O Carnaval de 2020 terá sido a última grande celebração popular global antes de a pandemia se consolidar. O vírus já andava por aí e, semanas depois, o mundo entrou em confinamento. Um ano volvido, não há ilusões e as grandes reuniões públicas – seguras – são coisa do passado. Carnaval 2021? Nem pensar.
Em São Vicente, não se ouve batucada nem a música dos ensaios. Não há andores em construção e as costureiras não estão assoberbadas com centenas de fatos por concluir. Sobra “vazio e tristeza”.
David Leite, presidente da Escola de Samba Tropical, sabe que a prioridade é a saúde pública. Há algum tempo, quando se achava que a pandemia poderia ficar ‘resolvida’ em poucos meses, o grupo desenhou o projecto para este ano.
“Tivemos que cancelar todos os trabalhos, mas acredito que no dia em que conseguirmos fazer o próximo Carnaval, vai ser o maior de todos os tempos, em Cabo Verde”, deseja.
Para o presidente do campeão em título, o Grupo Carnavalesco de Monte Sossego, resta a sensação de impotência. António Duarte espera que, em 2022, seja possível sair para estrada e aproveitar aquilo que já tinha sido adiantado para o próximo dia 16.
“Não é algo que, a partir de determinada altura, não estivéssemos a prever, embora sempre com alguma esperança de que a coisa se resolvesse. Vamos continuar a trabalhar, numa perspectiva do Carnaval de 2022”, garante.
Lili Freitas, do Vindos do Oriente, fala num momento triste e preocupante, mas a veterana do Carnaval mindelense relembra que, em primeiro lugar, está a saúde.
“Realmente, ficamos tristes porque, nesta altura, os amantes do Carnaval sentem o vazio. Infelizmente, já estamos conformados”, desabafa.
Depois de vários anos fora do asfalto, o Estrela do Mar regressou em 2019 ao concurso de terça-feira. O actual responsável do colectivo, Fernando Fonseca, diz-se “chocado”.
“Estamos a sentir que é uma oportunidade para descansar, e é mas, por outro lado, ficamos chocados por perceber que o nosso Mindelo está parado e não estamos a conseguir fazer o deslumbramento de todos os anos”, lamenta.
Na Cruz, a notícia do cancelamento do Carnaval foi recebida há algum tempo, sem surpresa mas com preocupação. Jailson Juff alerta para a situação dos trabalhadores que dependem desta época para obterem parte importante dos seus rendimentos anuais.
“Financeiramente, vai prejudicar muito os trabalhadores que dependem da realização do evento para ganharem o seu sustento. Não ter Carnaval afecta muitos sectores. Primeiro vem a saúde pública e depois a festa, mas convém realçar que o Carnaval já não é só festa, é uma profissão em São Vicente”, recorda.
Quem trabalha directamente na cadeia produtiva do Carnaval sente no bolso o impacto do seu cancelamento. Dina Moreira, do atelier Dinamor, não está optimista.
“A nossa principal receita, entre Janeiro e Fevereiro, provém do Carnaval, então, estamos nos preparando desde Outubro para ver o que podemos fazer para estes dois meses, porque estamos sem trabalho. Estávamos a fazer máscaras, mas neste momento as pessoas usam mais máscaras cirúrgicas. Não sei como vamos passar, se em Fevereiro vamos para casa. Não sei”, afirma.
A não realização dos festejos de Carnaval segue-se a outros cancelamentos, como as galas de finalistas e muitas festas de réveillon. A situação é crítica.
“Tínhamos alguma receita para aguentar, mas infelizmente não chega para aguentar Janeiro e Fevereiro. Neste momento, estamos numa situação lamentável”, expressa.
Costureiras, músicos, técnicos de iluminação e som, trabalhadores dos estaleiros. Centenas de pessoas trabalham directamente no Carnaval, em São Vicente.
O presidente da Escola de Samba Tropical, David Leite, recorda que o rendimento de inúmeras famílias depende desta época. Por isso, sugere uma compensação financeira.
“A nossa grande preocupação está sempre nas famílias, nos artistas, no seu ganha-pão. A Câmara Municipal de São Vicente, o Governo sabem os valores que estão implicados no Carnaval e poderiam, de alguma forma, ajudar estas famílias e estes”, apela.
Também António Duarte considera inquietante a situação dos trabalhadores do Carnaval. Só nos estaleiros, o Grupo de Monte Sossego costuma ter 30 a 40 trabalhadores.
“Temos um sentimento de impotência. A maioria das pessoas viu as suas receitas defraudadas em função da situação que vivemos. As instituições que têm sido parceiras do Carnaval, nomeadamente o Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas, a Câmara Municipal de São Vicente, poderiam atribuir parte da verba cabimentada no orçamento anual, não só para ajudarem as pessoas que colaboram com os grupos, mas também para os grupos irem desenvolvendo os seus trabalhos”, propõe.
Iniciativa simbólica
Para não deixar a data passar em branco, a produtora CV Sonho e os músicos Anísio Rodrigues e Ivan Medina apresentam aos domingos, até 21 de Fevereiro, o evento online “Carnaval Sem Fronteiras”, que pode ser visto nas páginas das redes sociais da CV Sonho e nas plataformas digitais Abrasu Musikal, Afrikbeat e Kintal Kultural.
*com Fretson Rocha e Lourdes Fortes
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1001 de 3 de Fevereiro de 2021.