Uma tormenta chamada CCV

PorNuno Andrade Ferreira*,15 jul 2023 10:01

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Aumento da procura por vistos Schengen deixa utentes desesperados. Partidos pedem atenção ao problema e governo acredita na boa-vontade das autoridades portuguesas.

São antigos os relatos sobre as dificuldades enfrentadas pelos cabo-verdianos no processo de obtenção de um visto para viajar para um dos 19 países do espaço Schengen representados pelo Centro Comum de Vistos (CCV). A situação agravou-se no último ano, em simultâneo com uma crescente procura pelos serviços.

Antes, obter um visto Schengen implicava reunir um sem número de documentos e conseguir, por A+B, comprovar o objectivo da viagem e a existência de meios de subsistência. Hoje, o drama alargou-se ao simples acto de obter uma vaga para entregar o processo.

Natália, nome fictício, esteve de Novembro de 2022 a Maio deste ano atrás de uma vaga para si e outra para o marido. Entregues os processos, espera há dois meses por resposta.

“Já estamos em Julho, não disseram nada. Queria saber o que se passa, queria ter uma resposta. Já esperei tanto e nós queremos viajar neste verão. Temos muito trabalho para conseguir um visto”, suspira.

Humberto tentou uma, outra, mais uma e ainda outra vez.

“Ficámos à espera da abertura de vagas, só que quando o processo é aberto, talvez haja muito congestionamento e há sempre muita dificuldade. Às vezes, começas a fazer o processo, quando te aproximas do fim, tens de tentar de novo, porque há quedas na ligação”, recorda.

Margarida tem finalmente o seu visto, depois de ver o passaporte retido durante mais de 40 dias. A viagem, essa, teve de ser adiada porque, à data da reserva, nenhum sinal do CCV.

“Os bilhetes ficam mais caros quando se aproxima a data da viagem e as pessoas, na expectativa de que lhes vão conceder o visto, compram as passagens. Depois, há quem perca o dinheiro, outras que têm que adiar, com mais custos”, explica.

O crescimento de pedidos de visto tem-se acentuado nos últimos meses, com mais de sete mil pedidos instruídos nos primeiros meses do ano (ver entrevista ao embaixador de Portugal). As autoridades portuguesas dão conta desse aumento e alertam para a existência de açambarcamento de vagas, por parte de agentes não autorizados.

O Expresso das Ilhas obteve informações de intermediários que cobram 10, 15 ou até 30 mil escudos por uma vaga no agendamento. Portugal diz estar a desenvolver um sistema electrónico de combate ao açambarcamento de vagas.

“Situação lamentável”

Para o antigo embaixador cabo-verdiano, Fernando Wahnon, a situação a que são submetidos os cabo-verdianos que tentam agendar um pedido para obtenção de visto Schengen, através do CCV, é “lamentável”. O ex-diplomata não tem dúvidas de que o problema se coloca fundamentalmente a nível da capacidade de resposta, insuficiente para o nível de procura e desajustada de um país arquipelágico.

“Esta questão, tal como acontece, é, a meu ver, e como cidadão, lamentável, porque não parece ser aceitável que as pessoas tenham de fazer as filas que podemos presenciar e que tenham toda esta dificuldade. Talvez a própria estrutura não seja feita para um país arquipelágico, porque se o território cabo-verdiano fosse contínuo, as coisas poderiam ficar facilitadas”, refere.

Wahnon defende um papel mais interventivo do governo, no sentido de efectivar a facilitação dos processos de aquisição de vistos.

Já o jurista e analista político, João Silvestre Alvarenga, diz que a situação de “humilhação” a que os utentes são sujeitos coloca em causa a dignidade das pessoas.

“Demonstra que há uma falha de natureza administrativa. Se há esse discurso [de facilitação], se há na lei, efectivamente, essa abertura de possibilidade de vistos para diferentes categorias, não deveria haver, em paralelo ou em conjunto, uma espécie de sistema de constrangimento”, menciona.

Alvarenga considera que a questão está no plano da operacionalização.

“Tem tudo a ver com a governação do país”

Os partidos políticos pronunciaram-se sobre o assunto. Na oposição, pede-se diálogo com Portugal. João do Carmo, do PAICV, disse recentemente à Rádio Morabeza (RM) que se está perante um caso de “injúria” e “humilhação”.

“Não nos venham dizer que se trata de um assunto que não tem nada a ver com o governo, que é assunto de um outro Estado soberano, porque não é verdade, tem tudo a ver com a governação do país. É o espelho do governo que temos. Os cabo-verdianos não podem ser submetidos a esta grave humilhação num serviço que deveria ser de excelência”, preconiza.

O partido apela a um trabalho diplomático sério, para que os cabo-verdianos possam ser isentos da obrigatoriedade de visto para estadias curtas na União Europeia.

Também na RM, Anilton Andrade, da UCID, disse não compreender as falhas existentes.

“Cabo Verde faz parte da CPLP, tem parceria especial com a União Europeia, daí que se torna imperioso encontrar mecanismos para permitir um melhor acesso aos serviços consulares”, apela.

Do lado do MpD, Helena Fortes enalteceu na RM a disponibilidade das autoridades consulares portuguesas para resolverem os problemas em torno do CCV. A dirigente ‘ventoinha’ acredita que a abertura de um polo permanente do Centro Comum de Vistos em São Vicente ajudaria a escoar os pedidos com origem nas ilhas a norte.

“Temos de considerar que as pessoas que pedem visto em São Vicente são os nossos irmãos de Santo Antão, gente de São Vicente, São Nicolau, Sal e também os nossos irmãos da costa de África. Temos conhecimento e temos a certeza de que precisamos de um polo na zona norte”, ambiciona.

No parlamento, onde a questão da mobilidade foi recentemente suscitada, o secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro, Lourenço Lopes, chamou a atenção para o facto de a situação mexer com as relações externas do arquipélago, razão pela qual deve ser tratada com parcimónia.

“Sobretudo, quando estamos a falar de um parceiro estratégico, de primeira hora, como é Portugal. Estou convencido que há interesse por parte do governo de Cabo Verde, e há interesse por parte do governo de Portugal, para que haja uma melhoria significativa naquilo que é o atendimento que se faz aos cidadãos cabo-verdianos”, confia.

Também o presidente da Assembleia Nacional anunciou, no final de Junho, a abertura expressa pela Embaixada de Portugal para promover um encontro com os deputados das diferentes forças políticas a fim de discutir o assunto.

*com Fretson Rocha e Lourdes Fortes

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1128 de 12 de Julho de 2023.

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira*,15 jul 2023 10:01

Editado porEdisângela Tavares  em  10 abr 2024 23:28

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