Uma profissão a ganhar espaço em Cabo Verde, mas existem ainda desafios

PorSheilla Ribeiro,28 fev 2021 7:40

O envelhecimento da população traz consigo o aumento da prevalência de pessoas com doenças crónicas incapacitantes, com novas necessidades de saúde e sociais que requerem respostas diversificadas. O grau de dependência destas pessoas leva à necessidade de um cuidador.

Assim tem sido em todo mundo e Cabo Verde não foge à regra. Entretanto, falta trilhar caminhos rumo ao reconhecimento efectivo do cuidador como um profissional com carteira, direitos e deveres.

Embora sendo a maioria mulheres, há homens nesta profissão. Nélido Silva é um deles. Fez, em 2019, uma formação promovida pelo Ministério da Família e Inclusão Social e, neste momento, trabalha nesta área. Este cuidador, assim como outros profissionais, labora num período de oito horas diárias. Segundo conta, faz o seu trabalho em casa das pessoas e também presta serviços na Câmara Municipal da Praia.

Este entrevistado acrescenta que as pessoas têm solicitado muito os seus serviços. Embora ainda não haja no país carteira profissional para a classe, mostra-se esperançoso que isto venha a acontecer em breve, até porque há promessas das autoridades responsáveis pela área neste sentido.

“O que me levou a ser cuidador? Amor, gosto. Gosto de cuidar, até porque sou formado em enfermagem. Para além da enfermagem, gosto de prestar auxílio às pessoas mais vulneráveis. Um dos meus avôs, já falecido, foi vítima de Acidente Vascular Cerebral (AVC). Eu sempre cuidava dele, foi isso que me motivou a ser cuidador”, narra.

Para Nélido Silva, o mais difícil nesta profissão é locomover um idoso, ainda mais quando é para transferir da cama para uma cadeira ou de cadeira para cama e dar banho no leito.

Embora haja um número considerável de procura, este cuidador queixa-se do facto de a sociedade cabo-verdiana não estar ainda a valorizar o profissional cuidador. Como entende que deveria ser.

Para justificar esta falta de reconhecimento, Nélido Silva aventa a hipótese de não existir o estatuto do cuidador, que mostre quais são os direitos e deveres daqueles que estão nesta profissão. Também revela que ainda não há nenhuma organização da classe. Por isso, diz estar a pensar em criar uma associação e que, inclusive, já tem elaborado uma proposta de estatuto.

Para além do estatuto, entende este entrevistado que deveria também haver um salário estipulado.

“As pessoas deviam saber diferenciar o cuidador do empregado doméstico. Porque, quando as pessoas contratam um cuidador, acham que estão a contratar um empregado doméstico, para limpar, cuidar da casa e ainda cuidar da pessoa. E isto é algo que deveria estar bem claro. Sempre que as pessoas contratam um cuidador querem que o cuidador lave também as roupas do idoso, os lençóis e outras coisas, explana.

Na verdade, explica, o trabalho do cuidador consiste, no caso de uma pessoa que teve um AVC, doença de Parkinson, incontinência urinária ou outra enfermidade, em fazer a higienização do paciente, trocar de roupa, promover algum exercício que ajude o paciente no seu desenvolvimento motor e também alimentar a pessoa. Além disso, acrescenta, o cuidador poderá também fazer algum acompanhamento junto com um fisioterapeuta.

“Nos Centros da Câmara Municipal trabalhamos oito horas por dia, mas em casa das pessoas trabalhamos de uma a três horas no máximo. Depende das necessidades dos clientes, porque há aqueles que pedem apenas para dar banho ao acamado, há quem peça para dar banho e comida e há aqueles que pedem para ficar com a pessoa durante cinco ou seis horas, prossegue, completando que ainda não há um lugar específico para que as pessoas demandem os serviços do cuidador, mas que o Ministério da Saúde e da Segurança Social está a desenvolver uma plataforma onde isso seja possível.

Nélido Silva revela na sua entrevista que, no seu caso particular, recebe várias solicitações, porque para além de cuidador, preside uma ONG – “Enfermeiros Activos”. Conforme avança, as pessoas conhecem o seu trabalho.

“Tenho uma página de cuidados nas redes sociais, da qual fazem também parte outros cuidadores da Cidade da Praia. É neste sentido que a maioria das pessoas entra em contacto comigo porque conhecem o meu trabalho”, complementa, reafirmando o desejo de se criar uma associação.

Formação

Este cuidador afirma ter a noção de que existem muitos cuidadores sem formação em Cabo Verde, até mais do que aqueles com formação. Mas entende que a importância de fazer uma formação nesta área reside no facto de se ganhar competências para lidar de forma correcta com os paciente.

Por isso, acredita, é preciso ter conhecimentos para saber cuidar de forma pormenorizada, dependendo do problema de cada utente.

“Seria bom que houvesse um lugar onde as pessoas pudessem pedir esclarecimentos sobre os serviços do cuidador. Ser cuidador exige muito da pessoa, tanto fisica como mentalmente, porque exige muito esforço. É preciso força para locomover o utente, mas também exige paciência e tempo. Exige muito mais psicologicamente do que fisicamente”, frisa.

Ainda sobre a importância de profissionais desta área, Nélido Silva aponta que há casos de utentes numa fase “muito delicada”, mas que com a presença do cuidador acabam por desenvolver melhorias e até começam a andar, falar, esticar algumas partes do corpo com alguns exercícios. Aliás, entende, o cuidador deve zelar por isso.

Carteira profissional trará maior reconhecimento

Em declarações ao Expresso das Ilhas, a directora do Serviço de Desenvolvimento de Pessoas com Necessidades Especiais e Coordenadora do Plano Nacional de Cuidados (PNC), Rosária Vieira, defende que “seria muito bom” se houvesse uma carteira profissional de cuidador.

“É um desejo de todos os cuidadores e seria muito bom porque com a carteira profissional poderão ser mais reconhecidos e valorizados pela sua profissão. Isso sabendo que ainda temos muito que sensibilizar os cabo-verdianos que ainda não sabem diferenciar um cuidador de um enfermeiro ou de um empregado doméstico”, refere.

Esta responsável diz acreditar que com a carteira profissional e também “com muita sensibilização” se irá conseguir colmatar a barreira que há no país relativamente ao reconhecimento desta profissão.

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“Com a carteira poderemos avançar com o Estatuto do Cuidador. A carteira profissional é algo que vamos retomar”, garante Rosária Vieira, completando que o assunto teve uma pausa com a mudança de pastas da Família e Inclusão Social, após a saída da ministra Maritza Rosabal em Dezembro último.

“Temos cerca de 500 cuidadores, tanto cuidadores de infância de zero a três anos, como cuidadores de dependentes. Não sei dizer a percentagem exacta, mas quase todos os cuidadores são mulheres. Por exemplo, não há nenhum homem que seja cuidador de infância, e quanto aos cuidadores de dependentes temos cerca de 10 homens formados na área”, contextualiza.

Rosária Vieira acrescenta que o perfil cuidador de infância e cuidador do dependente foi desenhado pelo Ministério da Família e Inclusão Social, em parceria com a ONU Mulheres em Cabo Verde, juntamente com o sistema nacional de qualificação profissional.

Aliás, para além do perfil no catálogo, foi criado um plano de formação acreditado e que vai-se concluir com a carteira profissional. Por isso, pontua, é uma profissão reconhecida, pelo que, depois da sua aprovação, poder-se-á dizer que, a nível nacional, se está abastecido com os profissionais de cuidados.

Viver em função de cuidar do outro

Muito antes de ser encarada como uma profissão no país, sempre houve quem suspendesse a sua vida para cuidar dos pais idosos, filhos com deficiência, ou um familiar doente. É o caso de Rosângela Évora que há quatro anos cuida da avó depois de esta ter sofrido três AVCs.

Em declarações ao Expresso das Ilhas, esta cuidadora informal revela que no princípio quando a avó ficou acamada, cuidava da idosa de manhã à noite.

“Depois que arranjei emprego, antes de ir trabalhar dou-lhe banho, deixo-a vestida e uma vizinha vem na hora do almoço dar-lhe de comer. Quando saio do trabalho às 16h00 volto a cuidar dela até a hora de dormir”, descreve.

Rosângela é quem faz tudo pela avó. Higiene, alimentação e medicação. De resto, conforme menciona, deve decorar a hora e as doses necessárias de cada medicamento, junto dos médicos.

“Estou tão acostumada a essa rotina que já nem sinto o cansaço”, afirma, acrescentando que além da avó ainda tem de cuidar da filha de dois anos de idade.

Apesar de não se sentir cansada, Rosângela Évora admite que cuidar da avó acabou por limitar a sua vida social. Se quiser sair de casa, tem de encontrar alguém que esteja disponível e disposto a assumir o seu papel durante uma ou duas horas. Caso não encontre, tem de cancelar qualquer compromisso, seja de lazer ou não.

Para esta entrevistada, o maior desafio é saber especificamente quais as reais necessidades ou dores da avó, já que esta não fala há cerca de três anos.

“Muitas vezes fico sem saber o que é que ela necessita. Ela tem uma rotina, uma hora exacta para o pequeno-almoço, almoço e jantar, mais os outros cuidados. Mas, se estiver com uma dor, ela não me pode dizer e eu fico sem saber. Por esta razão, sempre toco as suas pernas, braços e outras partes do corpo ao mesmo tempo em que observo as reacções na cara dela de modo a saber se lhe dói algo ou não”, detalha.

Ter uma pessoa dependente tem elevados custos financeiros, segundo Rosângela Évora. Principalmente com fraldas. Entretanto, prossegue, a sua avó não passa por dificuldades maiores já que tem filhas no estrangeiro para arcar com todas as despesas.

Aliás, esta é a principal razão pela qual não contratou alguém para assumir os cuidados da idosa.

“Como sempre cuidei dela, fui aprendendo a lidar com ela, a locomover, a dar banho, a limpar, tudo. Além do mais, as filhas dela vivem fora e essa decisão de contratar alguém poderia partir delas. Por isso, além de mim conto apenas com a minha vizinha para ajudar há anos”, finaliza. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1004 de 24 de Fevereiro de 2021.

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Autoria:Sheilla Ribeiro,28 fev 2021 7:40

Editado porFretson Rocha  em  26 nov 2021 23:21

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