Flagelo em Santo Antão foi há quatro décadas

PorJorge Montezinho,4 set 2021 8:58

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Para marcar uma posição. Para dar um exemplo. Por desconhecimento das dinâmicas sociais num país que era estranho a quem tinha passado anos fora de Cabo Verde. Todas estas razões estão por trás do 31 de Agosto de 1981, em Santo Antão. A repressão, de há 40 anos, recorda que o regime de partido único (1975 – 1990) foi uma máquina totalitária que controlou, vigiou, prendeu e torturou cidadãos cabo-verdianos.

A independência de Cabo Verde representou para os cidadãos a materialização de um direito fundamental, o de soberania. A Constituição da República de 1980 consagrava o arquipélago como uma república soberana, democrática, laica, unitária, anticolonialista e anti-imperialista (CRCV, 1980, Art. 1º). Isto era no papel, na prática, o regime de partido único violou constantemente o direito de liberdade de participação política. O Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV) era, aliás, consagrado como a única força dirigente da sociedade civil e do Estado (CRCV, 1980, Art.º 4).

Depois do golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, na Guiné-Bissau, os dirigentes cabo-verdianos encontram nessa ruptura uma fonte privilegiada de exaltação do patriotismo islenho e de louvação do peso específico da participação dos nacionalistas ilhéus na saga libertária da Guiné-Bissau. Nesse contexto, acelera-se o processo de procura de uma nova localização, exclusivamente cabo-verdiana, das fontes de legitimação do poder dos dirigentes do regime de partido único e assiste-se a uma aceleração do “processo revolucionário em curso”.

A implementação da reforma agrária foi entendida como essencial para a emergência da justiça social nos campos do Sahel insular e para a superação definitiva dos entraves socioeconómicos ao desenvolvimento agrário de Cabo Verde bem como ao florescimento de uma democracia social e económica.

O objectivo programático da Reforma Agrária, várias vezes antes adiado, foi assim retomado para conseguir o apoio da população rural. Dirigentes do PAICV, na altura, consideram “a Reforma Agrária é um acto eminentemente político”. A “Reforma Agrária situa-se na luta de classes..”.

O certo é que a reforma agrária não é bem recebida em Santo Antão. Fosse por desconhecimento dos laços estreitos que uniam proprietários e agricultores, fosse pelo objectivo político, tentou impor-se uma ideia que não se coadunava com aquilo que os santantonenses tinham em comum: as relações com a terra. No fundo, o meeiro, como era chamado quem trabalhava a terra do proprietário, era quem mandava na terra.

Muitos trabalhadores rurais entregam as terras aos donos, dizendo que não queriam saber da história da reforma agrária. Sentiam que iam ser prejudicados e que podiam perder um compadre e um amigo. Estes sentimentos começaram a fervilhar e acabaram por desembocar no 31 de Agosto.

O contexto do 31 de Agosto

No dia anterior, 30, houve uma reunião do PAICV em Figueiral onde surge uma manifestação que gritava contra o partido. Essas pessoas foram presas. No dia 31, a intenção era fazer outra manifestação para pedir a libertação desses homens. O objectivo era ir até à Ribeira Grande, mas os manifestantes (em número que varia, entre os 3 mil e os 5 mil) são barrados pelos militares em Boca de Figueiral. Dezenas de soldados, com carros, armados até aos dentes. O povo não arreda pé. Ficam lá a gritar: “não à reforma agrária”, “libertação dos presos”. Os militares disparam, matam Adriano Santos e ferem outros.

Nessa madrugada sucedem-se as portas arrombadas, homens semidespidos (uns presentes no protesto, outros não) são arrastados para fora da cama, há espancamentos, coronhadas, pontapés, murros. Ataques praticados sem uma única palavra, sem uma única explicação. São todos levados para o Externato da Ribeira Grande, onde continuam a ser agredidos. Se caiam no chão, devido às pancadas, eram pisados pelos militares. Nessa noite sofrem maus-tratos durante duas horas: murros na cara, na boca, na cabeça, pontapés, coronhadas.

Mais tarde são transportados para São Vicente, onde as agressões continuam. Seguiram-se os interrogatórios. Diários. Passavam mais de doze horas de pé, num calor insuportável e isso quando tinham sorte. Quando eram postos de joelhos, dois militares batiam-lhes nas solas dos pés. Por horas e horas e horas. Foi um mês de interrogatórios seguidos, de dia e de noite, sem hora marcada.

Os interrogadores, cansados, eram substituídos. Um dia começam os choques eléctricos, o flagelo durava horas, dependendo do interrogador. Se tivessem pressa era durante uma hora a duas horas. Outros levavam mais tempo. Faziam perguntas, se não tinham a resposta davam um choque. O julgamento acontece três meses depois das prisões, em tribunal militar. As penas variaram entre 6 meses e 10 anos de prisão.

Em 2019, o governo cabo-verdiano reconhece, finalmente, a existência das vítimas de tortura em Santo Antão. A Lei nº 67/IX, aprovada em Julho, no Parlamento, atribui “o valor da pensão financeira mensal que cabe a cada uma das vítimas”, não só as de 1981, como também as de 1977, em São Vicente. O diploma recebeu 40 votos a favor do MpD e três da UCID. O PAICV votou contra (22 votos), alegando tratar-se de uma “armadilhada, enganadora e demagógica”. A promulgação, pelo Presidente da República, aconteceu em Setembro. Na altura, Jorge Carlos Fonseca defendeu o alargamento do direito à pensão a todo o país.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1031 de 1 de Setembro de 2021. 

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Autoria:Jorge Montezinho,4 set 2021 8:58

Editado porAndre Amaral  em  5 set 2021 9:12

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