Domingo, 14, comemorou-se o dia do desporto cabo-verdiano. Acha que Cabo Verde está ciente do ‘poder do desporto’, no desenvolvimento, a nível social, etc?
O Dia Nacional do Desporto foi escolhido na década de 80, tendo como marco o domingo em que se fez a 1.ª conferência nacional do desporto, que foi um momento de reflexão para pensar o desporto cabo-verdiano e projectar o futuro. A a partir daí comemorou-se sempre no 2º domingo de Novembro. Estamos agora a preparar-nos para lançar um repto à sociedade civil para uma reflexão sobre que marco, que atleta ou que momento do desporto nacional, pode servir para se ter um dia em concreto como Dia Nacional do Desporto. Quanto à importância que é dada ao desporto, o país é jovem e quase toda a gente faz uma actividade física, pratica uma modalidade, ou praticou em um dado momento da sua vida. As pessoas têm essa sensibilidade, de que o desporto tem importância para a saúde e uma grande importância social naquilo que são os valores que pode transmitir às crianças, adolescentes e jovens adultos. Da parte também dos poderes públicos há também essa noção e há um investimento muito forte. Nos últimos 5 anos, o Orçamento do desporto aumentou exponencialmente, sobretudo com um investimento fortíssimo a nível de infra-estruturação desportiva - campos relvados, placas desportivas - mas também na aquisição e distribuição de materiais desportivos e naquilo que é a formação que se pretende, não só a nível de técnicos e treinadores, mas também dirigentes e pessoas ligadas ao desporto. Tudo isto para que Cabo Verde comece a ver que o desporto é muito mais do que entrar em campo e praticar uma modalidade. O desporto pode ter uma economia à volta e é essa transição, para além da importância social, que queremos.
Neste momento, atletas, alguns de nível internacional, treinam em más condições, acumulam trabalhos e não conseguem viver do desporto. Fala-se na economia do desporto, mas em Cabo Verde ele é… informal.
É amador, digamos assim. O desporto cabo-verdiano, a nível interno, é amador, muito longe ainda dos passos necessários para o profissionalismo. Até hoje, não trabalhamos verdadeiramente a temática da sustentabilidade do desporto, a temática à volta do seu modelo de financiamento, que é algo que estamos a fazer agora. Estamos a trabalhar com um consultor para uma proposta, um documento estratégico que desenhará o modelo de financiamento, onde virão bem identificadas as fontes, públicas e privadas, para a mobilização de recursos e é isso que poderá mudar esse status quo. Os atletas vão tendo cada vez melhores condições, por isso se investiu nas infra-estruturas e na compra de melhores materiais desportivos, mas é claro que estando, num nível amador, os atletas treinam e têm de trabalhar, de ter outra fonte de rendimento. Não é a situação ideal, mas isso acontece também em países desenvolvidos. Às vezes, olhamos apenas para aquilo que é o ‘topo’. Mas, por exemplo, no futebol, nem 5% dos atletas conseguem ter um rendimento que lhes permita garantir uma reforma independente e sabemos que há milhões de atletas a praticar futebol. A maioria são amadores e tem um outro trabalho. Portanto, é algo que deve ser visto com essa nuance, mas é óbvio que CV ainda tem muitos passos para dar.
Esse estudo para o financiamento do desporto de que falou. Vai haver uma mudança de paradigma da dependência do financiamento do Estado?
Por muito tempo ainda, se calhar, continuará muito dependente do Estado. Não temos a ilusão de que passaremos do 8 para o 80. O desporto, hoje, é dependente, em 80 ou 90%, do recurso público: governo central, autarquias, empresas e institutos públicos. Os privados fazem também o seu esforço, trabalham a nível da sua responsabilidade social, mas percebemos que o modelo é pouco atractivo para os privados. Esse modelo de financiamento, pretende também mudar o paradigma, mas eu não diria tanto. É ainda algo mais básico e estruturante, porque até hoje não se tinha desenhado o modelo. É como se estivéssemos agora a construir os alicerces onde se vai sustentar o nosso desporto.
E a questão da profissionalização dos atletas?
A profissionalização só chegará quando se conseguir ter esse modelo de financiamento, essa sustentabilidade. Quem paga aos atletas? Os clubes. E quando descemos ao nível do tecido de clubes, qual a realidade? Os clubes não têm receitas, praticamente, não têm um modelo de negócio estruturado ou desenhado que lhes permita saber onde mobilizar receitas, como ter essa previsibilidade e possibilidade de dizer: “eu posso ter atletas e pagar ´X´ durante uma época desportiva, porque vou buscar receitas a esta ou aquela fonte”. Não existe isso em Cabo Verde, não há nenhum clube que possa promover o profissionalismo. O mercado é um problema real de um país com a dimensão de Cabo Verde e o desporto não foge à regra. Vamos ver se o modelo de Cabo Verde será caminhar para esse profissionalismo ou será um amadorismo já muito melhor estruturado, em que os atletas, tal como se passa também em países desenvolvidos, têm de ter outra fonte de rendimento, mas têm condições muito melhores de prática de treino, mesmo na vertente técnica, como medicina desportiva e nutrição.
Como está o desporto escolar? Disse que há um grande investimento no desporto, mas aqui parece que houve um desinvestimento?
Sim, devo começar por concordar. Não diria desinvestimento, mas praticamente parou. Já tivemos um desporto escolar muito pujante, activo, e fomos vemos que isso ao longo dos anos foi caindo ou foi-se deixando de lado. Em breve, em despacho conjunto com o ministro da Educação, será nomeada uma equipa, que já tem estado a trabalhar nos bastidores, para relançamento do desporto escolar. O programa da retoma, que aprovámos no conselho de ministros (dia 11), também prevê uma verba específica para o desporto escolar e há uma vontade política clara do governo para relançarmos o desporto escolar. Devo adiantar que para este ano lectivo 2021/2022, já vamos ter o lançamento de jogos escolares a nível local e regional e no próximo ano lectivo já queremos ter competição nacional. Essa equipa vai estabelecer esses calendários e cronograma.
O desporto tem uma forte ligação à Educação, mas também, à Saúde, e Justiça. Há algum mecanismo para partilha de financiamento, na área de prevenção? Conseguem ir buscar verbas aos outros ministérios?
O Instituto de Desporto e Juventude (IDJ) está neste momento a trabalhar um programa de parcerias institucionais. Como é que os vários departamentos governamentais que lidam com esta temática podem colaborar a nível de mobilização de recursos para contribuir para o desporto. Porque, de facto, [há essa ligação]. Quando eu falava de conseguirmos perceber todo esse potencial económico do desporto, para além do seu potencial social, que é reconhecido, é também no sentido de perceber nessa ligação entre departamentos governamentais. Qual o impacto que o desporto tem na educação de um jovem, e que evitará depois que venha, por exemplo, cometer um crime a ir para a cadeia? Qual o impacto na Segurança Social? Na Saúde? Tudo isso, são argumentos que poderão justificar uma maior fatia de orçamento de Estado para o desporto. Porque estamos a investir, não é um gasto somente, é um investimento, que nos vai permitir a médio / longo prazo baixar os custos com a saúde, na justiça, e tudo isso deve ser visto dessa forma holística para que possamos realmente ter a verdadeira dimensão social e económica do desporto.
E sobre a retoma desportiva de que falava. O que está previsto?
O programa da retoma terá de alocar 45 mil contos à retoma desportiva: 35 mil contos para competições desportivas, para clubes e associações, e 10 mil contos destinados ao desporto escolar. O site do IDJ será apresentado em São Nicolau, no Fórum Nacional da Juventude. Tem diversas plataformas alojadas e uma dessas plataformas permitirá a candidatura de clubes e associações às verbas. O desporto escolar será trabalhado numa outra lógica, como é evidente. Vamos mobilizar 45 mil contos porque acreditamos que para haver retoma, o Estado deve entrar como principal agente. O Estado é o grande financiador do desporto, e se os clubes viviam em grandes dificuldades, depois da paragem, ainda pior. Portanto, terá de ser uma responsabilidade assumida pelo governo. Já estamos a mobilizar recursos e, se possível ainda esta semana, o IDJ estabelecerá protocolos com a ENAPOR. Estamos também a trabalhar com outras empresas públicas. O governo deve assumir a responsabilidade, porque não se trata apenas de competição desportiva. Mesmo sem falar do desporto escolar, trata-se também da responsabilidade social, daquilo que nós não conseguimos mensurar, mas sabemos que existe e que se agravou durante a pandemia: a desocupação dos jovens. Precisamos rapidamente de cobro a isso, voltar aos campos, ao jogo, e voltar à via onde estávamos, que é a via saudável, do desporto.
Entretanto, foi lançado o Censo do Desporto. Em que consiste este levantamento e para que serve?
Fizemos a apresentação do Censo [dia 12] e segue-se uma fase de formação dos inquiridores que vão para o terreno. Depois, 1 ou 2 meses para recolha de dados. Trata-se, em termos gerais, de ir ao terreno buscar e compilar dados sobre desporto. Quem pratica desporto, desagregar por género, por faixa etária, os clubes que existem, grupos informais, número de associações, dirigentes associativos, onde é que estão localizados. Não é um trabalho feito só por gente do desporto, estamos a trabalhar com o INE, com técnicos de estatística. É mostrar que à volta do desporto devemos ter as outras ciências que vão permitir que trabalhemos melhor o sector do desporto. Esse censo vai-nos permitir recolher esses dados, que nos irão elaborar a conta satélite do desporto.
E da Carta Desportiva Nacional.
Sim. Que é um instrumento também valioso. O desporto cabo-verdiano viveu muito do talento dos seus atletas, da abnegação e entrega dos seus dirigentes, de um Estado que sempre alocou recursos na medida do possível, tendo em conta o nosso parco Orçamento desde sempre, mas faltou estruturar, digamos criar alicerces que permitam essa sustentabilidade de que eu falo sempre. E não vamos conseguir dar sustentabilidade ao desporto se não trabalharmos com instrumentos científicos que nos permitiam a melhor elaboração de políticas públicas, perceber melhor o alvo de cada política e depois saber como executá-la para se atingir os resultados. Depois, a Conta Satélite vai permitir saber o que movimenta hoje o desporto em termos de recursos, que agentes económicos, qual é a contribuição do desporto para o PIB, qual é o número de empregos que conseguimos criar no sector e como vamos lá chegar. Eu, como ministro do desporto, não consigo neste momento dizer até onde vamos conseguir chegar em 10, 20, 30 anos. Preciso destes dados científicos. Os técnicos, em cada área, é que nos vão dizer: há esse tipo de negócios que podem ser feitos à volta do desporto, é necessária a capacitação em determinadas áreas dos dirigentes desportivos para que possam tirar partido disso… Não é algo que o político vai dizer, mas é algo em que o político poderá tomar a decisão, com base científica.
O IDJ, que temos vindo a referir, foi criado em 2020. Ao fim de um ano, marcado pela pandemia, que avaliação faz?
A formalização do IDJ foi em Março de 2020. Já vai com um ano e meio e devo dizer que com relativo sucesso, porque é o que os agentes do desporto reconhecem. Na parte da Juventude, o trabalho é sobretudo direccionado para as associações porque são pólos que agregam a juventude nos seus bairros. Os líderes associativos e comunitários estão nessas associações e nós trabalhamos directamente com elas. Neste momento, há uma boa dinâmica, dentro daquilo que definimos como a primeira prioridade que é a capacitação dos dirigentes associativos, para que possam ser líderes da transformação nas suas comunidades, com a parceria do IDJ, da parte do Estado. Temos um bom feedback. É sobretudo um trabalho de proximidade. O governo encara a questão da Juventude de forma transversal, portanto há várias temáticas da juventude que estão em outros departamentos governamentais. Nós devemos fazer esse trabalho complementar, mais social e mais ligado àquilo que é o capital humano que no dia-a-dia lida com os jovens dos bairros. Temos de conseguir chegar a esse nível que as outras instituições não conseguem e daí fazer essa ligação com as outras instituições.
As vossas prioridades estão alinhadas com os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)?
O desporto contribuirá para várias metas dos ODS. Vê-se de uma forma nítida que trabalhar o desporto é trabalhar também o impacto social que tem o desporto. Estamos perfeitamente alinhados. A nível da juventude trabalhamos com o nosso parceiro de excelência que é o PNUD, agora escritório conjunto, e praticamente tudo o que fazemos está ligado aos ODS. Temos vários programas e projectos para a juventude e estes têm sempre os ODS a balizá-los, até porque quando vamos mobilizar recursos [isso é tido em conta]. Grande parte do orçamento para os programas da juventude é mobilizado fora da acção do Estado, em instituições internacionais. Foi através do PNUD que chegamos ao YouthConnekt Africa (YCA). A iniciativa surgiu no Ruanda em 2012 e que quando propusemos a entrada de Cabo Verde, em 2018, tinha 6 países. Conseguimos avançar, hoje somos 24. Estivemos na cimeira da juventude africana do YCA em Accra, no mês de Outubro. Temos agora [16 e 17] o nosso fórum da juventude onde também trataremos de vários temas ligados aos ODS, sob o chapéu que foi também o tema da cimeira africana, e que são os desafios para a juventude pós-covid-19, porque os projectos estão a ser trabalhados nessa perspectiva: como empoderar, como criar condições para que os jovens sejam um agente da transformação que é precisa no pós covid-19. O continente africano é um continente jovem, e neste momento todas as instituições (públicas, privadas, da sociedade civil, fundações) estão direccionadas para “como aproveitar essa juventude?” É isso que o YCA trata. Em Novembro assinamos o documento YouthConnekt Cabo Verde, sob o chapéu da YCA, com o PNUD. É um documento para 3 anos bastante ambicioso porque pressupõe a mobilização de 2 milhões de dólares para todas as actividades que vamos realizar. É isto que vai balizando os programas da juventude, a nível do IDJ.
Fala-se mais em África no que toca ao desporto, devido às competições africanas. Mas na “Juventude” está-se também a promover uma ligação…
É fundamental. Só com a juventude vamos realmente estar integrados em Africa, não há outra forma. No dia da assinatura do YouthConnekt Cabo Verde, disse, na minha intervenção, que se fala há muito, em Cabo Verde, na integração em África. Assinaram-se documentos políticos, fazem-se várias conferências políticas, várias viagens de políticos a África, mas se não conseguirmos criar um quadro que mostre à nossa juventude que realmente as oportunidades estão em África, a juventude não se virará para África e o país vai continuar de costas voltadas para o continente. Não há integração africana sem os jovens cabo-verdianos decidirem que querem aproveitar as oportunidades em África. É por isso que desde os meus tempos de conselheiro do PM para a juventude comecei a trabalhar a adesão de Cabo Verde ao programa YCA, que está a conseguir trazer a juventude para a centralidade do financiamento, do acesso a recursos. Quando uma agência ou instituição financeira ajuda, normalmente falamos de projectos ligados à agricultura, à mobilização de água, energias renováveis. Mas nunca se trabalhou na abordagem, na perspectiva de programas de empoderamento de jovens. Através desse programa estamos a conseguir trazer essas agências de desenvolvimento para a temática da juventude. A cimeira YCA tem como principal patrocinador a agência (sul) Coreana de Cooperação Internacional, a KOICA. Já acertamos com o PNUD uma viagem para trabalharmos com o escritório da KOICA em Dakar, no sentido da sua entrada também em Cabo Verde, no financiamento de programas da Juventude. É essa transformação que queremos fazer. Aproveitar as oportunidades em África. Os Estados estão fortemente engajados, as fundações de multimilionários africanos financiam programas para a juventude. Em 2019, trouxemos o grande multimilionário, um filantropo, Tony Elumelu que é uma figura de topo do continente. Esteve em Cabo Verde no nosso I Fórum Nacional da Juventude. Em Accra, estivemos com a CEO da Tony Elumelu Foundation, dissemos-lhe que Cabo Verde vai fazer uma proposta, para que a Fundação desenhe um programa específico para Cabo Verde. É uma proposta, não sabemos se vamos conseguir, porque eles têm um programa aberto para empreendedores africanos e há jovens cabo-verdianos que já conseguem financiamento. Estamos a contribuir para essa divulgação, mas queremos junto dessas instituições vender a especificidade de Cabo Verde. Num país como o Gana, Senegal ou Nigéria, para ter um verdadeiro impacto, se calhar teriam de financiar milhões de jovens e disponibilizar milhões e milhões de dólares. Em Cabo Verde, não, pelo número da nossa população. Há uma abertura da parte deles. Brevemente, também em Dakar iremos trabalhar um primeiro contacto com a Fundação Mastercard que tem actuado sobretudo no domínio de financiamento de jovens ligados ao agronegócio e tem tido impacto em vários países de África. Queremos trazê-los para Cabo Verde. Portanto, sintetizando, essa integração em África só acontecerá se realmente os nossos jovens ao porem os olhos em África disserem, aí está a minha oportunidade. Só assim conseguiremos estar integrados.
E a juventude cabo-verdiana está preparada?
A abordagem que permitirá essa integração em África, e sermos competitivos tem uma base fundamental que é a reforma educativa. Ou seja, o objectivo é melhorar o perfil dos jovens para que possam ser competitivos tanto em Cabo Verde como em África e no Mundo. Um handicap que foi detectado é a nossa relação com o inglês e o francês. Por isso é que a reforma educativa reforçou as línguas estrangeiras. Daqui a 5, 10 anos, os jovens lançados no mercado terão que dominar as tecnologias de informação e pelo menos inglês e francês. Se não melhorarmos as línguas não vamos conseguir. É a tal abordagem transversal das políticas de juventude. Trabalhar a educação e formação dos jovens para lhes dar as ferramentas necessárias para conseguirem ser competitivos. E também acompanhar com fortes programas de empreendedorismo, de incentivo e promoção do empreendedorismo. Achamos que com isso temos um ecossistema que permitirá ao jovem dar o salto e ter ferramentas que estejam à medida das suas expectativas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1042 de 17 de Novembro de 2021.