Confinamento provocou aumento da miopia nas crianças

PorSara Almeida,11 jul 2021 9:30

Encerrados em casa, num mundo cada vez mais digitalizado, o confinamento devido à pandemia da covid-19 agravou a saúde ocular em todo o mundo, e Cabo Verde não é excepção. Destaca-se a miopia que, segundo vários estudos internacionais, realizados em diferentes partes do mundo, disparou principalmente entre as crianças, grupo onde a incidência subiu 40%. Por cá, não há dados concretos, mas nota-se já uma maior procura de consultas oftalmológicas.

Rui tem apenas 5 anos e foi diagnosticado, há algumas semanas, com miopia. O ano passado, reconhece a mãe, devido ao confinamento, o número de horas exposto ao tablet aumentou exponencialmente. Entre teletrabalho e falta de opções de distracção, o aparelho acabou por ser um recurso muito utilizado para o “entreter”. “Como qualquer criança, ele adora. E acabamos por ser mais permissivos porque quer eu, quer o pai precisávamos de algum tempo sem ser interrompidos, para poder trabalhar”, conta a mãe.

Em sentido inverso, o tempo passado ao ar livre, na praia ou outros locais de lazer, diminuiu substancialmente. “Houve muito tempo de praia fechadas, parques fechados… foi, e ainda é, complicado”, diz.

A certa altura, os pais de Rui repararam que o menino se sentava muito perto da televisão, e se aproximava bastante também de outros objectos, como que para os ver melhor. Como a criança ainda não sabe as letras, simularam um teste oftalmológico. “Desenhamos um círculo numa folha e perguntamos-lhe o que era. Ele foi-se aproximando, aproximando, até que a certa distância exclamou: ‘É uma bola!’ O mesmo com um quadrado. Como ele não identificou as formas à distância ‘normal’, soubemos, nesse momento, que tinha miopia. Como o pai também tem, não ficamos muito admirados. Mas ele é tão pequeno…”. Marcaram então consulta no médico, que confirmou as suspeitas.

Rui tem, pois, miopia, um distúrbio ocular que é resultado de uma combinação entre factores genéticos e ambientais. Se da parte genética, as probabilidades de vir a ter este “erro” de refracção eram elevadas, os próprios pais acreditam que foram os factores exteriores que o fizeram aparecer tão cedo.

O que se passa com Rui, passou-se, na pandemia, com milhares de crianças em todo o mundo.

Aumento de 40%

A Organização Mundial de Saúde (OMS) já tinha, antes, estimado um aumento da miopia no mundo, devido ao uso cada vez maior dos meios digitais e novos modos de vida. De acordo com a organização, até 2050 cerca de metade da população mundial seria míope (contra 23% em 2000). Ou seja, esse aumento, inclusive em crianças, já estava a ser visível… e depois veio a pandemia. “E a pandemia agravou tudo”, explica a oftalmologista, e coordenadora nacional de Saúde Ocular, Isabel Tavares.

Recentemente, a OMs deixou outro alerta. Com base em pesquisas recentes levadas a cabo em diferentes partes do mundo (China, Canadá, vários países da América Latina, entre outros) entre 2019 e 2020, os casos de miopia dispararam, particularmente entre crianças de idades mais precoces.

Há pesquisas que mostram que durante o confinamento a miopia aumentou 40% entre os jovens de 5 a 18 anos. Um outro estudo aponta que o aumento, que já se vinha sentindo desde 2015, triplicou em 2020.

Não só o confinamento vivido levou a um uso mais sistemático e longo de aparelhos digitais, como – e isto é muito importante – a uma menor exposição à luz natural. Dois elementos que são as maiores causas do distúrbio de refracção.

O maior agravamento, apontam também as pesquisas, acontece a partir das idades dos 6 aos 8 anos.

Na verdade, costuma ser mais ou menos a partir dessa idade que surge a miopia. Isso acontece não só pela evolução da visão da criança (que nasce com hipermetropia), como pela própria vivência – entrada na escola, leitura, maior uso de meios digitais por exemplo.

Mas o aumento é inegável, em todo o mundo, exponencialmente agravado pelo confinamento.

Consultas aumentam em Cabo Verde

Não há dados específicos em relação ao aumento da miopia em Cabo Verde. Mas há fenómenos que se notam no dia-a-dia. Para começar, houve sim, como conta a oftalmologista Isabel Tavares, um aumento geral na procura de consultas nos últimos tempos.

Um aumento geral, pois com a passagem para o virtual de várias vertentes da vida (do pessoal ao profissional), existe um “cansaço visual” em toda a população. E há também mais crianças a ir às consultas. Um fenómeno que, no entender da médica, tem também a ver com o facto de os pais passarem mais tempo com os filhos.

Essa maior convivência permite-lhes prestar mais atenção à forma como os filhos lidam com os electrónicos e outros objectos e às distâncias a que os vêem ou manuseiam.

“Como estiveram mais tempo fechados, com a família, acabam por prestar atenção ou notar que a criança realmente não está a ver”, considera.

Com o maior uso dos meios digitais, as próprias crianças também acabam por se queixar mais.

Há, portanto, aqui um aumento, mas também uma mudança. É que antes, como lembra, muitas vezes eram os professores quem primeiramente se dava conta que a criança tinha algum problema de visão. Depois comunicavam aos pais.

Aliás, em relação aos professores, a oftalmologista elogia essa preocupação e consciência das orientações dadas pelos profissionais de saúde ocular, que há já alguns anos é demonstrada.

Mas uma coisa não parece haver dúvidas: existe, hoje, um aumento efectivo de crianças míopes.

“Está comprovado e Cabo Verde não foge à regra. Vai acompanhando, em paralelo, o que se está a passar mundialmente em relação à miopia. Está a aumentar aqui, igualmente”, diz a especialista.

Conselhos

Então como evitar a miopia e outros problemas de saúde ocular nas crianças? De uma forma geral, mais ar livre e luz solar e menos exposição à luz artificial.

Em termos concretos, uma das grandes dúvidas dos pais é quanto tempo devem deixar os seus filhos usar tablets ou telemóveis.

Como refere a oftalmologista Isabel Tavares, não há uma resposta única para esta questão, uma vez que há vários factores a ponderar. Um deles é a idade. Quanto mais novos, menos tempo. Depois, é também importante ter em atenção que outras actividades a criança desenvolveu durante o resto do dia.

Se por exemplo, na escola (ou a distância) já teve aulas de informática e já passou algum tempo em “ecrãs”, o horário deve ser reduzido. Se pelo contrário, passou uma boa parte do dia ao ar livre, já se pode aumentar o tempo de uso. Ponderação, aqui como em tudo, é a palavra de hora.

Quanto à televisão, a médica não é tão restritiva no horário. “Normalmente não vemos televisão o tempo todo”. Há programas específicos que se vêm e limitam esse horário, então a imposição não é tão importante.

Entretanto, no que toca às escolas, o conselho da especialista é que tenham boa iluminação nas salas de aulas. Além disso, “os professores nunca devem escrever com letra pequena nos quadros, para não esforçar muito a visão”. E outro factor importante, é realizar o máximo de actividades possíveis ao ar livre.

Isto em termos de prevenção do aparecimento das doenças. Ao mesmo tempo, é também preciso diagnosticar precocemente, para que a saúde ocular seja melhor tratada.

“Oriento sempre os pais para que observem as crianças. Às vezes elas não dizem nada, então isso é importante.”

Por exemplo, quando uma criança pequena não se interessa por ver televisão a tendência é para que os pais se congratulem pelo aparente desinteresse. Mas geralmente isso significa que algo está errado. “Qualquer criança gosta de ver televisão. Pode-se controlar o horário, o que vê, mas ela gosta”. Assim, normalmente, se não está a ver televisão, “é porque não está a ver mesmo”.

Em relação à televisão, um outro conselho que a oftalmologia deixa é que não se force a criança a afastar-se da televisão. Se a criança fica muito perto, avisa, é porque é a essa distância que ela consegue ver bem. Assim, o correcto é levá-la ao médico, não impor a distância porque só piorará. Com o diagnóstico e as lentes (se precisar), ou seja, com a correcção, então a distância da criança já será a “normal”.

Posto isto, há, pois, que ter cuidado “para não aparecer a miopia”. Se aparecer, “para não a agravar” e ao mesmo tempo, cuidado para não se desenvolverem outras doenças e problemas oculares, como “olho seco” (muito comum em quem passa muito tempo no tablet/telemóvel) ou pior.

É entretanto, importante não esquecer que, embora aqui estejamos a falar essencialmente de crianças, estas, no fundo, acabam por ser mais ou menos controladas. Já os adultos... e também eles correm riscos oculares de monta, quando, por exemplo, apagam a luz e ficam a “ver” o telemóvel muito tempo, à noite. Tal, alerta, pode causar, entre outros, um “glaucoma transitório”.

Genética CV

A miopia é na verdade hoje considerada uma “pandemia”, que afecta milhões, independentemente da idade. Saindo então do fórum da infância e falando da doença, a nível da população geral de Cabo Verde.

Como referido, há poucos estudos e dados sobre a visão em Cabo Verde. Isabel Tavares, em conjunto com um colega cubano, realizou há uns anos um estudo sobre a incidência de afectações oculares na ilha do Fogo, publicado internacionalmente, mas não há muitos exempos do género.

Dentro do que se sabe, é reconhecido (internacionalmente) que “a miopia é uma doença que a pessoa tem no seu código genético e que se agrava por outros factores” externos, relembra a médica. E há uma característica nas afectações oculares em que Cabo Verde se destaca dos restantes africanos, do continente, e que tem então a ver com a informação genética dos cabo-verdianos, devido à miscigenação. Em Cabo Verde, há muito mais miopia e astigmatismo, doenças mais comuns nos Europeus, do que hipermetropia, que é mais prevalente no continente africano.

Isabel Tavares recorda, inclusive, um episódio em que essa característica se salientou. Numa das acções que a Fundação Barraquer (Espanha) realizou em Cabo Verde para apoio na saúde ocular, baseada nas suas missões em outros países (Angola, por exemplo), trouxe várias lentes para hipermétricos que não foram necessárias. Mandaram, entretanto, buscar lentes para míopes.

Entretanto, dados concretos necessitam-se, e espera-se que o Censos traga algumas estatísticas sobre o assunto. E, apesar de todas as dificuldades do país, espera-se “num futuro próximo, ter dados actualizados que nos possam dar uma taxa, uma percentagem” sobre as doenças oculares.

“Cura” da Miopia

Também não há em Cabo Verde um tratamento definitivo da miopia, doença que aparece muitas vezes associada ao astigmatismo.

Em outros países, é já comum o recurso a cirurgias reflectivas que corrigem a perturbação, mas estas requerem conhecimentos especializados e equipamentos caros, que não são, de momento, prioritários no país.

De qualquer modo, há limites mínimos de idade para estas cirurgias. “Nunca se faz numa criança”, pois esta está em crescimento e ocorrem mudanças. Assim, “ninguém deve ser operado à miopia antes de completar 22 anos, sublinha.

______________________________________________________

Miopia e outras doenças oculares

Em Cabo Verde, neste momento, os transtornos refractivos referidos, miopia e astigmatismo, principalmente nas crianças, estão entre as doenças oculares que mais preocupam as autoridades. A preocupação não vem apenas do transtorno em si, mas das afectações que poderão surgir. Por exemplo, o astigmatismo vem muitas vezes “acompanhado de Ceratocone, que é uma doença ocular muito grave que leva ao transplante”, expõe a coordenadora nacional de Saúde Ocular. Há já relatos de crianças com esse problema e falta um meio de diagnóstico eficiente.

Outra doença preocupante é o glaucoma. Mas é importante que as pessoas saibam que este não é uma sentença de cegueira e que quanto mais cedo for diagnosticado mais e melhor será o tempo de vida da saúde ocular, explica Isabel Tavares. Além disso, o diagnóstico é uma informação importante também para os familiares do paciente, pois também nesta patologia, a vertente genética é forte.

Uma outra doença que é preocupante em Cabo Verde, que será mesmo a “mais grave” é a retinopatia diabética. “Temos muitos diabéticos, que acabam por ficar cegos, por maucontrole da diabetes”, aponta.

Entretanto, as cataratas, que “são sempre um problema de saúde ocular”, são já um problema essencialmente tratável e reversível no país.

Quanto às conjuntivites, têm seguido a tendência epidemiológica do país. Assim, tem havido uma melhoria significativa a nível das conjuntivites bacterianas, infecciosas. Mantêm-se, porém, as conjuntivites alérgicas, algo que será difícil de eliminar totalmente tendo em conta características do país, como a bruma seca, os pólen agrícola, e outros factores ambientais. Além disso, as alergias – de todos os tipos – têm vindo a aumentar, principalmente nas crianças, devido aos novos modos de vida.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1023 de 7 de Julho de 2021. 

Concorda? Discorda? Dê-nos a sua opinião. Comente ou partilhe este artigo.

Autoria:Sara Almeida,11 jul 2021 9:30

Editado porJorge Montezinho  em  24 abr 2022 23:20

pub.

pub
pub.

Últimas no site

    Últimas na secção

      Populares na secção

        Populares no site

          pub.