Um caminho irreversível

PorSara Almeida,28 mar 2021 7:52

O aumento da licença de maternidade em Cabo Verde tem vindo a ser recomendado por diversos organismos internacionais e nacionais. Ainda recentemente, a Comissão Nacional para os Direitos Humanos e Cidadania (CNDHC) levou essa recomendação ao governo, em acção que se soma a várias outras já feitas nesse sentido, com destaque para uma Petição da sociedade civil lançada em 2016. A par desse aumento, a criação de uma licença de paternidade, é outro desígnio nacional. A pandemia veio baralhar um pouco as contas, mas, mais tarde ou mais cedo, Cabo Verde terá de avançar nesse sentido. É “irreversível”, acredita o promotor da Petição, Vladmir Silves Ferreira. Entretanto, esta é uma questão que engloba quase todas as vertentes públicas e privadas da sociedade, e todos terão de ser envolvidos …

A filha de Carla tem hoje 4 anos, mas a mãe, como todas as mães, lembra-se bem dos primeiros dias. A incerteza, o medo, a dor dos primeiros tempos de amamentação e uma alteração total das rotinas, em que as horas de sono, amplamente diminuídas, passaram a ser regidas por um ritmo diferente. “O tempo é diferente quando temos um recém-nascido.” Entre olhos e coração (e mamas) transbordantes, entre tudo, o que mais lhe custou foi regressar ao trabalho passados 2 meses. Não encontrou berçário que aceitasse bebé tão pequeno. Não encontrou, acabou por contratar uma empregada para ficar com a criança mas, embora confiasse na pessoa, não consegui deixar de estar sempre preocupada. “A melhor pessoa para estar com o bebé é sempre a mãe. O pai também, mas principalmente a mãe”. Passava o tempo em que estava no trabalho a pensar na sua filha, a ligar para casa, a tentar tirar leite. “Foi um período stressante, aflitivo. E sentia-me culpada por não estar com a minha filha”. Por motivos óbvios, não sabemos o que pensava a sua filha… mas nisto ciência e senso comum convergem: o melhor para o bebé é ter a mãe por perto nos primeiros meses.

Cabo Verde tem uma licença de maternidade que é cerca de metade do mínimo recomendado a nível internacional e lhe tem valido críticas internas, mas também internacionais, nomeadamente o Banco Mundial (Mulheres, Negócios e o Direito 2021), a Organização Internacional do Trabalho, entre outras. Ao invés das 14 semanas “mínimas”, a legislação apenas contempla 8 semanas.

Ainda recentemente, a CNDHCD apresentou ao governo uma recomendação para “o alargamento da licença de maternidade de 2 para 4 meses e a instituição da licença de paternidade de quinze dias”. Esta recomendação surge na sequência da avaliação feita em 2019, pelo Comité dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas, que após avaliar o estado de implementação da [ratificada] Convenção dos Direitos da Criança em Cabo Verde, recomendou que o Estado intensificasse os seus esforços para “promover uma responsabilidade parental igualitária para os pais e as mães, de forma contínua e sustentada”.

Cabo Verde dá pouco tempo de licença à mãe e quase exclui o pai da equação. A falha está identificada. A correcção tarda.

Aleitamento

O argumento mais usado para justificar o aumento da licença da mãe prende-se com o aleitamento. Cabo Verde segue as orientações da OMS e defende o aleitamento materno exclusivo por 6 meses. Contudo, cerca de 70% das mulheres não consegue seguir a recomendação, sendo o regresso ao trabalho a principal causa apontada.

Carla é uma das mães que engrossa a estatística. Mora relativamente longe do trabalho e usar os 45 minutos por período laboral a que tinha direito para amamentar estava fora de questão. (Juntava esse tempo e saia 1h30 mais cedo). Conseguiu manter o aleitamento exclusiva até aos 4 meses, com muito, muito esforço. Depois, o leite em fórmula passou a integrar o cardápio da bebé. “Eu estava exausta. Não conseguia mais. Amentei até quase os 2 anos, mas em exclusivo só até aos cerca de 4 meses”, conta.

Além do cansaço e dificuldades do usufruto dos tais 45 minutos/período, como recorda aliás a CNDHC na supra-referida recomendação, “a maioria dos serviços públicos e privados não dispõe de estruturas adequadas” para retirar e conservar o leite. Assim, “para o bem da sociedade e do superior interesse da criança”, o “Estado deve considerar a possibilidade de proceder” à alteração do quadro existente, aconselha a CNDHC.

Seria então diferente se a licença de maternidade fosse de 4 meses em vez de 2? Carla responde: “Claro! E vejamos, 2 meses para uma empresa não é o mesmo que 2 meses no primeiro ano de vida da criança, que é fundamental. O regresso ao trabalho tão cedo é uma tortura. E é quase impossível manter o aleitamento exclusivo tanto tempo”.

Contramão

“As condições de exercício da maternidade, do ponto de vista legal e de políticas públicas de incentivo à maternidade, são muito precárias e limitadas” em Cabo Verde, sublinha, por seu turno, Vladmir Silves Ferreira.

Há cinco anos, este professor universitário lançou uma Petição para alargamento da licença de maternidade para 4 meses, e criação da licença de paternidade de 15 dias – tal como agora a CNDHC recomenda.

Vladmir já não era pai de primeira viagem. Mas foi aquando do nascimento da segunda filha, pela própria experiência e no diálogo com colegas e amigos, que decidiu fazer algo para melhorar aquilo que considera ser “um desafio da sociedade cabo-verdiana”.

“Percebi que havia esta vontade colectiva. Acho que a maior parte das pessoas concorda, independentemente de terem ou não subscrito ou a petição”, refere.

A petição, que ainda pode ser assinada informalmente, foi então lançada em Setembro de 2016 e entregue ao governo cerca de meio ano depois, com um total 2.300 assinaturas. O intuito era lançar a proposta e abrir a discussão. Porque políticas e quadro legislativo vêm “na contramão daquilo que o próprio Estado defende”, aponta.

Há questão do aleitamento exclusivo até aos 6 meses, e outras questões relacionadas com a mãe, mas há também da paternidade …

Paternidade

Hoje, a licença-paternidade é reconhecida como fundamental para que o papel dos homens em relação às responsabilidades familiares e à prestação de cuidados seja promovido. Aliás, é visto como um indicador da importância atribuída [pelos Estados e suas sociedades] à presença e participação do pai, como refere a OIT.

Assim, embora não haja normativas internacionais específicas em relação a esta licença, ela começa a ganhar expressão em todo o mundo.

Em Cabo Verde, a licença de paternidade só é aplicada ao pai em caso de morte e incapacidade física ou psíquica da mãe. Fora dessas situações excepcionais, o que existe é a aplicação de 2 dias de faltas justificadas por ocasião do nascimento do filho.

“Acho que a mensagem de fundo é que os legisladores acreditam, realmente, que cuidar de criança, cuidar de recém-nascido é uma responsabilidade feminina. Isso é o oposto da mensagem do que nós deveríamos estar transmitindo”, destaca a técnica de género Isis Labrunie.

Nos últimos anos, em Cabo Verde, várias entidades têm tentado promover uma paternidade mais positiva, mais próxima e afectuosa. A CNDHC, por exemplo, promoveu em 2013 a campanha “Ami ê pai” sob o lema “por uma paternidade responsável”. Ao longo dos anos tem havido avanços, mas a situação ainda não é a desejável e o pai ainda se auto-exclui e é excluído da assunção plena da paternidade.

É neste contexto, para valorizar o pai e a paternidade - “aplicando assim o princípio da igualdade” - que a CNDHC e o movimento da referida Petição apelam a uma licença de 15 dias para os pais.

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Também o ICIEG, cujo paradigma de intervenção, face à evolução das questões do género, tem vindo a incidir no homem, combatendo a chamada masculinidade tóxica, quer um envolvimento maior dos progenitores na parentalidade.

Assim, a licença de paternidade é defendida também pelo ICIEG, que considera manifestamente insuficiente os 2 dias de “licença” atribuídos. Há “uma necessidade de se trabalhar os homens para uma atitude de maior afecto para com os filhos. Queremos o touch, o afecto. Dar banho, cuidar da criança”, diz a presidente, Rosana Almeida.

O modelo ideal, salienta, entretanto, Isis Labrunie, seria de licença igual para homens e para mulheres, não transferível.

Seria o ideal. Contudo, o criador da Petição (de 2016) – que aponta para os 15 dias - explica que não se pretendeu “fazer uma proposta demasiadamente ambiciosa” de maneira a dar também tempo de adaptação às instituições tempo de adaptação e integração”

“Mas a médio e longo prazo as condições de exercício da paternidade terão de estar equiparadas com os da maternidade, tendo em conta que estamos num processo de convergência em relação a tudo o que seja estereótipos de descriminalização de género”, observa Vladmir Silves Ferreira.

Pés no chão

Parece ser consensual a aprovação das mudanças nas licenças parentais. Contudo, há receios por parte de alguns actores.

No ICIEG, “estamos a trabalhar há muito a licença de maternidade, mas é preciso muita cautela”, alerta Rosana Almeida.

“Temos uma população jovem e não podemos beliscar o acesso dessa população ao emprego”, observa. Isto porque se teme que o aumento da licença, possa de alguma forma condicionar a contratação de mulheres em idade fértil, mesmo que hoje o número de filhos por mulher seja muito menor.

“É preciso ter os pés no chão”.

Esse temor não é novo. Contudo, experiências de outros países mostram que o aumento das licenças não teve esse impacto.

“Vimos que isso não aconteceu”, observa a técnica de género Isis Labrunie.

De qualquer forma, defende, “esse é um outro motivo pelo qual é determinante que exista uma licença de paternidade também.”

Da parte dos empregadores parece haver sensibilidade. Suzana Mões, Vice-presidente do conselho directivo da Câmara do Comércio de Barlavento, considera que a proposta é uma iniciativa de valor e o alargamento, algo que até deveria ter sido pensado mais cedo.

Conforme relembra, “é incontestável todos os benefícios que esse aumento traz para a saúde da criança.

“Tem obviamente esse lado da moeda”, aponta. Mas há outros lados…

Assim, a representante da classe empresarial recorda que “o governo tem de ter em consideração que o nosso mercado é constituído por micro e pequenos empresários e o aumento em termos de tempo pode ser complicado para o tecido empresarial.”

Numa empresa pequena, quando sai uma pessoa com função importante sai por 4 meses... “fica complicado”, adverte.

Outra questão é que essa mudança não pode trazer custos adicionais. Até porque, sublinha Suzana Mões, este não é melhor momento para estar a aumentar custos às empresas. Em meio de uma conjuntura muito difícil, provocada pela covid-19, tudo deverá ser feito para não sobrecarregar as empresas, nem monetariamente, nem em termos de gestão.

“Mas estamos abertos” à proposta, salvaguarda.

A proposta terá obviamente de ser discutida em sede da Concertação Social. Aí, como seria expectável, também os sindicatos se mostrariam favoráveis à alteração.

Um aumento da licença, no entender de Joaquina Almeida, Secretária Geral da UNTC-CS, mostraria que o país está a evoluir. E, tal como Labrunie, a sindicalista não acredita que esse alargamento traga mais precariedade ou prejudique as mulheres no acesso ao trabalho.

“S está na lei é para ser cumprido”. E se uma entidade tentar, por exemplo, não renovar o contrato a uma mulher grávida ou de alguma forma contornar a lei, “existem as instituições de trabalho, os sindicatos, para pôr cobro a qualquer tentativa dessa natureza”, garante.

Caminhos

Entretanto, há já cinco anos que foi lançada a Petição para alargamento da licença de maternidade e criação da licença de paternidade.

Ainda não há a conquista final, mas há sim caminho andado.

“Não é um processo de mudança automática”, reconhece o criador da Petição, Vladmir Silves Ferreira. “Mexe com o código laboral, com a questão da sustentabilidade do serviço de segurança social, com a forma como as empresas e as instituições patronais estão organizadas, portanto há um conjunto de aspectos”.

Nos últimos anos têm sido encetados contactos entre os promotores da petição e essas entidades.

O Ministério de Trabalho terá mesmo solicitado um estudo ao Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), para aferir a sustentabilidade da medida e começou a ser pensada uma eventual alteração ao código laboral- código que estabelece as regras da licença de maternidade.

O estudo do INPS foi feito, mas com base em valores anteriores à covid pelo que hoje estará desactualizado (devido ao aumento das despesas e redução das receitas).

Seja como for, aponta Vladmir, os custos com as licenças não são muito altos. Por isso, “à partida não é por aí que a questão não seria solucionada”.

De facto, em termos de prestações, no próprio site do INPS é possível ver que de todas as prestações pagas em 2018, mais de metade (51,7%) são por ‘Doença e Maternidade’. Mas dentro dessa categoria, apenas 5% diz respeito ao subsídio de maternidade.

Cinco anos se passaram então… mas há caminho feito. E Vladmir não duvida do desfecho, em breve.

“Estamos num caminho irreversível, a lei vai ser alterada. Nesta legislatura já não tenho essa expectativa [as eleições são já dia 18 de Abril], mas da próxima legislatura não passa de certeza”. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1008 de 24 de Março de 2021. 

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Autoria:Sara Almeida,28 mar 2021 7:52

Editado porAndre Amaral  em  29 dez 2021 23:20

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