Falando a nível pessoal sobre esta experiência no Tribunal da CEDEAO. Como foi o processo?
Em 2018 recebi um convite do ministro da Integração Regional, na altura Júlio Herbert, que me desfiou a integrar uma shortlist, com 3 candidatos, que o governo teria de apresentar para o preenchimento de uma posição que tinha sido atribuída ao país no Tribunal de Justiça da CEDEAO. Hesitei um pouco, não estava nos meus planos sair de Cabo Verde e ir para um país desconhecido. Eu era juíza cível do Tribunal da Praia há uns 15 anos…
Também já fora ministra da Justiça.
Sim, mas há muito tempo, em 2000. Então, como dizia, hesitei, pedi ao ministro tempo para pensar, porque estaria sozinha longe de casa, mas ele incentivou-me bastante. Disse-me que estaria na região, que tudo iria correr bem. Também recebi motivação por parte de outras pessoas, falei com a minha família e acabei por aceitar. Entrei na lista, com mais dois colegas magistrados – eu era a única mulher – e comecei a estudar, a preparar-me para a entrevista. Levei aquilo a sério. Acabei por ser a seleccionada, entre os três, e assumi funções em Agosto de 2018.
Havia mais cabo-verdianos no staff do Tribunal da CEDEAO?
Encontrei um tradutor em regime de contrato. Por pedido meu, o contrato foi renovado, mas por questões pessoais ele acabou por sair. Foi o único cabo-verdiano que encontrei no Tribunal de Justiça da CEDEAO.
O Tribunal da CEDEAO enfrenta a fraca execução dos acórdãos por parte dos Estados-membros. Face a esse desafio, consegue ter algum impacto na sub-região?
Ainda que haja esse desafio, um acórdão do Tribunal de Justiça da CEDEAO, ainda que não executado no Estado-Membro, tem impacto. Na sub-região africana da CEDEAO encontramos várias Organizações Não Governamentais activistas dos Direitos Humanos que têm voz, e que, portanto, são capazes de replicar as decisões do Tribunal, a nível regional, de uma forma rápida. Acabam por ser, em matéria de Direitos Humanos, um grande parceiro do Tribunal, na divulgação do que este faz, e muitas vezes são também essas ONG que trazem os casos a Tribunal, em representação das vítimas. Muitos Estados acatam as nossas sentenças e orientações. A Nigéria, por exemplo, que é um país com grande – ou mesmo a maior – relevância na região, é o país que mais cumpre as decisões do Tribunal, mas não é só. A percepção que se tem é que apenas 30 e pouco por cento das decisões são cumpridas, mas isso, às vezes, tem a ver com vários outros factores. Por exemplo, a questão financeira. Quando o Tribunal conclui pela violação dos Direitos Humanos, normalmente é para compensar a vítima. Entretanto, os próprios Estados-membros começaram a abordar ou a reclamar em sede própria, junto ao Tribunal, para se repensarem os valores das indemnizações porque muitos Estados não conseguem cumprir esses valores. É uma situação em que o próprio Tribunal começou a ter em conta na fixação no valor das indemnizações.
Toda a Integração Regional tem vários desafios. Que outros desafios destacaria, quanto ao Tribunal e sua utilidade?
Tem vários desafios, mas dentro da perspectiva africana, a integração é um objectivo levado a sério. Há um grande empenho dos Estados em conseguirem se integrar, e vão-se conseguindo ganhos. Não há só desafios. Sobre o Tribunal, em si, foi criado pelos Estados-membros, mas os mesmos Estados que criaram o Tribunal por vezes têm resistência em acatar as suas decisões, o que é normal. Muitas vezes porque consideram que a decisão é injusta, ou porque consideram que a decisão é uma interferência nos seus assuntos nacionais. Podem não a cumprir, é uma opção, porque os Estados são soberanos. Porém, isso não constitui, diria, um óbice ao funcionamento do Tribunal, porque pelo facto de existir a jurisprudência do Tribunal e ela ser acessível às pessoas, cria-se aquele movimento que se quer, que é a promoção [dos Direitos]. Promove-se essencialmente uma cultura de respeito pelos direitos das pessoas, porque os Direitos Humanos não são só um assunto do Estado. É um assunto do cidadão em si, que tem de aprender a ver o Outro e a respeitar o que é o seu direito básico. Então, tem este impacto. E o Tribunal é extremamente respeitado na região, mesmo os Estados que não cumpram as suas decisões, acabam muitas vezes por alterar a sua legislação conforme recomendado na decisão. Ou seja, não cumpriu relativamente ao ofendido, em si, mas acabou por alterar a sua legislação seguindo a recomendação que o Tribunal lhe fazia em decisão. Se nos colocarmos dentro da região, as coisas não têm a perspectiva que nós, daqui de Cabo Verde, lhes queremos dar.
Voltando ao lado pessoal. Como foi, então, viver em Abuja (Nigéria) e trabalhar no Tribunal da CEDEAO, junto de vários países?
Foi um grande desafio. Eu conhecia muito pouco da região, acho que nunca tinha passado do Senegal. Chegar e fixar a minha residência em Abuja foi uma grande experiência, porque permitiu-me conhecer um pouco do país em si e, além disso, no Tribunal, conviver com um staff de provenientes de toda a região. Isso obriga-nos a lidar com várias culturas, línguas e pessoas com estilos de vida [diferentes], mas que no fundo acabam por confluir. As pessoas entendem que, efectivamente, temos muito em comum, então não foi difícil gerir anglófonos e francófonos no mesmo espaço e trabalhar com eles. Nós, lusófonos, fomos muito bem acolhidos. Além desta convivência, isto permitiu-nos conhecer a região, o que é outro ganho, e mudar a nossa perspectiva da visão do continente.
Muitos países da sub-região têm uma visão institucional e organizacional tradicional diferente, há a questão das tribos… Não há dificuldades, a nível do trabalho do Tribunal, em lidar com tudo isto?
Não. Os países também estão organizados entre os poderes institucionalizados e o costumeiro. Nós tivemos de lidar, no Tribunal, com o poder costumeiro, com questões que são colocadas, com a eleição dos chefes das comunidades – não diria chefes tribais, mas chefes das comunidades – porque eles têm essas figuras, mas acabamos por aprender e respeitar a sua forma organizacional. As instituições estão separadas, a organização separa-se completamente daquilo que é o costume. Eles respeitam o costume, mostram respeito por aquilo que é tradicional, mas de forma alguma isso interfere com aquilo que é institucionalizado, em termos de órgãos e poderes.
E na aplicação de uma decisão também não há conflito?
Não, porque mesmo, por exemplo, a eleição dos chefes locais é regulada por leis locais, e essas leis locais são construídas na base de regras costumeiras que eles decidiram legislar. Então, quando há conflitos nessas eleições, que chegaram ao Tribunal da Justiça, aplicamos as leis costumeiras que existem, as leis construídas na base do costume. O Tribunal apenas não aceita as práticas costumeiras ou as práticas religiosas – porque também há a influência da religião – que violem os Direitos Humanos. Ou seja, práticas que violem normas ou princípios que constam da carta africana ou de outros instrumentos internacionais de Direitos Humanos de carácter universal. Se vai contra os Direitos Humanos, o Tribunal pronuncia-se e recomenda que se abandone a prática. Este é um combate que se faz, mas no restante respeita-se aquilo que é tradição, até porque a própria carta africana levou isso em consideração. Reconheceu os direitos tribais, o direito dos povos das minorias, e, portanto, isso tem de ser levado em conta.
Dos casos que passaram pelo Tribunal, há algum que se tenha destacado?
Todos os casos têm destaque. Não há nenhum caso que entre no Tribunal de Justiça que não seja notícia. Durante o meu mandato, lidamos com questões de violação do direito à livre expressão dos jornalistas, por exemplo. Tivemos shutdowns da internet, em que o governo decidiu fechar o acesso à internet ou fechar uma plataforma digital como o Twitter. Casos desses chegam ao Tribunal e este, por considerar este direito como um direito fundamental, tem proferido as suas sentenças ou dado orientações aos Estados em matéria de liberdade de expressão, no sentido, como referido, de alterar as suas leis quando constata que a legislação nacional não está em conformidade com o standard mínimo que garante esse direito.
E nesses os quatro anos do seu mandato, sentiu que houve uma evolução do Tribunal da CEDEAO?
O Tribunal tem feito muitas campanhas de sensibilização na região dando a conhecer a sua actividade e vem crescendo em reconhecimento público e no seu próprio trabalho. Quando o Tribunal foi instalado, esteve inicialmente 2 ou 3 anos sem fazer nada, porque ninguém o conhecia. A partir de 2005 começou a receber casos de Direitos Humanos e, desde então, a tendência foi sempre crescente. Entre 2018 a 2022, os números também cresceram, anualmente. Há muito mais procura e há questões muito mais complexas que se vêm colocando. Como disse, o Tribunal lidou, por exemplo, em 2021, com um processo onde um Estado decidiu fechar o acesso ao Twitter. Um outro Estado decidiu, no dia das eleições, cortar o acesso à internet. Já não são casos de agressão policial, ou de pessoas condenadas à morte, embora estes casos continuem a chegar, mas questões cada vez mais complexas. Questões por exemplo relacionadas com investimentos efectuados por grandes empresas em África em que, alegadamente, há interferência do Estado sobre esse património. As sociedades também podem vir [ao Tribunal] quando o seu direito de propriedade ou o direito equitativo for violado, porque estes são Direitos Humanos atribuídos também às sociedades comerciais.
Pensa que esta tendência de aumento de casos se manterá?
Acredito que sim. Na região, o Tribunal tem um papel fundamental. São 15 Estados, mas não estão todos no mesmo nível de desenvolvimento a nível sociopolítico. (Não falo no desenvolvimento económico, porque os países com mais poderio económico em África nem sempre são aqueles que garantem os direitos.) São países diferentes, com problemas diferentes e com desafios e dificuldades próprias. Há países onde o sistema judiciário é muito débil, não está em condições de assegurar uma independência de funcionamento, e isso traz a necessidade de recorrer ao Tribunal de justiça como sendo o último palco que as pessoas têm para procurar a garantia dos seus direitos. Isso é fundamental e isso vive-se na região. Não podemos dizer que países em situações de golpe de Estado, onde as instituições não funcionam, estão em condições de garantir direitos. A solução que os cidadãos têm é procurar ajuda ou apelar à jurisdição externa, no caso ao Tribunal de Justiça da CEDEAO, quando os seus direitos são, e muitas vezes, violentados de forma gravíssima.
Mas não há depois uma maneira de garantir a execução, não há uma maneira coerciva?
Não há uma maneira coerciva, porque cabe ao Estado executar, mas, conforme lhe disse, é sempre uma forma de pressão, porque as decisões do Tribunal de Justiça da CEDEAO são acompanhadas a nível internacional. No âmbito das relações com organismos internacionais de DH, estes acompanham o Tribunal e as suas decisões, e tudo isso é utilizado como meio de pressão relativamente aos Estados. Nenhum Estado quer ser visto como violador dos Direitos Humanos, então, ainda que não cumpram a decisão no caso concreto, esta serve sempre de pressão para que as coisas melhorem.
E casos de Estados contra Estados?
Não há. Na nossa sub-região, a relação entre Estados é fraternal. É possível e é uma das principais competências do Tribunal dirimir litígios entre Estados ou quando o Estado não cumpre uma obrigação comunitária, ser accionado pela própria comunidade ou por outro Estado, mas isso nunca aconteceu até hoje. Tentam sempre arranjar formas de resolver os seus problemas em sede própria. A alta autoridade da conferência de chefes de estado [e de governo] é a entidade máxima da CEDEAO. Não há razão para um Estado accionar outro se podem resolver os seus problemas em conferências.
Temos também, a nível “supranacional” em África, o Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos (da UA). Não há aqui uma sobreposição de funções?
Temos o Tribunal Africano, o Tribunal da CEDEAO e o da África Oriental. O da África Austral está suspenso há algum tempo. Então temos três tribunais, mas não há sobreposição nem uma posição de hierarquia. Em Junho estivemos num encontro entre os três tribunais, um diálogo tripartido, para se concertar as experiências, verificar o que cada um tem feito nessa matéria e acertar, mas não existe uma hierarquia, o Tribunal Regional não está acima dos tribunais sub-regionais.
Então, a qual recorrer?
As pessoas escolhem aonde querem ir. Para se aceder ao Tribunal Africano de Direitos do Homem é preciso que o país já tenha ratificado o protocolo constitutivo do Tribunal e tenha aceitado a competência do Tribunal. Isso impede que cidadãos de alguns Estados-membros da CEDEAO recorram a esse Tribunal, incluindo os cabo-verdianos.
Mas podem ir ao da CEDEAO.
Supomos que sim, porque é um Tribunal constituído por uma comunidade a que pertence Cabo Verde. Portanto, o tratado que cria o Tribunal da CEDEAO é um tratado ratificado, logo, em princípio sim.
Diferentes Estados têm diferentes graus de engajamento com o Tribunal da CEDEAO. E quanto a Cabo Verde?
Aquilo que tenho dito é que ainda temos muito a fazer. A nossa visão para com o continente depende daquilo que queremos e daquilo que é a nossa expectativa enquanto Estado parte de uma comunidade. Como se sabe, isto são questões de ordem muitas vezes política, o Estado é que decide o que quer, mas em termos de visão... há que trabalhar primeiro o próprio cidadão na sua visão relativamente ao continente. Nunca fomos instruídos para vermos o continente como parte a que pertencemos, com que nos identificamos e acho que ainda precisamos de fazer isto. Na minha óptica, nós ainda não entendemos qual seria o nosso ganho.
Além do caso de Alex Saab, houve mais algum caso de Cabo Verde a chegar ao Tribunal?
Não, foi o único. Foi a primeira vez.
Porque terá sido o único? Em Cabo Verde não há conhecimento desse Tribunal?
O Tribunal fez já duas acções de sensibilização em Cabo Verde. Todas as actividades que se fizeram visaram projectar a imagem do Tribunal no país. Eu não tenho dúvidas de que hoje se sabe muito mais sobre o Tribunal do que há 4 anos. Só para dar um exemplo, no último concurso interno de juízes para o Tribunal [2022] houve muitos interessados e isso demonstra que efectivamente as pessoas hoje têm uma noção completamente diferente do que é [este cargo]. Portanto, há mais informação, mas ainda é preciso fazer mais, porque não sei se a comunicação passou uma abordagem global daquilo que é actividade do Tribunal.
Mas quanto a queixas? Não temos tido casos…
Cabo Verde não tem tido. 70 ou 80% [dos casos] são da Nigéria, pela localização [do Tribunal, em Abuja]. Mesmos dos restantes países [temos casos]. Cabo Verde não tem sido accionado por violação dos Direitos Humanos e reconhece-se que é um dos países que respeita os Direitos Humanos.
Essa ausência de casos parte dos próprios cidadãos e ONGs nacionais.
Sim. Isso significa que o cidadão nacional acredita no sistema judicial nacional e não acha necessário recorrer a outras jurisdições, para obter o reconhecimento do seu direito. Isso é bom, é o que se quer, porque o primeiro responsável para garantir os Direitos Humanos são as jurisdições nacionais. Se as jurisdições nacionais o garantem, não há necessidade de se recorrer a outras jurisdições externas para o fazer, porque ninguém gosta, nenhum Estado gosta que haja instituições externas que venham ingerir na sua esfera nacional. Nenhum Estado gosta, é normal. Mas o Estado também é livre para aderir ou não a um Tribunal Internacional por tratado.
Regressou a Cabo Verde e por aqui houve algumas mudanças e outras medidas para redução de pendências. Acha que são boas medidas?
Acredito que sim. O que eu tenho notado é que tem havido um esforço no sentido de se dotar os tribunais de meios para que efectivamente se possa combater esta morosidade que ainda é latente nos nossos tribunais. Porém, temos também de ter sempre em conta que a questão da morosidade não é uma exclusividade de Cabo Verde, é um problema com que se debatem vários sistemas de outas paragens.
A par das medidas, temos assistido a recordes de casos a entrar…
Claro. O desenvolvimento faz aumentar a litigiosidade. Quanto mais evoluídos, mais as pessoas são cientes dos seus direitos, mais empresas temos a laborar e obviamente que os litígios são maiores. Agora, acho que teremos de fazer também uma forte aposta na especialização. Temos de começar a especializar magistrados, porque quando se especializa qualquer recurso humano ele é capaz de responder mais depressa às situações. Uma outra preocupação minha é que precisamos de ter mais formação contínua dos magistrados. Publicam-se leis todos os dias. O magistrado é capacitado para interpretar as leis que saem todos os dias, para estudar as matérias novas? Lidamos hoje com a questão das regulações, as agências regulatórias, telecomunicações, o mercado imobiliário, a banca, seguros… Temos que acompanhar as inovações. Como? Com formações. Tem que haver mais formações.
Está na calha a instalação de um centro de estudos Jurídicos e Judiciários.
A preocupação de se instalar o centro vocacionado para este tipo de formação está sendo levada em conta, mas já é tempo para se fazer isto, porque não se pode combater a morosidade apenas com mais gente. Queremos mais gente, mas gente qualificada.
Entretanto, agora que voltou, o próximo desafio será o Tribunal da Relação de Barlavento?
Sim, em princípio sim. Vou enfrentar mais uma mudança…
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1098 de 14 de Dezembro de 2022.