Maslow, esfregaria as mãos de contente. Confirmarias a sua teoria, posteriormente contestada, que existiria uma hierarquia de necessidades e, enquanto as da base, fisiológicas, (comida, água, sono) não fossem supridas, os indivíduos não pensariam nas restantes (autoestima, autorrealização, moralidade).
A questão essencial para mim nem é a de perceber a lógica pessoal com que cada um hierarquiza os seus valores e necessidades. Mas sim, de compreender porque se tem de escolher entre o pão e a liberdade, se o legal e o moral é ter-se ambas as coisas. Em democracia não será isso o expetável? Para ter pão (emprego) terei de abdicar da minha massa encefálica? Da minha consciência? Da fala? Afinal os únicos atributos que me diferenciam dos restantes animais.
E, como a precariedade moral não tem teto, na maioria das vezes sacrifica-se a liberdade, mas em contrapartida não se assegura o pão. Que é o mesmo que o incumprimento com o “acordado”. Fica-se escravo na mesma, desta feita de uma fantasia. Refém de uma ilusão, uma esperança traduzida numa expetativa de emprego que poderá vir, ou não, a concretizar-se. Mas, que é mais reconfortante que o medo, a incerteza e a insegurança da falta de rendimentos. Sendo assim, entrega-se passivamente os direitos e liberdades entrando, com isso, no torpe jogo do poder político.
Para que esta asquerosa coreografia resulte, e não andem dançarinos desajeitados para a direita quando as ordens oficiais ditaram para a esquerda, há que apostar na sincronização: monopolização de postos de trabalho e dos cargos públicos.
Não tem o que saber. A lógica é a do mercado. Se o emprego é um recurso escasso, logo, é o mais valorizado. Se a larga maioria, para não dizer todos nós, precisa dele para viver, então convém que esteja nas mãos de uma minoria (governo) com capacidade de decisão na distribuição desse recurso.
A mão do chicote e dos castigos arbitrários de outrora, é substituída pela mão que arbitrariamente dá ou retira o emprego. O lugar das torturas corporais, é substituído por violência psicológica, desconfiança e uma generosa pitada de medo. Muito medo. Sim, porque o medo e o mal são irmãos siameses, nenhum sobrevive sem a presença do outro. Intacta, permanece a condição de escravo. Outrora sem direitos, agora com direitos; engalanada constituição de um Estado democrático (e como se vangloria disso), mas sem fazer bom uso deles. É tipo ter-se uma cama bonita, macia, lençóis a cheirar a lavados e continuar a deitar-se no chão duro.
O primeiro direito a ser espezinhado é a liberdade de expressão que funciona como uma espécie de “direito tampão” que protege os restantes direitos. À semelhança do Estado de direito, a liberdade de expressão serve para reforçar o braço do mais fraco contra o mais forte.
A liberdade de expressão impacienta os tiranos. O seu incómodo é proporcional à sua importância para a democracia. Sabem que ela é imprescindível para verificar e controlar os atos do governo. Permite aproximar-se da verdade, “do direito de saber”. E, por arrasto, possibilita a existência de melhores governos. Reduz a corrupção, promove a transparência governativa, acalma os apetites de abuso de poder, para além de estimular o debate maduro, uma massa crítica forte e a circulação de novas ideias e soluções. Já viram coisa mais perigosa?
Não é novidade que um regime ditatorial encare a restrição à informação, e a propagação de um discurso único (o seu) como fundamento essencial do seu poder. Daí atuar-se ferozmente no silenciamento de vozes contraditórias. Veda-se o acesso à informação e aposta-se em todas as formas de violência como forma de manutenção do poder.
Foi num contexto desse género, que Chico Buarque e Gilberto Gil criaram a música de protesto “Cálice” (cale-se).Pai, afaste de mim esse cálice (cale-se).Símbolo de resistência. Denúncia e crítica social da opressão da ditadura militar vivida na época no Brasil. O ambiente de censura era de tal forma irrespirável que, à semelhança de outros países, os artistas recorreram a metáforas para contestar o regime.
Felizmente, não nos debatemos (ainda) com uma ditadura. Mas o exercício da liberdade em Cabo verde, ainda não passa de uma promessa num papel. Daí o valor da liberdade ser tão subvalorizado e tratado até com algum preconceito.
Maquilham tão bem o rosto da realidade que esconde todas as suas imperfeições. O discurso único e a intolerância a vozes divergentes proporcionam isso: Ilusões. Farsas. Devaneios. Inverdades.
O exercício da liberdade de expressão serve, entre muitas outras coisas boas, para “lavar a cara” do país. É sem máscaras e outros artifícios que se conversa direito. Olhando olho no olho da realidade. Esmiuçando-a até ao osso. E atuando no que vai mal.
Bebendo todos docilmente desse cálice (cale-se), adia-se a possibilidade de saber quem realmente somos, o que se anda a fazer ao país e onde se pretende chegar. Literalmente falando, vivemos embriagados!
Mindelo,14.08.2023
Antónia Môsso