“A combinação implacável do aumento da procura, com o açambarcamento trouxe uma pressão que não existia”

Paulo Lourenço, Embaixador de Portugal em Cabo Verde
Paulo Lourenço, Embaixador de Portugal em Cabo Verde

O Embaixador de Portugal em Cabo Verde reconhece os constrangimentos enfrentados pelos utentes do Centro Comum de Vistos, justificando as dificuldades acrescidas com um aumento significativo da procura e o açambarcamento digital de vagas. Paulo Lourenço também passa em revista a cooperação Portugal-Cabo Verde. 

Já teve oportunidade de visitar o Centro Comum de Vistos (CCV) e, inclusive, inaugurou o novo espaço do Centro. Qual é o diagnóstico que faz sobre esse serviço gerido por Portugal?

Este tem sido um assunto presente desde o primeiro momento em que assumi funções, porque rapidamente constatei que era uma matéria que estava a ter um efeito penalizador na vida dos cabo-verdianos e também, de certa forma, na própria imagem da operação consular. O meu primeiro acto oficial foi visitar o CCV e as novas instalações foram inauguradas pouco tempo depois de ter chegado. É patente que a operação consular, quer no CCV, quer na secção consular, no consulado da Embaixada de Portugal na Praia, precisa de ser melhorada em vários aspectos. Acho que isso já é muito claro. O diagnóstico está feito. É preciso, porém, lembrar a situação que, neste momento, estamos a viver no que ao CCV diz respeito. Portugal assumiu, e foi o único país que o quis fazer, a responsabilidade de gerir o CCV em circunstâncias bem diversas daquelas em que nos encontramos hoje. Estamos hoje diante de uma combinação implacável e inédita entre a procura – e aqui falo tanto do CCV, quanto dos vistos nacionais (os vistos de procura de trabalho já respondem por cerca de 80% dos vistos nacionais) – sem precedentes, em todas as categorias, a que se juntam, este ano, os mil pedidos de vistos da Jornada Mundial da Juventude, mais o início da campanha dos vistos de estudos (no ano passado demos 4 mil vistos de estudos). A combinação implacável e inédita desse aumento da procura, com o fenómeno novo do açambarcamento digital, trouxe para os serviços, nomeadamente o CCV, uma pressão que simplesmente não existia.

Dê-nos alguns números…

Os números são muito importantes. Desde 1 de Janeiro, já entraram no CCV cerca de 7.500 pedidos de visto, já foram concedidos cerca de 5.000 vistos e foram recusados pouco mais de 1.800. Isto é uma escala que não tem precedentes e as pessoas têm que entender que tem, inevitavelmente, um efeito de cascata e de afunilamento sobre quem tem que gerir, no essencial, os mesmos recursos. Isto obriga a fazer adaptações e é isso que as equipas têm estado a fazer, mas as adaptações levam tempo. É essa a razão pela qual lançámos, no CCV da Praia, esse atendimento diário, especial e presencial, que não passa por obter vaga prévia, para os titulares de vistos de múltiplas entradas que estejam com vistos para caducar ou recém-caducados, justamente para criar uma via verde. Apraz-me dizer que esta experiência piloto está a resultar extremamente bem e a nossa intenção é reforçá-la e levá-la para as presenças consulares. Não estamos de braços cruzados. O Ministério dos Negócios Estrangeiros em Portugal tem estado a trabalhar com uma empresa no sentido de desenvolver uma solução tecnológica para inibir o açambarcamento digital. Em segundo lugar, estamos a fazer uma campanha de informação, mesmo aquela mais básica. Quando temos uma taxa de indeferimento de pedidos de visto, no CCV, de 25 a 30%, é porque continua a haver um enorme défice de informação. Vamos lançar em breve um podcast semanal na Rádio de Cabo Verde, em que o cônsul vai responder a perguntas dos ouvintes. Estamos a envolver os municípios, para que criem uma desk para ajudar os cabo-verdianos antes de iniciarem os seus processos para pedidos de vistos. Por fim, melhorar o atendimento. As pessoas têm razão quando dizem que não conseguem resposta aos e-mails ou não conseguem que alguém atenda o telefone. Também tem que ver com o assoberbamento dos funcionários, mas nós estamos a tentar corrigir isso. As pessoas têm razão, é difícil orientarem-se sem terem uma orientação por parte do CCV.

Em relação ao açambarcamento de vagas, encontrámos sítios a cobrar 15 mil a 30 mil escudos por uma vaga. Isto não resulta também da dificuldade que as pessoas têm de aceder ao serviço? Ou seja, se o agendamento directo por parte das pessoas fosse mais fácil, isso não esvaziaria a necessidade de recorrer a este tipo de expedientes?

É um ciclo vicioso. Estou absolutamente consciente da enorme dificuldade com que os cabo-verdianos se debatem para conseguir uma vaga. Esse é, aliás, o principal ‘calcanhar de Aquiles’, que acaba por empurrar as pessoas a procurar soluções por parte de agentes intermediários, sem se darem conta se os agentes intermediários vão buscar uma vaga por meios legítimos ou ilegítimos. Percebo que o desespero possa levar a fazê-lo, mas cada vez que um agente intermediário distribui uma vaga, a partir de uma captura massiva, o caminho e o espaço para o cabo-verdiano seguinte obter um visto fica cada vez mais pequeno.

Frisou que existe uma grande percentagem de recusa. Isto significa o quê? Que há um grande número de pessoas à procura de um visto Schengen que pretende usá-lo de forma distinta do seu âmbito?

A sua pergunta é pertinente. Não querendo estar aqui a arriscar conclusões definitivas sobre uma matéria que requereria uma análise mais detalhada, acho que poderia dizer-lhe, de forma razoavelmente segura, que teremos aqui, no fundo, dois tipos de ocorrências. A primeira, é que as pessoas não preparam rigorosamente bem a sua documentação. Mas não é muito difícil adivinhar, e acho que não arriscaria muito ao dizer que, obviamente, parte desta elevada taxa de indeferimento tenha a ver com o desvio de finalidade subjacente ao pedido de visto. É mais ou menos evidente para nós que parte desta ‘taxa de mortalidade’ dos pedidos de visto tenha que ver com o facto de estarem instruídos de uma forma que, de alguma forma, trai aquilo que é a finalidade da atribuição de um visto de curta duração. Não há comparação entre os 25-30% de taxa de indeferimento [no CCV], com os 2.9% de taxa de indeferimento que temos actualmente nos vistos nacionais, nomeadamente de trabalho. É uma discrepância demasiado estridente para poder simplesmente ser atribuída a razões que têm que ver com a instrução administrativa do processo.

É possível reforçar os recursos humanos ao nível do CCV? Isso vai ser feito?

Em Abril, no momento em que foram inauguradas as novas instalações, também foi feito o reforço dos funcionários, mas uma coisa são os funcionários que podemos contratar localmente, e temos vindo a fazê-lo. O grande desafio prende-se com uma competência específica, que tem de ser obrigatoriamente exercida por um expatriado habilitado para o efeito, que é o analista de vistos. São recursos muito especializados, pessoas que têm a responsabilidade de pôr o seu parecer final em cada pedido de visto. Isto hoje é uma moeda raríssima. O CCV na cidade da Praia não é o único CCV operado por Portugal e não é certamente a única embaixada que está desde a primeira hora a pedir o reforço dos analistas de vistos. Tudo isto já seria um desafio com uma taxa de esforço normal, mas com este aumento exponencial da procura, torna-se muito mais difícil. Não abdicamos de pedir mais analistas e certamente vamos ter mais analistas, mas enquanto isso não acontece, ou mesma que aconteça, como é nossa esperança, é fundamental que criemos todas as adaptações no funcionamento do CCV de forma a torná-lo capaz de responder a este aumento de procura, combinado com a questão da captura digital de vagas.

Como é que olha para a relação Portugal-Cabo Verde e para o trabalho que o seu país vai desenvolvendo por cá?

Portugal e Cabo Verde têm hoje numa relação absolutamente excepcional. Eu não conheço, e ando nisto há algum tempo, outro país que tenha com Portugal a relação de cumplicidade, proximidade e intensidade que Cabo Verde tem. Isto é de facto notável e um activo que temos que saber aproveitar. Em todas estas ilhas há cooperação portuguesa e é uma cooperação que é, literalmente, todo terreno, está em todo lado, está de tal forma presente que às vezes quase que não a distinguimos, porque nos habituámos a conviver com ela, como se fizesse parte do quotidiano dos cabo-verdianos. É uma cooperação na qual eu tenho um enorme orgulho. Este programa estratégico de cooperação que estamos a executar corresponde a um envelope de 95 milhões de euros, distribuídos entre 2022 e 2026. É um pacote significativo, que aposta no capital humano, na educação, formação e capacitação, privilegiando aquilo que são as áreas sociais, a saúde, justiça, erradicação da pobreza, igualdade de género, mas também áreas importantes que entraram na matriz da cooperação, como a acção climática e a comunicação social. Cabo Verde está numa fase de transição, com esta grande aposta na economia azul, na transição climática, nas energias renováveis, no digital e até no turismo. Acho francamente que há uma enorme oportunidade para as empresas portuguesas em Cabo Verde, justamente em resultado desta transição de paradigma. Portugal sempre esteve presente neste país, a nível das grandes e das pequenas empresas, o que acho que falta é saber interpretar este momento de mudança, agora com a mais valia de haver financiamento que antes não estava disponível, justamente por conta das novas áreas de aposta. Há novas fontes de financiamento, algumas portuguesas, quer no âmbito da conversão de dívida, quer no âmbito do compacto lusófono. Cabo Verde nunca reuniu condições tão favoráveis para atrair investimento privado. Estamos muito apostados em trazer uma nova vaga de investimento português.

Sobre a conversão da dívida cabo-verdiana a Portugal em financiamento climático. Há aqui um sinal interessante, para lá da realidade estrita de Cabo Verde, numa altura em que se fala da necessidade de mobilizar recursos para fazer face às mudanças climáticas.

Fiz questão de ir a Lisboa para estar presente na assinatura do memorando, porque acho que é um marco histórico. Acho que esta fórmula que foi encontrada vai, provavelmente, abrir caminho a que esta solução possa ser replicada por outros países. É uma solução, diria, inédita, que tem vindo a suscitar muito interesse por parte das instituições financeiras internacionais e por parte de parceiros de Cabo Verde. Inicialmente, é uma tranche de 12 milhões de euros, mas que pode ser estendida até ao total das maturidades, cerca de 140 milhões de euros. Obviamente que isso vai depender da execução desta primeira tranche, mas tudo indica que será para a extensão completa das maturidades da dívida. Isto também é um exemplo para o mundo.

Para quando o novo Centro Cultural Português no Mindelo?

Mindelo é para nós uma prioridade diplomática, quer através do polo do Centro Cultural Português, quer através da presença consular. Estamos a reforçar a nossa presença no Mindelo, mas esta dimensão cultural é particularmente importante. Quando aqui cheguei, dei conta que a criação de um novo Centro Cultural tinha morrido na praia. O projecto estava pronto para ser executado e acabou por ser sacrificado por conta de uma outra decisão que foi tomada. A verdade é que o projecto, neste momento, vai ter que ser refeito. Já reiniciei contactos com o senhor presidente da Câmara Municipal de São Vicente, dando-lhe conta da intenção inequívoca do Estado português em reiniciar este processo, de forma a que possamos ter no Mindelo um Centro Cultural e não apenas um polo. Isto, a par da ambição, esta mais avançada, que prosseguirá a breve trecho, de criarmos um polo da Escola Portuguesa de Cabo Verde.

Sobre o reforço de meios a nível da presença consular…

Como sabe, o Escritório Consular no Mindelo está longe de poder fazer, por razões que têm que ver com o seu estatuto e a sua natureza, todos os actos consulares e, portanto, existem limitações. Preferiria ter uma presença maior, mas temos que gerir os recursos que temos. Um dos objectivos que temos é que a empresa que faz aqui na Praia a triagem dos pedidos de vistos nacionais possa vir a fazer essa triagem também em São Vicente. Estamos a negociar. O nosso objectivo é ir reforçando aos poucos o Escritório Consular, de forma a que os mindelenses possam recorrer a ele para um maior número de actos consulares.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1128 de 12 de Julho de 2023. 

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Autoria:Entrevistado por Nuno Andrade Ferreira,16 jul 2023 15:48

Editado porEdisângela Tavares  em  10 abr 2024 23:28

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