A notícia marcou a última semana. Uma piroga com 38 sobreviventes foi avistada por um barco de pesca espanhol às primeiras horas de 14 de Agosto, tendo o grupo sido resgatado e transportado até ao porto da Palmeira, na ilha do Sal.
Os migrantes, na sua maioria senegaleses, saíram da costa daquele país continental no início de Julho e passaram mais de um mês à deriva, até serem salvos. Terão sido 101 aqueles que iniciaram viagem, mas muitos perderam a vida pelo caminho, sucumbindo às condições extremas da travessia. Uma outra vítima acabou por morrer já a bordo do navio de resgate.
Sobre o caso, a ministra da Saúde, Filomena Gonçalves, destacou, horas após o desembarque, que a obrigação imediata passava por “abrir os braços”. Já o ministro da Administração Interna, Paulo Rocha, reiterou que o Estado nunca deixará de dar o apoio necessário a quem dele necessite, mas sem comprometer a segurança fronteiriça.
“Continuaremos a prestar assistência humanitária, continuaremos a prestar todos os cuidados que do ponto de vista de saúde se impuserem até à completa recuperação, mas temos as nossas preocupações fronteiriças e as autoridades nacionais irão tomar todas as medidas que se impuserem no sentido de garantir a segurança dos que vêm, mas também das nossas fronteiras”, explicou.
À chegada a Cabo Verde, os migrantes foram acolhidos pelas autoridades nacionais. 16 tiveram de receber cuidados hospitalares. Seguiram-se as formalidades para o repatriamento, consumado esta segunda-feira (21), em voo militar senegalês. Apenas um migrante continua no país, internado no Hospital Agostinho Neto, com problemas renais.
Sete corpos foram recuperados e enterrados “com dignidade”, também esta segunda-feira, no cemitério de Pedra de Lume.
Esta não foi a primeira vez que embarcações com migrantes acabaram em Cabo Verde uma viagem que teria outro destino, nomeadamente as Canárias, o que para o presidente da Cruz Vermelha nacional (CECV), Arlindo de Carvalho, obriga à criação de “soluções conjuntas”.
“Creio que devemos fazer uma reflexão mais profunda ao nível do sistema de protecção civil que existe, se o sistema actual vem respondendo ou não. Muitas vezes, encontramos dificuldades, sobretudo na interpretação dos papéis. Qual é a responsabilidade de cada um? O que fazer durante a situação?”, releva.
“Também temos de ter em conta que, além dos meios para saúde, educação, salvar vidas, comunicação e outras necessidades, temos de ter em conta o espaço [para o acolhimento]”, acrescenta.
Em Janeiro deste ano, uma piroga chegou à Boa Vista com 90 passageiros. A bordo estavam dois cadáveres. Meses antes, em Novembro de 2022, 66 imigrantes senegaleses deram à costa na ilha do Sal.
A presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos e Cidadania (CNDHC), Eurídice Mascarenhas, recomenda atenção.
“É com muita preocupação que olhamos para este fenómeno. É uma tragédia o que está a acontecer recentemente, vem já de algum tempo, mas com alguma incidência nos últimos anos. No século em que nos encontramos, é um dos fenómenos mais críticos e que merece uma atenção de todos”, avalia.
“É preciso estarmos atentos a todo o fenómeno mundial e haver parcerias para que existam articulações, porque o trabalho é a nível mundial. Não é um trabalho que Cabo Verde poderá fazer sozinho. Estamos a falar de vidas humanas”, lembra.
Ao evocar os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, Eurídice Mascarenhas condena os retrocessos mundiais no cumprimento de alguns direitos humanitários.
Na mesma linha, a representante da Organização Internacional de Migrações (OIM) em Cabo Verde, Quelita Gonçalves, defende o fim da migração irregular, como forma de colocar um ‘ponto final’ a verdadeiras “jornadas migratórias mortais”.
“Entendemos que a solução passa pela existência de programas de migração laboral, com reforço do sistema de emissão de vistos para procura de trabalho. Também passa por acelerarmos o processo de desenvolvimento nesses países [emissores]. Perguntamos sempre: porque é que as pessoas vão? Porque é que os cabo-verdianos deixam Cabo Verde para ir aventurar-se na Europa, Estados Unidos ou em outras paragens? Porque é que os migrantes da nossa região e do continente, de forma geral, e de outras paragens, se aventuram numa jornada tão traumática como esta para chegarem à Europa?”, questiona.
A representante da OIM recorda que os migrantes não são criminosos, apenas “pessoas com sonhos”.
De Cabo Verde, enquanto destino não desejado das arriscadas jornadas atlânticas, ninguém espera que seja capaz de lidar sozinho com um fenómeno que é global. Apesar disso, a necessidade de uma reorganização (ou, pelo menos, reorientação) institucional interna é sugerida pelo presidente da CECV.
“As Nações Unidas têm uma agência especializada para a matéria, a União Africana tem os seus dispositivos, a CEDEAO tem as suas responsabilidades, creio que é preciso trabalhar mais, temos de ter um projecto nacional que integre as responsabilidades do Estado enquanto tal, da sociedade civil e, sobretudo, das instituições”, apela.
Também o presidente da Plataforma das Comunidades Africanas, José Viana, reconhece as dificuldades de um pequeno país insular. Contudo, entende que podem ser criados mecanismos adequados para lidar com o problema.
“Nós, como país de solidariedade e promoção dos direitos humanos, deveríamos realmente começar a pensar nisso, começar a ter mecanismos que são apropriados para, pelo menos, amenizar a dor e o sofrimento dessas pessoas”, refere, citado pela VOA.
Da OIM, um apelo aos parceiros, para que ajudem Cabo Verde a montar um sistema de monitorização que permita salvar vidas.
“Sabemos da complexidade que é monitorizar um oceano. Todos sabemos da dificuldade que é e do investimento que requer. Por isso, estamos a fazer este apelo, sobretudo aos parceiros de Cabo Verde, para que possam implementar um sistema robusto que possa identificar e salvar vidas a nível do mar”, desafia Quelita Gonçalves.
Devemos esperar o inesperado. Não é possível prever quantas mais vezes barcos com migrantes darão à costa das ilhas. Não conseguimos antecipar daqui por quantos meses (semanas ou dias) se repetirão as imagens da última semana. Sem navios-patrulha vocacionados para este tipo de missões, sem meios aéreos de vigilância, nunca saberemos quantas outras embarcações ficarão sem receber a ajuda de que necessitam.
O professor de Relações Internacionais, Pedro Matos, alerta para a dimensão do que está em causa e também aposta na cooperação, com envolvimento de instituições multilaterais, países europeus e de origem dos migrantes.
“É certo que somos um país pequeno, mas isso não pode ser a razão de não criarmos políticas e estruturas eficazes, estruturas específicas para o atendimento dessas pessoas que chegam”, coloca.
O também analista do programa “Do Meu País Vê-se o Mundo”, da Rádio Morabeza, lembra a existência de conflitos, pobreza extra, perseguições políticas e outras causas que estão na origem dos movimentos migratórios.
“Cabe a Cabo verde usar da sua diplomacia, usar também a sua habilidade de negociação e resolver esse problema a nível multilateral”, ambiciona.
As travessias do oceano Atlântico têm aumentado desde 2019, coincidindo com o reforço das patrulhas no Mediterrâneo. De acordo com números da organização não-governamental espanhola, Caminando Fronteras, durante o ano de 2022, pelo menos 2.390 pessoas (das quais 288 mulheres e 101 crianças) terão morrido a tentar chegar à Espanha, pelas várias vias atlânticas possíveis e que levam os migrantes à região de Andaluzia, a um dos enclaves espanhóis em África (Isla de Mar, Isla de Tierra, Melilla) ou às Canárias. A Rota das Canárias, é a mais mortífera, com 1.874 mortos registados só no ano passado.
*Com Ailson Martins, Fretson Rocha e Lourdes Fortes
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1134 de 23 de Agosto de 2023.