Desse ponto de vista, temos sido bem sucedidos.

Com outro tipo de condições, com condições de mercado mais favoráveis, poderíamos estar noutro patamar. Ter cobertura melhorada nas ilhas onde estamos e ter levado a nossa emissão às ilhas que ainda não recebem o nosso sinal. Contratar mais profissionais.

O modelo de rádio que fazemos não é barato, exige recursos humanos qualificados, mas não quisemos ser 'só mais um'. Quisemos e queremos materializar a ideia de rádio sobre a qual tenho estado aqui a falar, porque é essa que, para nós, faz sentido. 

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Autoria:Sara Almeida,13 fev 2020 12:14

Editado porSara Almeida  em  10 mai 2020 23:21

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