Venda de sexo, um “assunto” arriscado e “silencioso”

PorSheilla Ribeiro,19 dez 2020 8:27

Comemorou-se quinta-feira, 17 de Dezembro, o Dia Internacional Contra a Violência sobre Trabalhadores do Sexo. Neste âmbito, o Expresso das Ilhas saiu à rua à procura de testemunhos na primeira pessoa sobre o fenómeno na Cidade da Praia.

Segundo os relatos, são agredidas verbalmente, fisicamente e até sexualmente. Entretanto, não denunciam porque, além de não serem legalmente reconhecidas, têm de preservar a “outra vida”, os maridos, filhos, pais e pessoas próximas que desconhecem que laboram no “assunto” (como chamam a prostituição). A falta de uma associação torna-as ainda mais invisíveis e vulneráveis a situações do tipo.

Tânia (nome fictício), uma mãe de 27 anos, e Deise (também nome fictício), igualmente mãe, de 29 anos, são duas profissionais do sexo entrevistadas pelo Expresso das Ilhas. Referem-se à prostituição como “assunto” ou “expediente”. Aliás, durante as entrevistas, em momento algum, citam a palavra prostituição.

“Estou no ramo há cerca de 6 anos. Não tenho um horário fixo”, declara Tânia, revelando que entrou nesta vida por iniciativa própria. Segundo conta, nasceu numa família numerosa e sem muitas condições. Com o tempo, “na flor da idade”, começou a envolver-se com homens mais velhos que ajudavam com “algumas coisas”.

“Mas não era suficiente”, alega Tânia, completando que, por essa razão, passou a envolver-se com vários homens que lhe pagam por sexo. Quando deu por si, relata, já era de “expediente”, ou de “assunto”, como também diz.

Deise, por sua vez, diz que entrou no “assunto” ainda na adolescência, sem saber precisar ao certo com que idade é que começou. Apenas diz que “ainda era muito nova”.

“Entrei no assunto, porque nasci numa família numerosa, a minha mãe era ausente e, na adolescência, sentia falta de muitas coisas, até para a higiene pessoal, inclusive cheguei a ponto de passar fome. Surgiam homens, que ao ver a minha juventude, a minha beleza e constatar que tinha necessidades, diziam para que fosse ter com eles que me dariam o que quisesse, e foi assim que eu comecei”, descreve.

História e razões

Tânia faz saber que nem chegou a concluir o 12º ano de escolaridade. Tudo porque, conforme alega, a necessidade de trabalhar em busca de meios para a sobrevivência falou mais alto. O seu primeiro emprego foi num bar onde chegou a receber muitas ofertas, seja de dinheiro ou bens materiais, em troca de sexo.

No começo, diz a jovem que recusava o que lhe ofereciam, afinal, ressalta, tinha um salário. Entretanto, perdeu o emprego e passou a ver o relacionamento com homens mais velhos (os chamados tios) como solução para o sustento de sua casa. Nessa fase sempre se relacionou com um homem de cada vez, por um determinado período de tempo, até que a relação terminasse.

“A ajuda dos tios com quem saía não era suficiente, tive de procurar outros meios. Esse dinheiro não dava para grandes coisas, mas ajudava a não faltar para renda ou de comer. Eu tentei algumas vezes abandonar esta vida, mas não há emprego”, enfatiza.

Mesmo com os “expedientes”, Tânia arranjou um companheiro com quem tem uma filha e vivem juntos. O namorado, assim como a mãe e os irmãos, não sabem da sua profissão. “Sou muito discreta e o meu “expediente” não faço com qualquer um, nem em qualquer lugar”, revela.

“Antes fazia mais do que um por dia. Agora, as pessoas têm de fazer reserva porque eu quero preservar a minha vida, a minha imagem, sobretudo porque tenho a minha família, filha e marido”.

Para Tânia, entrar nesta vida pode acontecer por acaso. “Basta alguém mostrar-se interessado e a outra parte relatar os seus problemas. Se depois de colocar os problemas a pessoa continuar a mostrar interesse e quiser pagar por sexo, alinha-se”, explica.

Quanto ao preço, Tânia frisa que este depende da pessoa que quer pagar. Normalmente cobra 5 mil escudos, todavia, se for uma pessoa que não reside na Praia, pode custar mais. Se for um emigrante que se encontra de férias em Cabo Verde, “o preço duplica”, aponta.

“A situação está difícil para todos, então há cada vez mais jovens nesta vida. São, na grande maioria, meninas com idades compreendidas entre os 20 e 25 anos, outras com um ou mais filhos. Não há emprego e os pais dos filhos não têm como ajudar. Amor, por si só não mantém ninguém, não mata a fome, então deita-se com um homem por 4 ou 5 mil escudos”, defende Tânia, elevando a voz ao dizer que “o amor não mata a fome”.

Usando um tom irónico, a jovem assevera que, assim como ela, há muitas jovens da capital que “são de expediente” que têm clientes fixos. No entanto, continua, “tudo é feito em segredo”.

“No meu bar oiço muitas conversas de grupos de amigas, algumas com marido e filhos, mas que comentam entre si que se aparecer alguém que lhes ofereça 3 mil escudos por sexo, iriam aceitar logo à primeira. Afinal, “kau sta mau”. Se aparecer quem queira fazer em grupo, melhor ainda, cobram mais. É o que eu digo, há muitas que assim como eu têm uma vida dupla”, graceja.

Já Deise, por sua vez, parou de tratar do “assunto” há cerca de 11 meses, porque estava grávida de uma bebé, hoje com apenas dois meses de vida. Durante a época em que esteve activa, conta que trabalhava sempre durante a noite e, de vez em quando, durante o dia.

“Quando trabalhava à noite tinha uma ou duas saídas, mas não aceitava todos os expedientes, porque nem sempre havia tempo para todos. O preço de cada expediente dependia muito, havia quem oferecesse 5 mil escudos, 6 mil escudos, mas também havia aqueles que ofereciam menos”, explica.

A jovem relata que há épocas em que resolve parar e “sair da vida”. Comumente, isto acontece quando aparece algum trabalho, ou quando se apaixona. O segundo caso, aconteceu duas vezes, primeiro pelo pai da sua filha mais velha, hoje com 9 anos, e o segundo com o pai da sua bebé.

“Eu sei quem são os pais das minhas filhas porque sempre me previno para não contrair nenhum tipo de doença. Excepto quando me envolvi com eles”, frisa Deise, referindo que, da primeira vez que se apaixonou, esteve dois anos sem trabalhar com sexo. Isso, até que o pai da sua filha mais velha resolveu emigrar. Sozinha, com uma filha para criar voltou a tratar dos “assuntos”.

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“Desta vez, quando parei não consegui arranjar emprego, por isso, passei a vender pastéis, bolas de Berlim, rissóis e outros petiscos. Eu e o pai da minha bebé não estamos bem esses dias, mas ainda não penso voltar para esta vida”, fala, num tom de voz triste.

“Mas não digo que não vou voltar para esta vida. Hoje saio para vender e não sinto falta de nada, mas, se eu sentir falta, se surgir alguma necessidade, eu sei que eu vou voltar aos meus expedientes”.

Violência, vergonha e descriminação

Ao Expresso das Ilhas, Tânia conta que nunca sofreu nenhum tipo de agressão, porém diz que conhece alguém que foi agredida e não denunciou o caso.

“Não sei dizer se é normal, pessoas como eu sofrem muita agressão, mas eu falo por mim. Nos meus “expedientes” nunca houve insultos, nem agressões. Os meus clientes não me agridem nem fisicamente, nem verbalmente porque a maioria das pessoas com quem trato são pessoas amigas”.

A amizade, esclarece, foi surgindo ao longo do tempo, porque tratam-se de clientes “fixos e de longa data”.

Já Deise teve outra sorte. Como exemplo, um caso em que, numa noite alguém tentou estuprá-la. “Nunca denunciei o ocorrido, afinal a minha família não sabia o que andava a fazer”, transmite com certa tristeza na fala.

Esta jovem diz ainda que conhece casos de amigas, do mesmo ramo, que sofreram na pele agressões físicas, verbais e sexuais. Assim como Deise, nenhuma teve coragem de denunciar, ou pedir ajuda.

“Tenho uma amiga que foi agredida várias vezes. Por ser usuária de estupefacientes, os homens abusavam muito dela, obrigavam-na a fazer coisas que ela não queria. E ela nunca denunciou, primeiro porque sentia vergonha e depois porque acreditava que não ia ser levada a sério por ser viciada”, conta em tom de indignação, lembrando que a colega levava bofetadas e puxões de cabelo por parte de homens que achavam ter esse direito porque estavam a pagar por aquele corpo.

Estão organizadas?

Questionadas sobre a existência de uma associação formada por profissionais do sexo, ambas declaram que o medo de serem discriminadas pela sociedade as impede de tomar uma iniciativa nesse sentido.

“Aqui não dá para fazer esse tipo de coisa. Os nossos expedientes não são feitos ‘cara podre’ (às claras), porque as pessoas falam muito, conversam e nós queremos sempre nos preservar”, sublinha Tânia.

Deise, por seu turno, diz que mulheres que, assim como ela, trabalham no “expediente”, vivem “oprimidas pela sociedade”, que é “muito preconceituosa”.

“Por isso escondemos essa profissão, há poucas que dão a cara e não escondem o que fazem, mas quase nunca isto acontece. Escondemo-nos porque as pessoas discriminam e muito. Há muito preconceito e descriminação e pode recair sobre os nossos filhos. O nosso medo é que sofram com isso”, lamenta.

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1.775 profissionais do sexo contemplados com testes VIH

A Associação Cabo-verdiana para a Protecção da Família (VerdeFam) apoiou 1.775 profissionais do sexo com testes de VIH e consultas médicas durante o ano de 2020. A informação foi revelada pelo assistente de programa e coordenador de programas de VIH, Evandro Sá Nogueira.

“Temos um leque de serviços que garantimos aos profissionais do sexo, serviços de saúde sexual reprodutiva, dentro de um programa a eles destinado. Um programa que é financiado pelo Fundo Global e o programa FEVE, financiado pela cooperação luxemburguesa, através da ONG Enda Sante Senegal”, informa.

Os serviços são relativos à saúde sexual e reprodutiva e englobam testes de despistagem a nível do HIV, de infecções sexualmente transmissíveis, disponibilização de medicamentos para combater infecções, disponibilização de análises e exames complementares, além do apoio psicológico, avança.

“Em 2020 tínhamos como meta, no programa Fundo Global, atingir 1.775 profissionais de sexo com os testes de VIH e alcançamos a meta. Este número é referente à Praia, São Vicente, São Nicolau, Boa Vista e Sal. Além dos testes de HIV foram contempladas com consultas médicas”, conta.

Trabalho na prevenção da VBG contra os profissionais do sexo

O coordenador da área Violência Baseada no Género (VBG) do Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Género (ICIEG), Adalberto Varela, afirma que a instituição “não tem medidas específicas para profissionais do sexo”, mas elabora políticas públicas para a igualdade de direitos e de oportunidades, sem promover a descriminação e nem uma atenção especial para esse grupo.

“Trabalhamos para que não haja nenhum tipo de violência contra ninguém. E sabemos que a nossa legislação não reconhece o grupo de profissionais do sexo. Então, como podemos trabalhar para proteger um grupo que mesmo a lei não permite? É muito mais difícil. Assim, a questão é trabalhar na prevenção, da mesma forma que fazemos a prevenção para todos os grupos”, aponta.

O responsável da área VBG do ICIEG refere ainda que nunca nenhum profissional do sexo procurou a instituição relatando directamente casos de violência.

“É preciso haver denúncias para que possamos trabalhar de uma outra forma e trabalhar a prevenção, tentar sensibilizar a sociedade para que a luta contra a violência seja uma luta transversal. Ou seja, a todas as classes, a todos os grupos sociais. Claro, esse é um grupo muito mais específico e, normalmente, a violência acontece. Neste caso, num lugar com menos margem para agirmos”, específica.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 994 de 16 de Dezembro de 2020.

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Autoria:Sheilla Ribeiro,19 dez 2020 8:27

Editado pormaria Fortes  em  22 set 2021 23:21

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