2020 foi um ano estranho. Uma distopia vivida à escala planetária, que mudou a vida de toda a gente. Ou quase toda. Para Germano Almeida, o ano, de facto, faz lembrar os romances de ficção científica que lia sobretudo quando era jovem. Não pelo impacto que teve no seu dia-a-dia, mas pelo que que está a ver.
“Tenho de dizer, honestamente, às vezes até com alguma vergonha: quando as pessoas falam de 2020, esse ano estranho, eu digo, ‘para mim não foi’”, confessa.
Do seu terraço e da sua casa, que é onde o escritor gosta de estar, e de onde só o ir ao mar com os amigos o arreda com prazer, viu então o ano passar.
Um ano, que apesar de ter começado, como manda o calendário, em Janeiro, será essencialmente recordado a partir de Março com a chegada da covid-19 a Cabo Verde. Germano Almeida foi, aliás, dos primeiros casos suspeitos de infecção pelo novo coronavírus no país, após ter estado com o escritor Luís Sepúlveda (que viria a falecer da doença), no festival literário Correntes d’Escritas, realizado semanas antes na Póvoa de Varzim.
Um abraço dado ao escritor chileno, seu velho conhecido, e uma gripe certamente apanhada num hotel em Lisboa, lançaram a suspeita. As autoridades de saúde, pediram-lhe que desse entrada no hospital e Germano foi. Mas não teve qualquer momento de pânico. Só pensava “como eu posso estar doente se não sinto nada”, recorda.
O caso, como já se sabe, não passou de um falso alarme, com os testes a confirmarem que o escritor boavistense, também perfilhado sanvicentino, não estava infectado.
E com a leveza de quem já passou “muitos anos de seca e muitos anos de chuva”, Germano desdramatiza a pandemia.
“É evidente que a gente tem de tomar cuidado, mas o terror com que as pessoas estão a viver, acho excessivo”, analisa. “Não pode querer privar-se de tudo, de estar com amigos, estar com pessoas, a troco de estar vivo, porque assim não vale a pena”.
Ademais, no seu caso, conta, já leva anos à morte. Safou-se de morrer no mar quando tinha cerca de 7 anos de idade, e já leva muitos mais anos vida sobre os anos vividos pelo pai e tios.
“Eu costumo dizer que já ganhei à morte 15 anos, porque já vou em 75”.
Mas como é melhor morrer mais tarde do que mais cedo, se a vacina chegar, “se me chamarem, eu rapidamente vou”, avisa.
Falava há pouco que a covid não alterou muito a sua rotina. Mas, como se tem dito, parou o mundo. Parou o mundo e a Terra continuou a girar. Isto mostra o quão desnecessários somos?
Acho que não será bem assim. Somos mais um elemento na Terra, não podemos é tomar a Terra como nossa. Mas ao longo dos tempos tem havido imensas pandemias, que têm dizimado o homem. Aliás, com uma certa brincadeira, eu costumo dizer que de vez em quando essas pandemias têm de vir para reduzir a quantidade de gente, porque vai chegar a um ponto em a Terra não vai conseguir sustentar toda essa gente. É natural que essas coisas aconteçam, para reduzir o número de pessoas, porque a verdade é que nós não vamos desaparecer. Por exemplo, sem irmos mais longe, a gripe espanhola de 1918 terá matado 50 milhões de pessoas e, neste momento, continuamos a abarrotar de gente. A SIDA, as epidemias modernas, praticamente não estão a matar gente, digamos, passa-se por elas.
Houve outras pandemias, mas o que é que esta, em particular, nos ensina?
Acho que não vai ensinar nada, absolutamente nada, que as outras também não nos ensinaram. Vai-se conseguir a vacina, vai-se conseguir controlar, do mesmo modo que a sida neste momento já não é uma doença que mata, é controlável. Vamos viver também com esta, como se tivéssemos quase uma gripe. As pessoas têm esperança de que o Homem vai melhorar. Não melhora coisa nenhuma.
O ser humano pode não mudar, mas a ciência mudou e muito. Que esperança tem na ciência e tecnologia?
A tecnologia e a ciência têm melhorado consideravelmente a vida da humanidade. A nossa esperança de vida neste momento é de cerca de 80 anos, no tempo do meu pai era 50. É evidente que as nossas condições de vida agora são completamente diferentes, a alimentação, o bem-estar, as famílias, o próprio tipo de trabalho que temos, tudo isto ajudou imenso a modificarmos a nossa forma de estar no mundo. Por exemplo, medicamentos que há. Eu tenho um problema de coração, e tenho a certeza que se não fossem os medicamentos que existem já tinha morrido. Portanto, é evidente que temos de acreditar e desejar que a ciência vá melhorando cada vez mais.
Temos a ciência e temos os negacionistas, tivemos um boom de fake news e ao mesmo tempo um aumento da procura de informação fidedigna, nomeadamente da imprensa tradicional. Como vê esta dualidade?
Acho que em si não tem particular importância. Vai depender muito de pessoa para pessoa, afecta-nos individualmente. Por exemplo, os movimentos negacionistas, as pessoas que negam a existência da covid-19, pode ser que estejam no seu direito, a partir do momento em que, ao exercerem esse direito, não prejudiquem os outros. Isto é, mesmo que não acredite na covid, sair à rua sem máscara, não. Se sair sem máscara, está a prejudicar os direitos dos outros. A partir daí,esses movimentos não têm grande importância. As fake news, a gente diz que a verdade vem sempre ao de cima e é verdade que é assim. As pessoas podem afirmar as coisas mais absurdas mas há sempre um momento em que o que foi verdade aparece. Eu acho que são questões muito mais individuais do que de ordem colectiva.
O Germano escreveu que “mentir é um direito”, mas há mentiras, ou desinformações, que prejudicam o colectivo. Por exemplo, quando Trump, disse que desinfectantes podiam matar o coronavírus houve pessoas que foram parar ao hospital.
Eu, Germano Almeida, posso dizer os disparates que eu quiser, Trump, [então] presidente da América, não tem o direito de dizer disparates. Infelizmente diz. Trump é um homem que está no lugar onde não merecia estar.
Entretanto, já tivemos as eleições americanas e Trump não foi reeleito. Estávamos a assistir a uma ascensão do populismo, que em boa parte se alimenta dos medos, mas Trump perdeu, Bolsonaro tem vindo a perder apoiantes... Tem havido um impacto do medo, mas agora contra o populismo?
Não creio. O problema é que Trump e Bolsonaro negaram os efeitos da pandemia, mas as pessoas viram. É uma coisa concreta, as pessoas morrem, as pessoas veem os seus parentes a morrer, e ele diz que isto não é nada, é uma gripe. Sabemos que não morremos de gripe desta maneira. Então começa a perder crédito, e é o que aconteceu com Trump e com o Bolsonaro. Sinceramente digo: ‘ainda bem’. Um efeito positivo da pandemia, podemos dizer, foi ter provocado a perda das eleições para o Trump.
Então, está a ser positivo contra o populismo…
O populismo vive de quê? Vive de inventar histórias e o Trump era bom nisto. Mas isto não o ajudou junto do seu povo, porque o povo viu que estava a ficar prejudicado. Tivemos presidentes americanos que ganharam as eleições por serem populistas, aliás são aqueles homens cujas pisadas o Trump segue, mas não tiveram uma covid-19.
Falando agora de Cabo Verde....
No que concerne a Cabo Verde, acho que essa pandemia, de certa forma, pode trazer lições positivas.
Nomeadamente?
Eu sempre defendi que Cabo Verde não pode ser um país de economia liberal. O Estado cabo-verdiano tem de ser um Estado protector da sua gente, Estado-Providência, porque o país é pobre. A pandemia mostrou isto. Baseamos uma economia na questão do turismo, o turismo desapareceu, o Estado tem de arranjar meios de prover a subsistência das pessoas sob pena de voltarmos a uma outra fome.
Sabíamos há muito que era preciso diversificar a economia, mas uma coisa é identificar o problema, outra é solucioná-lo. Como ter outra economia, com vários sectores a produzir?
A verdade é que há muitos anos, já antes da independência, que nós estamos à volta com isto. Cabo Verde baseou a sua economia sempre em factores que não dominava, a começar pelo tráfico de escravos da Cidade Velha, a passar pelo porto de São Vicente, a passar para o Sal, com os aviões, e agora com o Turismo. São, todas as quatro, questões sobre as quais não temos domínio. Não podemos obrigar as pessoas a vir fazer turismo em Cabo Verde. É preciso aproveitar os bons momentos para diversificar a economia. Se me perguntar como, eu não sei dizer. Há muito tempo devíamos ter estudado, mas tem de haver gente capaz de estudar isto. São Vicente, por exemplo, desde a questão do tráfego de carvão praticamente… não aconteceu mais nada, não se conseguiu desenvolver qualquer tipo de indústria aqui e já se tentou muita coisa, calçado, pesca, conservas...
Vamos ter agora a zona económica especial marítima…
Agora… no tempo do PAICV tinha outro nome, depois mudou. Temos estado só a mudar nomes. Há um livrinho de um amigo meu escrito há muito tempo sobre São Vicente, em que ele defendia o Porto Grande transformado num porto franco. Nunca se fez nada.
Entretanto, um “ramo” económico importante em Cabo Verde são as ajudas externas. O Germano tem criticado esta dependência, dizendo que não podemos estar eternamente de mão estendida. Mas a covid também nos obrigou a recorrer aos parceiros…
Cabo Verde não seria nunca o Estado que temos hoje se na altura da independência, não tivéssemos apanhado o mundo em condições particularmente boas, em que nos deram ajudas das mais diversas espécies, com as quais fomos criando uma economia. Por exemplo, as empresas públicas, que vieram a ser todas privatizadas a partir de 90, porque diziam que o Estado é mau administrador. Ok, é mau administrador, mas foi o Estado que criou essas empresas. Podem ser, de facto, remodeladas, não têm de ser privatizadas, não podem dar lucros só para estranhos porque o Estado de Cabo Verde tem de funcionar, como disse, como Estado-Providência. Só por esta razão. Não é uma razão ideológica, é uma razão prática. Neste momento estamos com problemas de covid, há desemprego, as nossas empresas não funcionam. Defendemos a privatização, mas nós não temos uma economia privada forte, era preciso ter. Queiramos ou não, o Estado em Cabo Verde é que comanda a economia, e então era preciso de facto diversificar e operar com isto no sentido de nós, de alguma forma, nos virmos a libertar da dependência da ajuda externa. A ajuda externa foi muito boa, funcionou muito bem, mas não temos de viver eternamente à custa dela. Neste momento ainda estamos de mão estendida a pedir ajuda por causa da covid, porque nós destruímos a economia nacional a partir das empresas que foram privatizadas.
Passando à política em ano de autárquicas. Em “A morte do meu poeta”, por exemplo, ironiza um certo amadorismo nas eleições em Cabo Verde. Agora com vários anos de democracia, estamos mais sofisticados?
[Risos] Se acompanhou as confusões que houve na Boa Vista e São Vicente e até na Praia...
O que aconteceu em São Vicente é bom material para um romance seu.
Exactamente. O Tribunal Constitucional já veio pôr as coisas em ordem e, normalmente, nós temos essa coisa boa. Quando o tribunal superior diz ‘é assim’, não se discute mais. É evidente que quando se fala em partido mais votado nas urnas, é o partido que meteu mais deputados, vereadores, seja o que for. Depois ele está em pé de igualdade naquele órgão. O partido mais votado, com mais eleitos, pode mais facilmente juntar-se com aqueles que têm menos, mas não é nenhuma obrigação. Dois dos que têm menos podem juntar-se e ficam maiores do que o outro. Foi o que aconteceu em São Vicente. Isto é que é democracia. As urnas são um momento anterior, já é um momento passado. De maneira que essas autárquicas tiveram uma coisa boa. Estou convencido que muito rapidamente em Cabo Verde vamos começar a ter os três partidos a disputar a formação do governo. Até hoje temos sempre PAICV, MpD, PAICV, MpD, mas eu estou convencido que a UCID, se não desanimar pelo caminho, e se não cometer muitos erros – que já anda a cometer – pode ser um partido charneira que vai obrigar os outros dois partidos maiores a pensarem duas vezes.
Há pouco falava do TC, também tivemos este ano situações algo caricatas na Justiça. O Supremo declarou que não iria participar em actividades públicas, suspendeu a sessão de abertura do ano judicial… Como vê esta reacção?
Se conhecermos a história do Supremo não vamos estranhar que tenha agido desta maneira. O Supremo de vez em quando tem atitudes destas e reage com chantagem sobre a sociedade. Lembro-me que a seguir à abertura política, nos anos 90, já não sei bem o que houve, uma crítica qualquer no jornal, e o Supremo pediu demissão em bloco. Houve, depois, outras, e agora esta. O problema é que, os tribunais [em geral] – e isto é uma coisa que a gente tem de dizer com sinceridade, talvez com toda a crueldade – funcionam com corporativismo. As questões, por exemplo, que têm sido denunciadas a nível da justiça são graves e não é investigar a nível interno que vai solucionar a questão e dar credibilidade. Era preciso haver uma investigação exterior, de uma instituição da sociedade exterior aos tribunais, gente independente, capaz de ver o que há de verdade naquelas acusações. As acusações que o dr. Amadeu [Oliveira] tem vindo a fazer são gravíssimas, e não podem ser outros magistrados a investigar e dizer o que é verdade. Importava haver uma investigação independente. A ser falso, Amadeu terá de ser punido, porque não pode acusar falsamente os órgãos do poder judicial como faz. Isto, se é falso. Se é verdade, essas pessoas terão de ser punidas. Mas tem de se saber.
Todos os sectores importam, mas o sector em destaque este ano foi a saúde. Como avalia a resposta de Cabo Verde à covid?
Boa, tendo em conta as nossas limitações. Aliás eu penso que em termos de saúde, em Cabo Verde, não nos podemos fixar apenas neste momento. Temos de pensar na saúde que tínhamos em 75 e ver tudo o que se conseguiu. Grandes conquistas se fizeram de 75 a esta parte, e acho que foi extremamente interessante a forma como se encarou a covid. Agora, há uma coisa que é o seguinte: estamos a falar de Cabo Verde. Temos de perder essa mania de nos estarmos a comparar com os países “a sério”, que são aqueles países que têm meios. Nós não. Nós temos de viver com os meios que temos, e neste sentido, sim, temos que de facto dar graças aos nossos profissionais de saúde, que fizeram um trabalho muito importante a nível geral, em Cabo Verde.
Na cultura. Em termos de produção até pode ter sido um momento de boa produção.
Sim, está-se a produzir muito em Cabo Verde, é um facto.
Mas em termos de eventos ficou tudo parado. Não há por exemplo festivais…
Houve, com mais cuidado, mais recato, mas sempre foi havendo alguma coisa. Eu discordo, em absoluto, de se pensar que a cultura em Cabo Verde pode ser auto-sustentável. Não será possível. Acho que o Estado vai ter sempre que apoiar os criadores culturais se se pretende aquilo que, para mim, deve ser fundamental, que é a exportação da nossa cultura. Isto é, se queremos dar a conhecer os nossos artistas fora de Cabo Verde. Excepção feita aos músicos que conseguiram chegar lá sozinhos, as outras formas de arte têm de ser apoiadas pelo Estado. Sobretudo a nível da literatura. Se queremos ter uma literatura conhecida no mundo, o Estado tem de apoiar. Isto não é novidade nenhuma, todos os países fizeram isto, de maneira que temos de incentivar os nossos criadores a trabalhar com convicção. Acho que deve haver mais concursos literários, porque as pessoas têm de ter um incentivo. Há dias eu estive como membro do júri num concurso do prémio Arnaldo França, e fiquei agradavelmente surpreendido com um número de obras que concorreram. Foram 15 ou 16 concorrentes daí talvez umas 10 eram obras de qualidade.
Já em jeito de prognóstico, o que antevê para 2021?
Não obstante a pandemia, a natureza foi benévola para connosco, mandou-nos chuva. Se em Cabo Verde chovesse regularmente não precisávamos de governo, não precisávamos de ninguém, éramos auto-suficientes. Infelizmente não. Agora os governos, têm de aproveitar esses períodos bons para criarem reservas para termos garantia para o futuro. Eu costumo dizer que todos os nossos governantes deviam ser obrigados a ler o Chiquinho, de Baltasar Lopes, porque quem lê não se comporta como muito deles se comportam. Acho que o Chiquinho devia ser um livro de cabeceira para dizer, cometeram-se esses erros, temos de os evitar. Os cabo-verdianos todos deviam ler o Chiquinho de 5 em 5 anos e os nossos governantes deviam fazer prova de leitura de Chiquinho, antes de entrarem no poder. Acho que nós temos que ter consciência que Cabo Verde é um país pequeno, pobre, e que tem de ser governado com a dimensão que nós temos.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 996 de 30 de Dezembro de 2020.