IDSR-III: O retrato das novas mulheres cabo-verdianas: Mais “empoderadas” e menos tolerantes à violência, mas...

PorSara Almeida,15 mar 2020 10:12

Os dados do Inquérito Demográfico e de Saúde Reprodutiva (IDSR-III) mostram que houve ganhos na luta pela igualdade entre homens e mulheres cabo-verdianos e no combate à violência baseada no género (VBG). Contudo, persistem desafios e a violência conjugal, por exemplo, não sofreu grandes alterações. Apesar do muito trabalho que há ainda a fazer, os dados dão “alento” e “alguma satisfação” a quem trabalha com as questões de género.

Comecemos em 2005. Nesse ano, realizou-se em Cabo Verde o segundo Inquérito Demográfico e de Saúde Reprodutiva (IDSR-II) que trouxe a público dados preocupantes. Foi um marco que teve o efeito de acordar o país para uma problemática ainda pouco debatida no espaço público e tida como natural no privado.

Cerca de uma em cada cinco mulheres cabo-verdianas tinha sido vítima de violência física e, mais alarmante ainda, 17,3% das mulheres tolerava ou aceitava o recurso à violência física sobre as mulheres, por parte do companheiro, percentagem que aumentava no mundo rural, para 26%.

Desde então muito foi feito. Debates, campanhas, criação de ONGs vocacionadas para a igualdade de género, etc, etc, com destaque para a implementação da Lei n.º 84/VII/11, mais conhecida por Lei sobre a Violência Baseada no Género (VBG), que trouxe a partir de 2011 um conjunto de eixos de acção para atacar a problemática a montante e a jusante.

Treze anos volvidos, em 2018, foi então feito o IDSR-III, instrumento que vem permitir analisar a evolução da VBG, mas também várias outras questões relacionadas com a igualdade e equidade de género.

O “IDSR- III, o que nos traz de bom é que nos permite saber onde estamos: o que estamos a fazer bem, os ganhos, mas também que desafios temos pela frente”, resume Rosana Almeida, presidente do Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Género (ICIEG).

Quanto aos dados, em concreto, que o inquérito revela, estes trazem “algum alento aos passos que temos estado a dar na promoção da igualdade de género, alguma satisfação pelo resultado”, diz.

Os dados mostram o impacto do trabalho desenvolvido, que se deve, destacadamente, à aposta na comunicação, ao trabalho com os líderes comunitários e com os alunos do secundário, bem como à articulação que existe com entidades como a Polícia Nacional, o Ministério Público e as ONGs, considera.

Entretanto, persistem desafios que também já foram identificados e abrangidos no 5.º Plano Nacional de Igualdade de Género, que entra agora em vigor, e que serão combatidos no âmbito do mesmo.

Para o IDSR-III, o INE entrevistou 2.355 mulheres dos 15 aos 49 anos seleccionadas aleatoriamente.

De 17% para 6%

O IDSR-III tem sido revelado por partes. Já no início do ano passado foram divulgados dados sobre, por exemplo, a evolução do HIV-Sida em Cabo Verde. No final do ano, o Instituto Nacional de Estatísticas (INE) e o ICIEG divulgaram dados relativos à violência contra a mulher. Outros dados sobre género continuam a ser divulgados.

Começando por uma boa notícia e provavelmente um dos dados mais relevantes do IDSR-III: a significativa diminuição do número de mulheres que considera justificável que em determinadas situações, o homem exerça violência física sobre a companheira.

Em 2005, 17% das mulheres inquiridas declarava estar de acordo de que há razões que justificavam que o marido agredisse a esposa. No meio rural essa percentagem atingia os 26%, 1 em cada 4 mulheres, portanto. Na ilha do Fogo, 37% (a pior ilha).

Em 2018, a percentagem baixou, a nível nacional, para 6%, ou seja, menos de uma em cada 10 mulheres. A percentagem é ainda menor nos homens (5%). Fogo: 11,4% (à frente da Brava).

“É um avanço tremendo”, avalia Rosana Almeida. “Mais do que os números [da VBG] terem baixado, para mim, o mais importante é termos constatado que a VBG não está a ser aceite pelos mais jovens em Cabo Verde. Isto é um sinal do país que teremos se a curto prazo se continuarmos esta luta”.

A ilha do Fogo, onde se verifica a maior evolução, foi aliás das ilhas que mais melhorou em vários indicadores relativos à violência contra as mulheres.

Em causa esteve o diagnóstico desta ilha como uma das “mais problemática” o que levou a uma maior aposta na mesma.

“Foi a ilha onde mais se investiu porque exigia muito mais trabalho e estamos muito satisfeitos”, refere, considerando que apesar dos visíveis ganhos, “ainda há um trabalho intenso que tem de ser feito na ilha do Vulcão e que tem “muito a ver com o seu lado cultural”.

Do Fogo para todo o país, no geral o que este dado mostra é pois que a sociedade cabo-verdiana cada vez mais consciente de que a violência não é um comportamento que deva ser normalizado e nunca é justificável. É um progresso.

De 2/10 para 1/10

Outro dado que dá “alento”, é a queda, para cerca de metade, da percentagem de mulheres dos 15 aos 49 anos vítimas de violência física.

Assim, os dados indicam que 10,9% das mulheres cabo-verdianas sofreram violência física. A mesma percentagem é aferida para “desde os 15 anos”, como para as vítimas “nos últimos 12 meses”. Isso significa uma diminuição de 10,6%, quando comparado com 2005 (21,5%), no primeiro caso, e de 9,4% (2005 era de 20,3%) para agressões no “último ano”.

A maior descida, mais uma vez ocorreu na ilha do Fogo (– 24%). São Vicente é a única ilha que contraria os resultados nacionais, tendo observado um ligeiro aumento de 0,2% entre 2005 e 2018.

Esmiuçando os dados por faixa etária, verifica-se a maior descida, 14,4%, é junto às mulheres dos 15-19 anos, mas houve também uma melhoria significativa nas mulheres com idades até aos 39 anos. Contudo, “no grupo de mulheres de 40 a 49 a proporção de mulheres que sofreram violência física desde os 15 anos e nos últimos 12 meses mantem-se, não mostrando melhorias relativamente a 2015”.

Assim, a diminuição, não se verifica junto às mulheres de faixa etária mais elevada, “a camada mais difícil de trabalhar”, como aponta Rosana Almeida. Moldadas em uma sociedade onde estes temas ainda mal começavam a ser falados, isso acaba por verificar-se na Violência sofrida.

O inquérito apenas contempla mulheres entre os 15 e os 49 anos. Mas a problemática deverá afectar igualmente as mais velhas. Nesse sentido, vocacionada para essas mulheres mais velhas, está em curso uma campanha do ICIEG com o slogan “VBG não tem de ser até que a morte nos separe”.

Entretanto, o foco principal tem sido, reconhece a presidente do ICIEG, a nova geração.

“Eles é que vão mudar o país”, diz referindo-se especialmente às crianças e jovens.

Um dado, contudo, confunde a descida geral da VBG e a observação geral sobre o fenómeno que é a que mais se leva em conta. A nível do que os IDSR chamam de violência conjugal, ou seja, aquela que ocorre especificamente entre casais, poucas melhorias se denotam.

O IDSR-III aponta que 15,2% das mulheres casadas sofreram alguma violência física em qualquer momento. O IDSR-III refere que cerca de 15,7% das mulheres foi confrontada com actos de violência física. Em 2005, 19,6% dizia ter sofrido violência física, emocional, ou sexual, em 2018, a percentagem era de 20,4%.

A maior subida verifica-se na violência emocional. Segundo os dados de 2018, 15,4% das mulheres sofreram de alguma violência emocional em qualquer momento, contra 14% em 2005.

Uma possibilidade é que as mulheres tenham mais consciência de que estão a ser alvo de violência emocional.

Mas também, analisa-se, pode dar-se o facto de uma menor “vergonha” de se assumir como vítima.

Aliás, uma das apostas do ICIEG é promover a denúncia. “A ideia que estamos a passar é que o silêncio cumplice não vai contribuir para diminuir a violência. Daí as campanhas do ICIEG, neste momento, na TV e nos autocarros públicos para promover as denúncias”, refere Rosana Almeida.

Seja com for, salienta, a nível geral, a violência física sobre as mulheres e aceitação dessa violência pelas mesmas diminuiu. E isso é motivo de “alguma satisfação” para o país.

Mais empoderadas

O IDSR vai muito além dos estudos de VBG. E também no restante, apesar do muito trabalho que ainda se advinha para uma efectiva igualdade e equidade de género, o ICIEG mostra-se satisfeito com os resultados.

“Quando vamos ver o empoderamento da mulher ficamos muito satisfeitas, a mulher já tem conhecimento dos seus direitos, já reclama, já participa, já exige que os homens participem...”

Um dado interessante do inquérito tem a ver com o Controlo da utilização do dinheiro ganho pelas mulheres. Segundo o IDSR-III, “mais de metade (51%) das mulheres em união decidem sozinhas da utilização do dinheiro que ganham. Em apenas 7% dos casos, a decisão e tomada pelos maridos/companheiros” (embora em Santiago Norte, essa percentagem suba para 19%) . Em 42% dos casos é decidido por mulher e marido em conjunto.

Em 2005, lia-se no relatório que “entre as que vivem em união, 79% tem todo o domínio sobre o que ganha, contudo 20% declara que é o cônjuge que decide sobre o que fazer com o que ela ganha, e somente 2% o faz em conjunto com o cônjuge”.

Ou seja, não só o número de mulheres que vêem o seu salário ser gerido pelos maridos diminuiu, como o casal se coloca em paridade na economia doméstica.

“Ficamos muito satisfeitos quando vemos que hoje a maior parte das famílias, a mulher participa tal qual o homem nas decisões da vida em relação ao dinheiro”, mas também em áreas como a vida sexual e outras.

“Sentimos que de facto há um empoderamento por parte das famílias, eu não digo da mulher. Há uma abertura dos homens, um sinal muito positivo, há um respeito pelo lar, pelo casal, homem-mulher, todos tem o mesmo poder”, aponta a presidente do ICIEG.

A melhoria também se verifica em relação às tomadas de decisão que envolvem vertentes como a saúde (embora aqui se verifique um fosso a desfavor dos homens) ou a visita de familiares.

Os dados de 2018 mostram contudo um desafio para a igualdade de género: “relativamente ao rendimento da mulher em relação ao rendimento do marido, a maioria (66,7%) das mulheres tem um rendimento inferior, 19,4% superior e 8,5% tem um rendimento similar ao dos maridos”. Ou seja, as mulheres continuam, por norma, a ganhar menos que os homens.

Na vida sexual, segundo o IDSR-III, 90,6% considera ter o poder de dizer não ao marido se não quiser ter relações sexuais e de 94,7%., de poder exigir o uso de preservativo. Ou seja, “os dados indicam que a maioria das mulheres em Cabo Verde consegue negociar as relações sexuais com o marido ou exigir o uso do preservativo.

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Trabalhar as masculinidades

No geral, os dados são pois, relativamente positivos. Mas mostram também o longo caminho em várias vertentes, principalmente naquelas que envolvem as mentalidades masculinas e mais especificamente no que toca à sua companheira.

Por exemplo, mais de 69,8% dos homens continuam a não aceitar que as esposas convivam com as amigas. A este dado juntam-se: 52,6% dos esposos tem ciúmes e fica chateado quando falam com outros homens e 46,4 quer saber onde ela estáva.

Para Rosana Almeida este é um dado que demonstra que “há um trabalho enorme a ser feito com as novas masculinidades”.

Trabalhar as masculinidades é, de acordo com a presidente do ICIEG, uma das duas maiores prioridades do Instituto.

“É urgente. A abordagem da igualdade de género em Cabo Verde implica obrigatoriamente acções urgentes em prol de novos masculinidades. temos de continuar a falar de igualdade de género e trazer homens para esta causa. Se nos focarmos nesta estratégia teremos ainda melhores resultados no próximo IDSR”, analisa.

Entretanto, as comparações devem ser feitas com cautela, pois em um inquérito a percepção que o inquirido tem do certo ou errado, a sua matriz de género, define também a sua resposta. Mas em 2005, o que se lê no IDSR-II é que “globalmente os dados indicam que o controlo do marido/companheiro se manifesta por ciúmes (no caso de 44% das mulheres), acusações de infidelidade (17%), limitações para frequentar amigas (18%) e família (8%), insistência para saber a qualquer momento onde a mulher está (43%) e a falta de confiança em relação a dinheiro (39%). Observa-se que em 28% dos casos, as mulheres declararam que o marido/companheiro tinha exercido sobre elas pelo menos três tipos de controlo.”

Além disso, os dados continuam a mostrar que as pessoas que cometem violência física são maioritariamente marido/parceiro atual e ex-marido/ ex-parceiro, 47,8% e 48,8%), de acordo com o IDSR-III.

Filhos e gravidezes

Além do trabalho no âmbito das novas masculinidades, também a gravidez na adolescência é outra preocupação para o ICIEG.

Preocupa-nos a taxa de dados sobre fecundidade”, salienta Rosana Almeida.

O que dizem então esses dados. No geral, tem-se verificado uma diminuição é progressiva ao longo do tempo do número de filhos por mulher. Actualmente, cada mulher tem em média 2,5 filhos. Em 1981, eram 7,1 filhos. Em 2005, o índice sintético de fecundidade passou a ser de 2,9 filhos.

Nos dados sobre a Fecundidade, o que preocupa, porém, é a “fecundidade precoce”, ou seja as gravidezes na adolescência Cerca de 2 em cada 10 jovens (16%) já começaram suas vidas reprodutivas (12% já são mães e 4% estão grávidas do primeiro filho).

Denota-se uma ligeira diminuição face a 2005, quando “aproximadamente 19 % das jovens de 15-19 anos, já começara a vida fecunda: 15 % já tinha pelo menos um filho, e cerca de 4 % está grávida pela primeira vez.” Os valores estão, na verdade próximos do IDSR-1998 quando a proporção de adolescentes que já começara a vida reprodutiva era de 15 %.

Mas são dados preocupantes. Assim, outra prioridade do ICIEG é a Gravidez na Adolescência. Nesse sentido, muito em breve o ICIEG irá lançar um estudo sobre a problemática, que já inclui a política pública adoptada há um par de anos, que garante a permanência das alunas grávidas nas escolas.

“Mas precisamos saber quais são as escolas” com maiores índices de alunas grávidas e também “se as escolas estão preparadas para as receber”.

A par com o estudo será apresentada a “estratégia de combate a esse fenómeno”

“Estamos neste momento, em parceria com a Verdefam a trabalhar acções e uma campanha bastante forte sobre a gravidez na adolescência. Queremos mostrar aos jovens, particularmente às meninas, que ‘Tud na se hora’. Essa é que é a campanha” que vai falar dos “riscos e consequências de uma gravidez para a vida da adolescente”, avança.

Assim, tudo somado, a aposta nas novas formas de masculinidades e na prevenção da gravidez na adolescência são os desafios que mais se destacam no caminho para o IDSR-IV (ainda sem data de arranque). Isto, sem descurar os outros factores todos como a VBG, uma luta que ainda persiste, a igualdade e equidade laboral, económica, política, etc.. equidade no espaço público e privado. A Lei da Paridade aprovada no ano passado, foi mais um passo. Outros continuarão a ser dados...

Religião e Violência

As Igrejas são, como salienta a Presidente do ICIEG, um parceiro “fundamental” na luta contra a VBG e promoção da Igualdade e Equidade de Género. Este IDSR-III, para  o qual o instituto colaborou activamente com o INE no que respeita ao género,  trouxe, então, também a dimensão das religião aos indicadores analisados.  “Temos de saber o posicionamento das igrejas em relação a estas temáticas, é importante saber como é que cada igreja está a encarar a problemática”, resume Rosana Almeida.  E o que o IDSR-III mostra então é que é no seio da Igreja Universal do Reino de Deus que ocorre mais violência contra as mulheres. Vejamos os dados.  Segundo este inquérito de 2018, “Um total de 5,8% de mulheres já sofreram violência sexual em qualquer momento e 3,4% nos últimos 12 meses. A percentagens de mulheres pertencentes a Igreja Universal do Reino de Deus (30,4%),  Testemunha de Jeová (17,3%), Outras Religiões (13,4) e Racionalismo Cristão (12%) que sofreram violência sexual  em qualquer momento é maior que as que pertencem a Igreja Adventista (1,7%), Católica (5,4%), Nazareno (0,5%)”.  Entre as mulheres que sofrem violência física desde os 15 anos, destaca-se as que pertencem à IURD (31,9%), ‘Outras religiões’ surge com 22,7%. Surgem depois as mulheres que seguem o Racionalismo Cristão (20,3%),  Adventistas (17,7%), Nazareno (14,4%). A fiéis da Igreja Católica (9,9%) e as mulheres que não seguem nenhuma  religião (9,3%) são as que sofrem menos violência física.  “Os dados sugerem a existência diferenças significativas relativamente a violência física com base na religião  praticada pelas mulheres”, analisa o ICIEG. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 954 de 11 de Março de 2020. 

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Autoria:Sara Almeida,15 mar 2020 10:12

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  12 dez 2020 23:21

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