Confinamento. A técnica para conter a propagação da pandemia de COVID-19 tem sido a mesma em praticamente todos os países do mundo. Os estados decretam estado de emergência e obrigam os cidadãos a ficar em casa, controlando movimentos, encerrando estabelecimentos comerciais. Mas poderão estas medidas ser replicadas em todas as geografias?
O sociólogo Elísio Macamo acha que não. Professor da Universidade de Basileia, na Suíça, o moçambicano considera que o confinamento não faz sentido na maioria dos países africanos.
“Num país como a África do Sul, com um estado repressivo, talvez seja possível. No Ruanda, também. Numa sociedade que teoricamente tem um Estado funcional, como em Cabo Verde, também pode ser possível, mas na maior parte dos países africanos isso é impraticável”, avalia.
“O confinamento é uma resposta europeia, a maneira como os europeus interpretaram e domesticaram o vírus”, acrescenta.
Essa resposta europeia à crise sanitária procurou salvaguardar a capacidade de resposta dos sistemas de saúde. Ora, para Elísio Macamo a questão não se coloca em contexto africano.
“Para os europeus faz muito sentido introduzir medidas de confinamento, justamente porque têm como objectivo proteger a infra-estrutura sanitária. Que infra-estrutura sanitária queremos proteger em Moçambique, no Senegal ou no Malawi?”, questiona.
“Em Moçambique, mesmo desacelerando, se o pior acontece, porque isso também não é certo, há alguma infra-estrutura para poder responder à demanda?”, insiste.
“Não faz sentido”, resume o professor de Sociologia e Estudos Africanos, numa posição que está alinhada com a de outros académicos africanos, como é o caso do sul-africano Alex Broadbent, já entrevistado pelo Expresso das Ilhas (edição 960).
A pressão internacional e da classe média, a par da falta de originalidade do poder político, são as causas apontadas por Macamo para a insistência em medidas difíceis de concretizar.
“Há uma pressão muito grande a nível internacional, dos organismos internacionais, como por exemplo da Organização Mundial de Saúde (OMS). Mas há também uma grande pressão, sobretudo, das classes médias dos nossos países, que vivem ao ritmo da vida na Europa e que têm o mesmo nível de preocupação que as pessoas na Europa. São essas pessoas que, através de discussões e contribuições nas redes sociais, na esfera pública, exercem pressão sobre os governos para que estes tomem as medidas que toda a gente está a tomar. Isso também é cómodo para os governos. Não é preciso reflectir muito sobre o que se está a fazer. É pura e simplesmente uma questão de fazer aquilo que todos estão a fazer”, refere.
“A segunda coisa é que os nossos governos, de um modo geral, não se distinguem por terem altos níveis de imaginação, nunca ou raramente reagem a este tipo de desafios com pensamento original”, observa.
De diferentes latitudes chegam relatos sobre situações de incumprimento das normas de recolhimento domiciliar. A estes juntam-se notícias de comunidades que viram agravadas as suas fragilidades económicas e sociais.
De acordo com o Programa Alimentar Mundial (PAM), a pandemia de COVID-19 pode lançar 130 milhões de africanos para uma situação de fome, duplicando o número de pessoas com necessidade profunda de assistência alimentar.
“Se juntarmos estes 130 milhões aos 135 milhões existentes, serão 265 milhões de pessoas com fome aguda em 2020, o que é um número muito grande”, declarou recentemente o economista-chefe do PAM, Arif Husain.
Elísio Macamo gostava que a actual emergência sanitária fosse aproveitada como pretexto para os países do continente repensarem fórmulas de governação, perante um contexto de crise permanente.
“Agem como se a condição normal, nos nossos países, fosse a normalidade e não houvesse crise. Mas nós vivemos sempre em crise. Esta crise não altera essencialmente nada em relação ao que é o nosso normal em África. Isso exige muita imaginação”, comenta.
Em África estavam até ontem confirmados perto de 35 mil casos de infecção pelo novo coronavírus. Cerca de 1.500 pessoas perderam a vida. A África do Sul é o país mais afectado, com 4.800 casos registados.
*com Fretson Rocha
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 961 de 29 de Abril de 2020.